segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Entrevista a Mário Freitas: "Não duvido que existe uma franja de leitores, os mais conservadores dos conservadores, que considera a BD de autores portugueses como coisa menor."



A propósito da recente publicação para o mercado americano, pela editora Image Comics, de O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira, com o título The Man Who Dreamt The Impossible, estive à conversa com Mário Freitas, argumentista e editor da obra.

Falámos sobre este enorme feito, as suas possíveis consequências ou ilações, bem como de projetos futuros de Mário Freitas, numa conversa aberta e transparente, bem ao estilo do autor.

Deixo-vos, mais abaixo, com a nossa conversa e aproveito, uma vez mais, para enviar os meus parabéns ao Mário Freitas e ao Lucas Pereira. Que a produção portuguesa seja publicada no estrangeiro é - ou devia ser - sempre motivo de orgulho e regozijo para todos nós!



ENTREVISTA



1. Antes de qualquer coisa mais, permite-me endereçar-te os mais sinceros (e orgulhosos) parabéns pelo grande feito que foi veres o teu mais recente trabalho enquanto autor, O Homem Que Sonhou o Impossível, com ilustrações de Lucas Pereira, ser publicado por uma editora americana, neste caso a gigante Image Comics. E, começando por esse assunto, permite-me questionar-te: como foi para ti receberes esta confirmação por parte da Image?

Obrigado, Hugo, e desde já muito grato pela rara oportunidade de falar deste livro em Portugal. Tal confirmação da Image foi um alívio, porque o processo durou mais de um ano. Quando contactei o Eric Stephenson, editor-chefe, enviei-lhe as primeiras sete páginas do livro e ele disse logo que poderia estar interessado e que queria ver mais. Mandei-lhe o PDF completo e ele confirmou taxativamente o interesse, o que me deixou naturalmente extasiado, ou não fosse a Image a minha primeira escolha. Depois, foram meses de silêncio que começaram a deixar-me impaciente, até que finalmente, por volta de Setembro do ano passado, ele confirmou-me a edição do livro para 2025. Depois, foi esperar pelo momento certo, e o Eric decidiu que seria Agosto, para coincidir com a data de nascimento do Jack Kirby. E assim surgiu este "The Man who dreamt the Impossible".


2. Voltando um pouco atrás, o que motivou a criação desta obra em particular? Qual foi a centelha inicial da ideia?

É público o meu fascínio pelo Jack Kirby, enquanto autor e enquanto pessoa. Ao longo dos anos, fui pesquisando exaustivamente a sua carreira e a sua vida; o combate e as agruras, os feitos e os fracassos. A apropriação criativa sempre foi algo que me assustou - digo mais, que me repugnou - e quanto mais lia Kirby, mais percebia que só podia ser ele, e mais ninguém, a criar a esmagadora maioria das personagens que ainda hoje povoam a nossa imaginação colectiva e que marcam a cultura POP das últimas décadas. Kirby foi sujeito a esta pior das humilhações, por editores menores sem pingo de criatividade mas plenos de demagogia cativante; no fundo, um reflexo contemporâneo da política mundial. Não te consigo situar com precisão o gérmen criativo desta história, mas aconteceu por volta de 2016. Depois, foi-se desenvolvendo aos poucos, até que em 2022 transbordei tudo para o papel.


3. Lucas Pereira é o autor brasileiro que te acompanhou nesta criação, assegurando as ilustrações da obra. Tendo em conta a distância geográfica que vos separa, esta parceria foi especialmente desafiante ou difícil?

Desafiante é sempre, independentemente da distância. De resto, não houve qualquer dificuldade. Além de um belíssimo ilustrador, perfeito na forma como demonstra as emoções das personagens ou o arrojo cósmico de algumas páginas, o Lucas é uma jóia de pessoa e cumpriu sempre, escrupulosamente, todos os prazos com que se comprometeu. Foi uma colaboração perfeita.


4. Sendo também editor, além de autor - bem como outras tantas tarefas que desempenhas na banda desenhada -, foi-te fácil conciliares esses dois papéis na realização deste livro em particular?

