Dylan Dog – Batman: A Sombra do Morcego, de Roberto Recchioni, Werther Dell’Edera e Gigi Cavenago
Se há coisas que, na maior parte das vezes, me parecem forçadas, por vezes fabricadas por mero apelo comercial, são os
crossovers. Este encontro entre personagens de universos diferentes e independentes, muitas vezes utilizado em banda desenhada, mas não só, embora possa ser apelativo, especialmente quando já apreciamos um ou os dois universos que passam a estar juntos, é muitas vezes um exercício forçado, sem grande substância. Partindo deste pressuposto, e depois de ter ligo este
Dylan Dog – Batman: A Sombra do Morcego, posso dizer-vos que esta nova aposta da editora
A Seita foi uma agradável surpresa.
Reunindo duas personagens de primeira linha, Dylan Dog, pelos fumetti, e Batman, pelos comics americanos, este é um livro que consegue o quase milagroso feito de ser equilibrado, de ter uma história consistente e que, mais importante que tudo, nunca se atropela a si mesmo. Ou quase nunca. Mas já lá irei.
Com argumento de Roberto Recchioni e desenhos por parte de Werther Dell’Edera e Gigi Cavenago, este
Dylan Dog – Batman: A Sombra do Morcego até pode muito bem representar uma das mais inesperadas e bem-sucedidas colaborações intereditoriais da banda desenhada contemporânea. Ao unir dois universos aparentemente tão distintos como o sombrio e surreal mundo do investigador do pesadelo Dylan Dog e o universo
noir e urbano do Cavaleiro das Trevas, os autores demonstram uma sensibilidade rara e uma compreensão profunda das personagens que têm em mãos.
A história arranca quando é forjada uma aliança entre os dois vilões Joker e Doutor Xabaras, que acaba por levar Batman a Londres, à cidade de Dylan Dog. A partir deste momento, os dois heróis deverão colocar de lado as suas visões divergentes sobre a natureza do Mal, e unir forças para eliminar a terrível ameaça que se lhes apresenta.
A narrativa estabelece desde cedo um equilíbrio delicado entre o realismo psicológico e a fantasia gótica. A história decorre entre Londres e Gotham, cidades que espelham as características dos protagonistas: uma mais espectral e melancólica, a outra mais urbana e violenta. O enredo aproveita essa dualidade para explorar o trauma, o medo e a obsessão - temas que são comuns a ambos os heróis, apesar das suas diferentes formas de enfrentá-los.
Recchioni mostra mestria ao fundir as mitologias de
Dylan Dog e
Batman sem que uma se sobreponha à outra. A construção da história é coesa, e os acontecimentos fluem com naturalidade, o que evita o risco típico de
crossovers: o de parecerem artificiais ou forçados. Com efeito, é particularmente eficaz o modo como os dois protagonistas interagem. Em vez de uma simples união para combater um mal comum, há um verdadeiro confronto de métodos, éticas e até de fragilidades. Batman, metódico e controlado, encontra em Dylan uma figura mais intuitiva, sem grandes regras, aberta ao irracional e ao paranormal. Essa diferença é explorada com inteligência e traz-nos bons momentos de diálogo.
No entanto, a introdução da personagem de John Constantine e da ida ao inferno - numa alusão direta à obra de Dante - assume-se, claramente, como o excesso cometido pelos autores. Compreendo que a simples presença de uma personagem carismática como Constantine seja, por si só, uma escolha tentadora para qualquer história que envolva ocultismo, mas, neste caso específico, a sua entrada surge como um artifício que quebra o ritmo e a coerência interna da narrativa. A dimensão infernal, embora visualmente impressionante, acrescenta pouco à estrutura narrativa principal e desvia o foco da relação entre Batman e Dylan Dog.
Esta parte da história parece, pois, mais motivada por um desejo de introduzir mais uns "
cameos" e referências, do que por uma real necessidade de enredo. O inferno de Dante, ainda que estilisticamente coerente com o tom onírico e perturbador do universo de Dylan Dog, soa mais a homenagem do que a desenvolvimento de enredo. E, quanto a mim, acaba por ser a parte mais forçada de um livro que, tal como já referi, até consegue não ser muito "forçado" e que até ali se mantinha sóbrio e bem doseado.
