terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Análise: O Coração na Boca


O Coração na Boca, de Horácio Gomes

Começo esta análise por dizer que este O Coração na Boca será, possivelmente, o livro mais impactante, belo, angustiante e notável em todo o catálogo da editora Escorpião Azul, que tive oportunidade de ler, até hoje. E olhem que, se não todos, eu já li grande parte dos livros da editora. À boa maneira do constante trabalho da editora no lançamento de banda desenhada nacional, esta é mais uma obra de um autor português: Horácio Gomes. Do qual eu nunca tinha lido um livro. Até agora.

O Coração na Boca é mais do que um bom livro. É uma autêntica tour de force do autor, que nos arrebata o coração e que nos comove. Não pude deixar de sentir uma clara empatia e admiração por Horácio. E não apenas pela boa obra de banda desenhada que aqui nos dá, mas também, e especialmente, pela forma corajosa como se expôs - a si e aos seus - neste livro. Numa altura em que todos nós parecemos querer pintar uma melhor imagem do que aquilo que realmente somos, publicando, por exemplo, nas redes sociais, a nossa melhor fotografia, o nosso melhor comentário político, a nossa melhor preocupação ambiental e/ou a nossa melhor piadola desportiva, é bom encontrar em O Coração na Boca um testemunho real e transparente, onde Horácio Gomes não aparenta querer pintar uma imagem artificialmente bonita da pessoa que é. Pelo contrário, oferece-nos um retrato duro e comovente, onde nos revela como foi a sua vida e as amarguras recorrentes do seu divórcio, dos seus problemas financeiros, da sua solidão e até da sua luta para conseguir publicar o próprio livro em questão. 

E tudo com uma única âncora: a de querer ser o melhor pai possível para a sua filha. Não só é ela a protagonista do livro, como fica óbvio que o autor se serve de O Coração na Boca para dedicá-lo à sua filha Mariana, de forma a resolver e fechar(?) um período negro na sua vida, na tentativa de conquistar essa coisa que todos nós, em determinado momento das nossas vidas, procuramos: a redenção. A redenção de uma vida nem sempre praticada como gostaríamos que fosse. A redenção de uma vida onde falhamos. Onde fracassamos. Onde desiludimos os outros e a nós próprios.
 
As temáticas do divórcio; do desespero de, subitamente, um pai deixar de viver com a sua filha, de apenas 4 anos; das despesas financeiras de um homem adulto que se vê desempregado e forçado a procurar guarida na casa da mãe idosa; bem como a sobrecarga de stress com que coabitamos diariamente, estão praticamente sempre presentes ao longo da obra.

Como a narrativa nos é dada em tom de desabafo, ou de expiação, não temos aquela estrutura clássica dos acontecimentos que é mais comum de encontrar numa qualquer história. Nem sequer temos balões de diálogo ou uma sequência concreta de ação. Aquilo que temos é um discurso em forma de narrador em voz off, que nos vai contando todo o seu percurso antes e após o divórcio com a mãe de Mariana. E o texto tem um cariz tão honesto que, por si só, já funcionaria bem se lido isoladamente. Com efeito, mesmo que esta história fosse lida num texto em prosa corrido, continuaria a ser delicada e marcante para o leitor. Mas, claro, dotando o texto de bonitas ilustrações, toda a experiência sai muito mais maximizada.

Em termos de história, vamos pois acompanhando os vários eventos e infortúnios que vão acontecendo ao protagonista, para que, depois, haja uma luta da personagem de Horácio consigo mesmo, e com os fantasmas que o perseguem, que aparece representada num tom mais onírico e metafísico que, embora funcione bem em termos narrativos para ilustrar a história, talvez se torne um pouco mais expetável, trazendo alguns clichets próprios desta "luta interior" que, várias vezes, observamos em livros e filmes.

Em termos visuais, O Coração na Boca também traz consigo um estilo muito próprio, com o autor a apresentar um traço hiper-realista e bastante detalhado, que aparenta alimentar-se diretamente do registo fotográfico para, depois, ser desenhado através de mesa digital. O resultado é original e bastante expressivo, além de que, paralelamente, o processo de colorização, de cores suaves mas carregadas de vida, também dá uma dinâmica bastante apelativa à obra. Colorização essa que até tem a valência de se alterar, em termos de paleta de cores, consoante o momento vivido pelo protagonista da história. Uma nota ainda para a planificação, onde o autor nos oferece uma dinâmica muito interessante, devido a colocar muitos elementos que saem dos limites das vinhetas para deambularem pelas páginas, dando um efeito de harmonia e de "organização desorganizada", muito interessante.

Como ponto menos positivo, embora as ilustrações sejam bem bonitas, por vezes também me pareceu que havia muitas vinhetas demasiado semelhantes entre si. Explico: quando a Mariana é ilustrada no jardim a brincar, ou na praia, por vezes somos brindados com muitos planos idênticos de uma só atividade da criança que se tornam, quiçá, algo redundantes. Não é uma coisa que belisque o prazer de leitura, mas talvez aqui o autor pudesse ter possibilitado outro tipo de solução gráfico-narrativa.

Em termos de edição, a Escorpião Azul mantém-se fiel ao seu modus operandi de edição de livros: capa mole com bandanas e papel baço de qualidade decente. O livro abre com uma nota introdutória do próprio autor que logo nos traça o ambiente pessoal e marcante da obra. Devo dizer que, em termos de ilustração de capa, este livro poderia (deveria?) ter sido mais bem conseguido. Quer ao nível da ilustração escolhida para figurar na capa - que está longe de estar ao nível do melhor que o autor consegue fazer, como, aliás, folheando o livro, nos apercebemos logo; como, também, ao nível do trabalho de grafismo da capa. Estou certo que o título da obra e o nome do autor poderiam ter sido inseridos com um maior decoro visual.

Mas, mais uma vez, não são estes pequenos apontamentos menos positivos que estragam a obra – nem pouco mais ou menos! – contudo, são pequenas nuances que poderiam contribuir para uma melhor sensação de leitura e, quiçá, atrair mais potenciais leitores que passeiam numa livraria e dão de caras com este livro.

Olhando para o todo, termino como comecei: O Coração na Boca é das melhores obras do já extenso catálogo da Escorpião Azul. E o autor e editor poderão estar tranquilos que, de facto, valeu a espera o longo tempo que demorou a criar este livro. Se este trabalho não conseguir tocar a sensibilidade do leitor, algo de errado se passa… com o leitor. Talvez o seu coração não esteja onde devia estar. Este livro é pungente. É corajoso. É angustiante. É muito bom e recomenda-se! 


NOTA FINAL (1/10):
8.6



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Ficha técnica
O Coração na Boca
Autor: Horácio Gomes
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Setembro de 2021

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