Nunca é fácil ser-se editor em causa própria. Mas eu sou muito autocrítico, muito analítico e faço-me várias perguntas ao longo do processo, de modo a evitar ciladas e incoerências. De resto, há coisas que só mais tarde sinto que poderia ter feito de forma diferente, mas não acredito que houvesse grande diferença, fosse outro o editor. De qualquer forma, ajuda, e muito, eu ter um conhecimento transversal da publicação e edição de BD. Edito, escrevo, planifico e faço alguns layouts, legendo, pagino, faço o design de publicação, ou seja, controlo praticamente todos os processos na feitura de um livro. É evidente que nada disto serviria, ou serve, se não tiver um bom desenhador a dar vida ao que imagino, dado os meus parcos recursos no desenho.


5. O que motivou a escolha por um formato gigante que é incomum para os padrões de edições em Portugal?

Por um lado, um piscar de olho às edições neste formato que foram muito populares nos Estados Unidos, na década de 70, as "Treasury Editions" (que, curiosamente, voltaram a estar na moda, de há um ou dois anos para cá); por outro, e mais relevante, ter um formato que nos permitisse desenvolver, narrativa e graficamente, todas as ideias e acções grandiosas que pusemos no livro. Aliás, não só as grandiosas; todos os momentos humanos mais intimistas e de convívio entre os auxiliares e os velhos do lar tiram partido do formato do livro, porque este permite ter várias vinhetas por página, quando necessário, sem que as coisas pareçam pequenas e atafulhadas. Isso é aliás das coisas mais relevantes, e em que mais insisto, no que transmito aos meus alunos, nos ocasionais Masterclasses ou Workshops de escrita para BD que vou dando. Pensem no formato físico; não usem o formato franco-belga para uma história no estilo mangá, nem encolham uma coisa pensada para o formato franco-belga num formato mais pequeno que o americano, por exemplo.


6. A publicação pela Image é um marco para a banda desenhada portuguesa. Na tua opinião, o que significa este feito para o panorama nacional?

Será um marco, na medida em que, tanto quanto sei, sou o segundo argumentista português a ser traduzido nos Estados Unidos por uma grande editora americana; o primeiro foi, como calculam, o Filipe Melo. Porém, tal como a publicação do Filipe não trouxe nada de relevante para os outros autores portugueses, duvido ainda mais que a minha possa trazer. Há vários ilustradores portugueses a trabalhar directamente para os Estados Unidos, mas isso acontece pela qualidade individual de cada um, e não por um qualquer interesse na BD ou autores portugueses enquanto colectivo. Agora, uma coisa é certa: internamente, isto devia servir para aumentar a atenção dada aos autores portugueses pelo público geral, inclusive o que lê alguma BD ou algum tipo de BD. E pode ser, claro, que sirva para provar que é possível, e que dê alento e energia aos muitos e bons que por cá temos e que bem mereciam cruzar fronteiras. Pode ser que isto os acicate a arriscar mais.


7. Quais foram os maiores desafios no processo de levar um livro português até uma editora de referência mundial? Como é que se consegue tal feito?

Em primeira instância, criando algo de qualidade, bem pensado e bem planeado. Sempre disse ter ambição internacional com este livro, dada a relevância quase incomensurável do autor a que presta tributo. Depois, a grande ajuda do meu querido André Lima Araújo - um dos autores portugueses com presença mais regular no mercado americano - que me deu o contacto directo do Eric Stephenson. E, na minha cabeça, ou seria a Image ou dificilmente seria outra editora. Sempre achei que tudo neste projecto tinha a cara da Image, e estou muito grato pelo Eric ter acreditado no que o Lucas e eu concretizámos. Quanto a ser um feito... prefiro antes pensar numa feliz reunião de circunstâncias. Tantas vezes não temos as coisas que sentimos merecer, que isso pode tornar-se um anátema. Desta feita, calhou bem. Alguma vez tem de ser, não é? Foi um sentimento semelhante a quando ganhei o prémio de argumento no AmadoraBD, com o "Fósseis das Almas Belas", em 2016. Depois de 3 nomeações sem prémio, já começava a desconfiar que não ia lá, pelo que foi um enorme alívio.


8. A obra tem um título muito evocativo, que muito me agrada. O que significa para ti "sonhar o impossível" - no livro e na tua própria carreira?

