O 9º volume da coleção dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, que a editora Levoir tem vindo a editar em parceria com a RTP, traz-nos a adaptação para banda desenhada de João Ramalho Santos e Filipe Abranches da obra Crónica de D. João I, originalmente escrita por Fernão Lopes.
E esta adaptação é, sem dúvida, um projeto ambicioso que enfrenta o desafio de transportar para o formato de banda desenhada uma das obras fundadoras da historiografia e literatura da língua portuguesa. Baseando-se no texto original de Fernão Lopes, esta adaptação procura condensar um conteúdo extremamente complexo e compacto, marcado por um vocabulário arcaico, uma forte componente política e um retrato minucioso de um dos períodos mais densamente carregados de eventos relevantes da história de Portugal: a crise de 1383-1385 e a ascensão de D. João I.
A própria escolha da obra é reveladora de uma intenção louvável, mas arriscada, pois trata-se de um trabalho que, sendo um texto fundamental, está longe de ser de leitura acessível, mesmo em prosa corrente. E transportá-la para BD sem abdicar do seu peso histórico e literário é um feito técnico, mas também um "campo minado" em termos narrativos.
Portanto, diria que o trabalho de João Ramalho Santos era, à partida, muito exigente. E depois de lido o livro, bem como todo o seu dossier de apoio e investigando ainda um pouco sobre a obra na internet, posso dizer-vos que esta BD é uma obra que, com a sua estrutura densa e o seu conteúdo altamente contextualizado num tema muito específico, nos convida a uma leitura exigente - por vezes mesmo maçuda - apesar dos esforços de sintetização, que enalteço, do argumentista.
Em termos narrativos, a obra cumpre o essencial, apresentando os principais eventos da Crise de 1383-1385, a aclamação de D. João I e o papel político (e simbólico) de figuras como o Mestre de Avis ou Nuno Álvares Pereira. Mesmo assim, revela-se uma obra de leitura desafiante. Não apenas pela complexidade do texto, mas também pela forma como este está montado. Há uma sobreposição constante de texto denso com imagens intensas e carregadas, o que obriga a uma leitura muito concentrada, não permitindo que haja um espaço para que o enredo possa respirar um pouco, aliviando-o. Ora, pensando a obra para um público jovem ou menos familiarizado com a história medieval portuguesa, esta complexidade e abstracionismo da obra podem tornar-se obstáculos consideráveis.
É necessário reconhecer, no entanto, que o trabalho visual de Filipe Abranches é verdadeiramente notável. As suas ilustrações elevam a obra e oferecem uma dimensão estética rara na banda desenhada nacional. Bem em linha, diria, com aquilo a que o autor Filipe Abranches já nos habitou, em que o mesmo recorre a um estilo expressionista, por vezes próximo do abstrato. Esse estilo é bastante pródigo na representação do caos, da violência e do peso simbólico dos acontecimentos históricos aqui retratados. E é, sem dúvida, um dos maiores trunfos desta adaptação.
A composição gráfica contribui para criar uma atmosfera carregada, sombria e quase mística, o que se interliga bem com a ideia de destino e legitimidade que atravessa a narrativa de Fernão Lopes, e que João Ramalho Santos recupera nesta adaptação. Além disso, Abranches parece particularmente inspirado, com pranchas que poderiam, isoladamente, figurar numa galeria de arte. O uso da sombra, da mancha e da distorção facial comunica bem a angústia de um reino em suspenso, mas, lá está, pode também dificultar a leitura para quem procura uma narrativa mais clara e linear.
O que me leva a uma questão: é que, se o grande objetivo desta coleção dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD é o de fazer chegar as obras clássicas da literatura portuguesa a um maior público, com destaque para o mais jovem - como, aliás, assim tem sido apregoado - então esta abordagem apresentada por João Ramalho Santos e Filipe Abranches talvez erre de forma desbragada no seu público-alvo, pois a sofisticação estética deste trabalho não resolve o principal dilema da obra: o seu peso conceptual e estilístico contraria o objetivo pedagógico e de acessibilidade da coleção a que pertence - uma coleção que visa tornar clássicos da literatura portuguesa mais apelativos para o público jovem, usando o suporte da banda desenhada como ponte. Mesmo, reitero, tendo em conta que, logo à partida, não seria uma adaptação fácil.
Com efeito, se pensarmos noutras obras da coleção, como Maria Moisés, O Crime do Padre Amaro ou Frei Luís de Sousa, por exemplo, que tentaram ser adaptações simples e leves, este Crónica de D. João I tem uma abordagem diametralmente oposta. Até mesmo a adaptação de Mensagem, por Pedro Vieira de Moura e Susa Monteiro, que também adaptava para banda desenhada um obra difícil (embora menor em dimensão, reconheço), conseguiu o feito de se tornar acessível. Crónica de D. João I não o faz. O que, realce-se, nem tem de ser uma coisa necessariamente negativa. Todos aqueles que têm afirmado que, devido a serem leitores assíduos de banda desenhada e adultos na idade, "esta coleção não é para eles", poderão encontrar neste livro aquilo que não encontram nos demais. Mesmo assim, e por uma questão de princípio, este é um livro que, a meu ver, aparece bastante desenquadrado da restante coleção. Seja para o bem, seja para o mal.
Há, no entanto, algo de admirável na ousadia do projeto. João Ramalho Santos e Filipe Abranches não optaram pelo caminho fácil, nem banalizaram o conteúdo. A complexidade da narrativa e a densidade gráfica mostram respeito pela obra original e pelo leitor, assumindo que este é capaz de acompanhar uma leitura exigente. Isso pode ser visto como uma virtude, ainda que à custa da eficácia em termos de divulgação junto dos mais novos.
Quanto à edição, esta encontra-se em linha com a restante coleção, com o livro a apresentar capa dura baça, bom papel brilhante no interior e um trabalho competente ao nível da impressão e da encadernação. Há ainda um dossier de extras - especialmente conveniente neste caso - que nos dá informações adicionais sobre a obra, o seu autor e o seu contexto histórico.
Concluindo, Crónica de D. João I apresenta-se como uma obra de grande mérito artístico e ambição literária, mas cujo peso conceptual e visual a torna de difícil digestão para o público-alvo que, supostamente, deveria alcançar. Mesmo assim, e especialmente pelas belíssimas ilustrações de Filipe Abranches, estamos perante uma digna e visualmente impressionante homenagem a Fernão Lopes e à sua obra.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Crónica de D. João I
Autores: João Ramalho Santos e Filipe Abranches
A partir da obra original de: Fernão Lopes
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Outubro de 2024
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