Tirava-se a parte de Constantine deste livro e, para mim, ele seria perfeito. É demasiado o destaque dado a esta personagem, que acaba por cortar mais do que o devido com a linha narrativa principal da obra. Note-se que há muitas outras personagens que deambulam por este livro, como Alfred, Catwoman, Joker, Crocodilo, Comissário Gordon, Inspetor Bloch e o próprio Groucho... e todas elas foram mais bem introduzidas no espaço que a trama principal lhes permitia ocupar. O próprio Groucho, um comic relief à séria, aparece com tiradas especialmente inspiradas e divertidas que dão alguma luz e cor a uma história mais sombria.
Apesar do erro da presença do carismático Constantine, o saldo final da obra é amplamente positivo. A ousadia da proposta é sustentada por uma execução sólida, que respeita profundamente os cânones dos dois heróis. Em vez de diluir as suas essências, o livro reforça o que há de mais icónico em cada um: o detetive do insólito, cuja mente é assombrada por sonhos e mortes, e o justiceiro de Gotham, prisioneiro de um trauma infantil que o transforma num símbolo.
É também digno de nota o modo como os autores evitam o
fan service gratuito. Cada referência, cada elemento de ambos os universos é integrado com conta e medida. A sensação que fica é a de uma celebração madura das personagens e não a de um desfile nostálgico para agradar a fãs.
Falando nas ilustrações desta obra, há que referir que a arte de Werther Dell’Edera e Gigi Cavenago é, sem exagero, deslumbrante. A expressividade das personagens, o uso dramático das sombras e a paleta cromática alternando entre tons frios e quentes, refletem com precisão os estados emocionais das cenas. Há um trabalho pictórico que valoriza tanto a tensão da narrativa quanto a beleza estética do cruzamento entre o terror e o policial.
O desenho é, portanto, de altíssimo nível, com as personagens totalmente reconhecíveis e carregadas de expressividade e carisma, o que torna cada cena ainda mais envolvente. Os ambientes são ricos em detalhes e contribuem para a atmosfera densa e imersiva da narrativa. A cinematografia dos planos utilizados é muito bem pensada, com enquadramentos dinâmicos que valorizam a ação e o suspense, criando uma leitura fluida e impactante. Além disso, o belo trabalho de cores complementa perfeitamente o clima sombrio, realçando as emoções e o tom de mistério que permeiam a história. Tudo isso junto resulta numa experiência visual marcante e memorável.
Em termos de edição, o trabalho da editora A Seita é bastante bem conseguido. O livro apresenta capa dura baça e bom papel brilhante no seu interior, bem como um bom trabalho em termos de encadernação e impressão. As dimensões do livro são maiores face àquelas que a editora tem utilizado nos seus outros livros dedicados a Dylan Dog. Em termos de extras, o livro inclui um caderno de 12 páginas, que nos traz desenhos inéditos, um guia das personagens dos universos DC e Dylan Dog e uma galeria das capas alternativas. No início, a edição abre com um prefácio de Luca del Salvio. É uma bela edição, portanto.
Em suma, contra as expectativas mais conservadoras e negativas de muitos leitores que, como eu, se habituaram a ver nascer crossovers fracos que procuravam apenas vender livros apoiando-se em franquias de sucesso, Dylan Dog – Batman: A Sombra do Morcego é uma bela surpresa. Não só demonstra a viabilidade de cruzamentos improváveis, como também eleva o género de crossover ao propor algo mais do que uma simples junção de mundos: uma verdadeira história com substância, atmosfera e arte. Mesmo que possa não ser perfeita, é uma leitura recomendada tanto para fãs de longa data de Dylan Dog e/ou Batman quanto para novos leitores. E, com sorte, até pode trazer novos leitores ou para os fumetti, ou para os comics americanos! Boa aposta!
NOTA FINAL (1/10):
8.9
-/-
Dylan Dog – Batman: A Sombra do Morcego
Autores: Roberto Recchioni, Werther Dell’Edera e Gigi Cavenago
Editora: A Seita
Páginas: 224, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 20 x 26,5 cm
Lançamento: Março de 2025