Diz-se por aí que tenho bastante jeito para títulos; houve pelo menos uma pessoa que mo disse. Sonhar o impossível é criar coisas que não existem e algumas que nunca existirão. Pensem em Jules Vernes, Windsor McCay, Robert Heinlein, Jack Kirby, Alan Moore, Grant Morrison, e vão perceber decerto o que quero dizer; criar e torná-lo credível dentro de um universo coeso. Já a minha carreira é diferente: tenho dado passos ambiciosos, mas comedidos, jamais sem rede, pelo menos na vertente empresarial livreira. Nos livros que escrevo, e até nos que edito, posso dar-me ao luxo de arriscar, porque estamos a falar de um nicho em que os lucros ou as perdas nunca serão relevantes. Posso dar-me ao luxo de fazer o que quero, porque se sinto que tenho coisas a dizer e histórias a contar, não vou sentir-me coartado pela pressão comercial das vendas. Tenho tido várias metas na vida - sonhos, porque não dizê-lo? - e lá tenho conseguido pôr cruzinhas na lista de desejos: ter a maior livraria portuguesa de BD, com o devido reconhecimento internacional; ser editado no estrangeiro por uma grande editora; ter pessoas que muito prezo e que me querem bem, e que sabem com o muito que podem contar da minha parte, seja a nível pessoal seja profissional; ter estado em bandas e ter gravado um disco, se bem que é na música que ainda não me sinto bem realizado; tenho sons e estilos na minha cabeça, tenho sempre coisas a dizer na minha escrita, tenho uma visão musical contemporânea bem definida, pelo que será uma questão de tempo até me reunir com outros músicos que partilhem coisas comuns para fazermos as tais coisas diferenciadas que tanto prezo, por pouco comerciais que sejam, que não é isso que me move. Por ora, está a dar-me muito gozo estar na School of Rock. Se há coisa que sei reconhecer são as minhas limitações e que, nalgumas situações, vou sempre a tempo de as mitigar.


9. Como estão a ser as reações estrangeiras a este livro? Consideras que são diferentes das reações que obtiveste em Portugal?

Estão a ser soberbas e estou muito reconfortado com isso. Três sites ou blogues de referência deram notas altíssimas ao livro, notas à Hugo Pinto, mesmo, fora vários comentários bem elogiosos espalhados pelas redes sociais. Além disso, o Lucas e eu fomos convidados para um podcast americano de rara longevidade, que conta já com 300 episódios no activo. Comparativamente, sim, diria que estou a ter bastante mais atenção e reacções que no meu próprio país. Corrijam-me se estiver enganado, mas julgo que foste o único divulgador português a dar o devido destaque ao livro e, se bem me recordo, até o consideraste a melhor BD portuguesa de todos os tempos daquele mês :D E, já sei que haverá quem pense que eu não deveria confessar isto publicamente, mas fiquei profundamente desapontado por o livro não ter sido nomeado para melhor obra portuguesa nos prémios AmadoraBD do ano passado. Atónito, não, porque já pouco me admira; mas desapontado, e muito, ah isso sem dúvida.


10. A crítica e leitores portugueses não sabem valorizar aquilo que de bom têm?

Diria que já estavas a adivinhar a minha resposta à pergunta anterior. Bom, acho que às vezes sim, outras não. Ou tende muitas vezes a centrar-se toda a atenção e frenesi em dois ou três autores (e estou a ser generoso), ignorando-se olimpicamente quase todos os outros. Não duvido que existe uma franja de leitores, os mais conservadores dos conservadores, que considera a BD de autores portugueses como coisa menor. Uns por ignorância, por acharem que não vão gostar, mesmo sem terem lido; outros, porque o tal gosto ultraconservador os afasta de coisas potencialmente mais desafiantes. Temos belíssimos autores, e só não se produzem livros ainda melhores porque o mercado é exíguo em dimensão e retorno financeiro e não permite obras de fundo, salvo honrosas excepções. Leio muita BD, em diversas línguas e formatos, e garanto-vos, por exemplo, que os nossos argumentistas são, de longe, dos mais evoluídos tecnicamente. E sim, escrever BD é das coisas mais técnicas que possam imaginar, talento ou inspiração à parte. Imaginam o que seriam romances gráficos com mais de 200 páginas escritos pelo André Oliveira, pelo David Soares, pelo Nuno Duarte, pelo Fernando Dordio, por mim até, só para citar os que me são mais próximos? Eu imagino. Eu sonho. Mais uma coisa para a lista a concretizar. Voltando atrás, há quem me critique por ser vocal, em particular quando falo do ultraconservadorismo do leitor médio português; porque tenho uma loja, porque tenho uma editora, porque fulano ou sicrano. Não ofendo ninguém, critico apenas posturas e certas obras, e mal seria se, aos 53 anos, não tivesse coragem ou legitimidade para poder dizer algumas das coisas que penso. Comigo, pelo menos, sabem com o que contam, sem falsas palmadinhas nas costas. Quem quiser uma crítica ou opinião sincera e sustentada, sabe onde me encontrar; para nacionais-porreirismos, dirijam-se à repartição mais próxima.


