Entre os numerosos lançamentos de banda desenhada que, durante o ano 2024, a editora ASA fez, um dos que mereceu a minha curiosidade foi Senhor Apothéoz, da autoria de Julien Frey e Dawid, que a editora portuguesa publicou há algumas semanas.
Lembro-me que já tinha folheado a edição original francesa e tinha ficado muito bem agradado com as ilustrações de Dawid que se apresentavam verdadeiramente apelativas, enquanto que a história prometia ser interessante e original. Depois de feita a leitura, confirma-se que as ilustrações são uma pequena maravilha, sim. Mas já no que diz respeito à história arquitetada por Julien Frey, e mesmo podendo a mesma ser original, há certas opções que a tornam algo infantil e inverossímil em demasia, impedindo que a mesma seja tão boa quanto poderia ser. Imaginem um filme aparentemente adulto e sério que, nas últimas cenas, opta por não ser sério e por se tornar um pouco silly... é assim que este Senhor Apothéoz funciona.
A premissa da história é bastante interessante. O protagonista é Théo Apothéoz, um jovem que tem deixado a vida passar por si sem que tenha tentado alcançar os seus sonhos. E tudo isso por causa de uma "maldição". Nas gerações que o antecederam, os seus familiares acabaram por morrer sempre em condições funestas quando procuravam alcançar algum feito. Théo passou, pois, a acreditar que o seu nome de família trazia má sorte e que o melhor seria não tentar coisa nenhuma. Simplesmente sobreviver no lugar de viver. Tem 30 anos e vive com o seu pai, um alcóolico que vendeu a casa da família na modalidade de anuidade vitalícia. Ou seja, quando o pai de Théo morrer, a casa onde ambos vivem passará a ser posse de outro proprietário.
A par disto tudo, Théo continua a amar Camile à distância. Desde os seus tempos de escola que Camille era a sua paixão, mas pelo tal medo de que algo corresse mal, Théo acabou sempre por não revelar nada a Camille, fazendo lembrar o heterónimo de Fernando Pessoa, Ricardo Reis, que, antevendo a indubitável tragédia e perda, preferia não avançar na vida, na busca pelos sonhos e por uma plenitude existencial.
O que nos leva a uma componente muito filosófica neste Senhor Apothéoz. A narrativa gira em torno de questões existenciais e humanísticas, propondo uma reflexão profunda sobre o sentido da vida e da morte, a natureza humana e a busca por propósito. Deveremos, afinal de contas, sucumbir aos próprios demónios que temos na nossa mente ou devemos ir à luta pela busca da felicidade, com unhas e dentes, porque, na maior parte das vezes, a verdadeira razão para que não a encontremos reside em nós mesmos?
Entretanto, Théo dá de caras com Antoine Pépin, um célebre escritor em crise criativa, que acaba por ser o propulsor para que algo mude na vida de Théo e este tente dar um passo na conquista da sua amada de sempre, Camille, que entretanto tem agora uma relação amorosa que não a deixa feliz. A partir daqui, a história começa a mudar de forma radical. O fio condutor, verossímil ao início, transforma-se numa sucessão de eventos que parecem saídos de um filme para adolescentes imberbes.
A história parecia uma coisa, mas acaba por se revelar outra, pois, sensivelmente a meio da trama, parece que o argumentista tomou qualquer substância psicotrópica que faz com que a história passe a ser uma comédia negra, com cadáveres por esconder à mistura. Se gosto de ser surpreendido nas leituras que faço e se reconheço que, por vezes, as histórias até são bastante expectáveis, não havendo muito lugar a surpresas narrativas, também acho que o preço a pagar por enredos que mudam bruscamente é que, a história acabe por nem ser "peixe", nem ser "carne". E é assim que é Senhor Apothéoz: nem é uma história série a profunda que nos faz pensar e refletir - embora o tente fazer um bocadinho - nem é uma história para rir à séria, carregada de humor negro - embora também o tente ser um bocadinho. O resultado é interessante e, sem dúvida, original, mas torna a obra mais esquecível do que o esperado e os dois universos, pelo menos da forma como nos são apresentados, não casam muito bem entre si. E é uma pena, pois parece-me que o livro tinha todos os ingredientes para ser um dos meus favoritos do ano.
Até porque o arranque do livro é verdadeiramente promissor. Com a história contada na primeira pessoa, facilmente o leitor sente empatia com o protagonista. E a forma como a história e a já referida "maldição" vão sendo apresentadas, é muito boa. Contudo, à medida que a leitura vai avançando, o livro acaba por desiludir em termos de história. É verdade que é claro que a intenção do autor é que o próprio livro seja leve - e não há qualquer mal nisso - e também é verdade que há aqui várias alegorias presentes que não devem ser levadas à letra, mas sim reinterpretadas para a vida que levamos. Mesmo assim, achei que houve uma certa incoerência ou mesmo infantilidade na forma como a história vai sendo desabotoada. Continua a ser um livro bom, não nego, mas falha em ser um livro mais especial do que aquilo que poderia ter sido. E, portanto, é uma obra que vai para aquelas mais olvidáveis. Quando, daqui a uns meses, me perguntarem se li Senhor Apothéoz, o mais provável é que a minha resposta seja: "Sim, li. Tinha boas ideias, mas o argumentista enterrou-se. Porém, os desenhos são lindos".
Sim, focando na questão das ilustrações de Dawid, há que dizer que as mesmas são absolutamente belas e cativaram-me da primeira à última vinheta. O traço do autor apresenta um estilo bastante "cartoonesco", mas com as expressões das personagens a irradiarem uma humanização e uma certa poesia visual que nos aquece a alma. E para isso também contam as cores, em tons acastanhados a aguarela, que embrulham o grafismo da obra numa certa sensação outonal que, não só é singular, como é verdadeiramente bela e contribui para a tal sensação de conforto que a história respira. Pelo menos, na parte inicial da história, lá está. Do ponto de vista da ilustração, até considero este um dos meus livros favoritos do ano.
A edição da ASA apresenta capa dura baça, bom papel brilhante no miolo e uma boa encadernação e impressão. No final, há um breve caderno gráfico com esboços e estudos de capa de Dawid.
Em suma, Senhor Apothéoz, em gíria futebolística, é um belo remate que... não só não dá golo, como sai bastante ao lado. Poderia ser muito mais do que aquilo que é se o argumentista tivesse uma ideia mais clara daquilo que pretendia para a história. Não há dúvidas de que a bipolaridade do enredo torna a experiência de leitura original, mas no final da mesma é bem possível que fiquemos com uma mão cheia de nada - ou com uma mão meio vazia, vá - quando a história tinha potencial para tanto mais. Além disso, refira-se com justiça que os desenhos de Dawid tornam este livro verdadeiramente acolhedor e belo. Pena que a história não esteja ao nível dessa qualidade superior.
NOTA FINAL (1/10):
7.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Senhor Apothéoz
Autor: Julien Frey e Dawid
Editora: ASA
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 206 mm
Lançamento: Outubro de 2024
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