sexta-feira, 27 de junho de 2025

Análise: Estes Dias que Desaparecem

Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher - Devir

Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher - Devir
Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher

Estes Dias Que Desaparecem, de Timothé Le Boucher, é uma das mais recentes apostas da Devir que, diga-se, tem editado em 2025 um eclético conjunto de boas obras de banda desenhada! 

Estes Dias Que Desaparecem é uma obra que se destaca desde as primeiras páginas pela força da sua premissa. A ideia central - um jovem que, subitamente, começa a perder a consciência em dias alternados e a dar-se conta de que a sua vida está a ser vivida por uma outra versão de si mesmo - é ao mesmo tempo intrigante e perturbadora. Trata-se de um conceito que facilmente poderia ter descambado em artifícios narrativos vazios, em abordagens mais fantásticas ou em enigmas sem resolução, mas o autor consegue evitá-lo com mestria.

A história acompanha Lubin Maréchal, um jovem acrobata que, após um estranho episódio de perda de consciência, descobre que está a viver apenas um dia em cada dois. Ou seja, vive um dia e dorme as 24 horas seguintes. O problema é que, durante essas 24 horas seguintes, há um outro Lubin, uma outra versão de si mesmo, que vive por ele. Nos dias em que não está "presente", o seu corpo é habitado por uma outra personalidade - uma versão alternativa de si próprio, com desejos, vontades e uma vida que rapidamente começa a divergir da sua. Este conflito interno e existencial torna-se o motor de uma narrativa que não se limita ao mistério, mas que se alarga ao drama psicológico e à reflexão sobre identidade, dupla personalidade e saúde mental.

Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher - Devir
A grande virtude do livro é, de facto, saber sustentar a tensão da sua premissa sem se perder nela. É frequente para mim encontrar obras com ideias iniciais muito fortes e interessantes, que depois se desmoronam ao longo da execução - seja por excesso de ambição, seja por incapacidade de dar corpo à ideia sem recorrer a atalhos narrativos, seja por não se saber fechar bem a história procurando muitas vezes uma apoteose. Nem sempre é necessário uma apoteose, diria eu. 

Timothé Le Boucher, pelo contrário, revela uma grande contenção e uma notável capacidade de gestão narrativa. O livro avança com ritmo, desenvolve bem os dilemas das duas versões de Lubin e mantém o leitor emocionalmente envolvido até ao final. Às tantas, já dava por mim a pensar: "mas o que será que vai acontecer com esta história e com esta personagem?". E isso, o não óbvio, é uma sensação sempre boa.

À medida que a história progride, o conflito entre os dois "eus" de Lubin torna-se mais tenso e desigual. Um deles tenta preservar a sua identidade e a sua vida, enquanto o outro, mais assertivo e instintivo, começa a tomar decisões irreversíveis. Esta dualidade entre os dois "eus" de Lubin é explorada com inteligência, servindo como uma poderosa metáfora para o descontrolo, a ansiedade da juventude e as possibilidades não vividas. Mais do que uma trama de suspense, o livro é também um retrato melancólico sobre a perda de si mesmo, dando-nos pano para mangas para refletirmos naquilo que somos, naquilo que poderíamos ser e na irrevogável passagem do tempo ou potencial perda de todas as faculdades mentais que julgamos ter no tempo presente.

Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher - Devir
Se, do ponto de vista narrativo, o livro é sólido, coeso e, em última instância, satisfatório, o mesmo já não se pode dizer da sua componente visual. Apesar de recorrer a uma estética claramente inspirada no mangá - nomeadamente na forma como as emoções são expressas através dos rostos e da linguagem corporal das personagens -, o resultado é um pouco insípido. Os cenários, em particular, revelam-se frequentemente despidos, pouco trabalhados e com um nível de detalhe abaixo do que seria desejável numa história tão rica em potencial dramático e simbólico.

Essa simplicidade gráfica poderia até ser encarada como uma escolha estilística consciente, com o objetivo de focar a atenção nas personagens e no seu drama interno. Contudo, a execução raramente ultrapassa o funcional, e há momentos em que se sente que o ambiente gráfico poderia fazer muito mais para reforçar o impacto emocional da narrativa. Falta densidade, textura, camadas - algo que complemente visualmente o que está tão bem conseguido no plano narrativo.

Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher - Devir
A utilização de um desenho com influências na estética oriunda do estilo mangá é, ainda assim, um ponto interessante, pois ajuda a conferir dinamismo às expressões e aproxima a leitura de um público mais jovem, habituado a esse tipo de traço. Além disso, serve bem o registo emocional da história, que frequentemente exige expressões de pânico, frustração, confusão ou euforia. A expressividade das personagens está bem captada, e isso contribui para a empatia com os protagonistas, mesmo quando o resto do cenário gráfico fica aquém.

Voltando ainda à história, outro aspeto que merece ser elogiado neste Estes Dias Que Desaparecem é a forma como Timothé Le Boucher evita dar respostas fáceis. O final do livro mantém uma certa ambiguidade, não no sentido de deixar pontas soltas, mas no de respeitar a complexidade emocional da história. Não há reviravoltas gratuitas nem moralismos, apenas a inevitável evolução das consequências de viver metade da vida ou, pior, de ver outra versão de nós mesmos viver a vida que julgávamos ser nossa.

A edição da editora Devir é boa, apresentando capa dura baça e bom papel baço no interior do livro. A impressão e e encadernação também são boas. Mas mais do que isso, importa para mim realçar o facto da editora ter apostado numa obra europeia relativamente recente e diferente das suas outras propostas. o que acrescenta qualidade e diversidade ao catálogo da editora.

Em conclusão, Estes Dias Que Desaparecem é uma leitura refrescante e original. Consegue pegar numa ideia ousada e desenvolver um enredo envolvente, maduro e coerente. Mesmo que o desenho não acompanhe plenamente a qualidade do argumento, o livro impõe-se como uma proposta verdadeiramente  interessante da banda desenhada europeia contemporânea. É uma prova de que, quando bem tratadas, as boas ideias não se perdem: ganham profundidade, intensidade e permanência. Recomenda-se!


NOTA FINAL (1/10):
9.3


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Estes Dias que Desaparecem, de Timothé Le Boucher - Devir

Ficha técnica
Estes Dias que Desaparecem
Autor: Timothé Le Boucher
Editora: Devir
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Maio de 2025

Sem comentários:

Enviar um comentário