11. Que expectativas tens em relação ao impacto que o livro poderá ter no público norte-americano e internacional?

Espero que seja lido, seja comprado, emprestado ou roubado, que falem dele e que escrevam sobre ele, e que sirva, à sua maneira, para continuar a informar as pessoas de certos mitos e falsidades corporativas alimentadas ao longo de 60 anos. Como disse atrás, a reacção até ao momento dificilmente poderia ter sido melhor. E sinto, com enorme felicidade, que, progressivamente, há cada vez mais profissionais da indústria e simples leitores a reconhecerem publicamente Jack Kirby como o verdadeiro visionário, o verdadeiro criador, o verdadeiro sonhador dos mundos impossíveis. Poderá demorar algumas décadas, mas restam-me poucas dúvidas que, um dia, findas certas obrigações contratuais, possamos começar a ver os verdadeiros créditos nas histórias da Marvel dos anos 60, com "created by Jack Kirby with Stan Lee" e "story and art by Kirby" e "dialogue by Lee". De resto, ser-se publicado numa editora como a Image poderá, espero eu, despertar a cobiça de outras editoras noutras partes do mundo, em particular Espanha e França. Vamos ver o que virá por aí.


12. Como autor, há diferenças entre criar para o público português e criar para um público global... ou uma coisa não influencia a outra?

Tecnicamente falando, não. Diria que a grande diferença estará no tema a abordar. Este "The Man who dreamt the Impossible" é uma história talhada para o mercado americano, porque homenageia Jack Kirby e vários dos seus pares e, sendo uma história universal, fala de autores, editores e homens de negócio americanos. Revertendo aqui o pensamento, um livro como o "Há quem queira que a luz se apague", que fiz com o Derradé e a Beatriz, tendo um apelo universal, foi pensado para o leitor português habitual, na figura dos seus protagonistas: o próprio Dário e o Álvaro, com o Rui Brito como Supremo Líder ditatorial. Fora do ciclo da BD, é um livro que perde esse ingrediente extra. O próprio "Fósseis das Almas Belas" está profundamente enraizado na História e mitos dos "descobrimentos" portugueses, pelo que seria menos apelativo para um estrangeiro, disso não duvido.


13. Para terminar: olhando para este feito alcançado, sentes que este é o culminar de um sonho ou apenas o início de uma nova fase na tua carreira como autor?

É mais um sonho concretizado, mas jamais o culminar. Espero ainda ter mais uns 30 anos pela frente, pelo que sei lá eu o que ainda vou fazer nas décadas que me restam. Para já, e isso é certo, sei o que vou, aliás o que estou a fazer nos próximos tempos. Mais um livro com a Alice Prestes, este a andar bem mais devagar que o primeiro; outro com o Dário e a Beatriz, que sairá forçosamente para o ano, porque será a comemoração dos 20 anos da minha actividade editorial; e nada melhor que uma história com as duas personagens que começaram isto tudo: o Pig e o Inspector Franco, numa narrativa plena das bizarrias que me caracterizam e com a particularidade das personagens terem envelhecido em tempo real, pelo que contem com um Pig com 50 anos e um Franco já nos 78. Ah, e se forem adeptos do Belenenses, preparem-se!

Além disto, o meu magnum opus de longa duração vai por ora na página 40, pelo que contem com mais um par de anos ou dois, pelo menos, para terem "O Último Pollock" nas mãos; e já tenho nova coisa apalavrada com o Sérgio Marques, meu emérito colaborador no "Fósseis", uma história com laivos lovecraftianos passada num mosteiro há muito abandonado, em Pitões das Júnias, Montalegre. E outras ideias não me faltam, em particular umas coisas bem negras que fariam o "Vinil Rubro" parecer coisa para meninos de coro, mas há que ter prioridades e ir fazendo uma coisa de cada vez. Duas, pronto, que menos que isso não consigo ;)



1 comentário:

  1. Os meus sinceros Parabéns aos Autores. Boa entrevista! Que seja o inicio de muitas publicações a sair lá fora.

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