Uma das obras lançadas na mais recente Coleção de Novelas Gráficas da Levoir e do Público que mais curiosidade estava a despertar em mim, era este Chumbo, do autor brasileiro Matthias Lehmann, que tem sido aclamada por público e crítica e que a Levoir optou por editar para o mercado nacional em dois volumes.
Depois de lida esta obra de grande fulgor, com quase 400 páginas, em que o autor nos leva numa grandiosa viagem que perpassa os últimos 60 anos da história político-social do Brasil, enquanto nos aproxima de uma saga familiar em duas gerações, posso dizer que fiquei encantado e muito bem impressionado! Eis o livro que, a par com o igualmente impressionante Kobane Calling, de Zerocalcare, está entre as duas melhores obras lançadas pela Levoir em 2024.
Este é, afinal de contas, um daqueles livros que nos dá muito, quer em quantidade, quer em qualidade, deixando-nos mais ricos após finalizarmos a sua leitura. E embora haja aqui uma forte componente histórica, em que o autor, que é filho de pai francês e de mãe brasileira, nos mergulha de forma profunda, apreciei especialmente o facto do foco da obra ser a caminhada da família Wallace que, pela sua influência, timing e longevidade, percorre uma fase tão relevante do Brasil como os chamados "anos de chumbo", em que a ditadura instalada em terras de Vera Cruz tomava conta dos desígnios do país.
A história arranca com uma primeira parte a focar-se na personagem de Oswaldo Wallace, o patriarca da família, que, curiosamente, é inspirado no avô do autor. Estamos na época em que Getúlio Vargas se encontra no poder. Oswaldo, por sua vez, é dono de uma influente mineradora que o faz tomar contacto com as mais eminentes personalidades do topo social da sociedade local. À medida que nós, leitores, vamos acompanhando a mão firme com que Wallace desenvolve os seus negócios, vamos igualmente mergulhando na vida da sua mulher e dos seus filhos, que são cinco, com especial destaque para os dois irmãos Ramires e Severino que as circunstâncias da vida e os próprios valores pessoais basilares de cada um, colocam em polos opostos. Com efeito, os dois irmãos não poderiam ser mais diferentes: Severino é jornalista e escritor, opondo-se ao regime militar e desenvolvendo um pensamento comunista. Já Ramires, apresenta-se com ideias mais conservadoras e próximas do militarismo então reinante. As circunstâncias da vida de ambos vão, depois, colocá-los muitas vezes frente e frente e, em casos mais raros, a remar no mesmo sentido. Pelo meio, ainda acompanhamos a vida das suas três irmãs que também seguem caminhos diferentes entre si.
Se no início da obra acompanhamos os anos em que era o conservadorismo militar que governava o país, numa segunda fase, assistimos à tomada do poder por parte do comunismo que, indubitavelmente, agitou as estruturas mais conservadoras da sociedade brasileira. É verdade que, por vezes, o livro se pode tornar algo denso, com muita informação a ser-nos dada em barda e com muitas personagens que, a certo momento, poderemos confundir entre si. Além disso, também senti que, em alguns casos, o autor deu muito destaque a algumas personagens secundárias que, depois, acabaram por ficar esquecidas com o desenrolar da história. Mas, lá está, isto são coisas menores numa obra tão grandiosa que, quanto a mim, todos deverão ler.
É-me difícil falar mais da história deste livro, pois sinto que este é um daqueles casos em que a história é tão completa/complexa que ou falamos de tudo e mais alguma coisa, destruindo, com isso, o prazer de leitura daqueles que lerão a obra depois deste meu texto, ou então parece que não contamos nada de especial, pois os acontecimentos estão demasiada e organicamente bem encadeados entre si. Como acontece com a vida real. Mesmo assim, posso dizer-vos que aquilo que se retira da leitura desta grandiosa obra é o detalhado retrato, repleto de nuances e idiossincrasias, que o autor consegue fazer de toda a sociedade brasileira. Com as coisas boas e com as coisas más, como um bom retrato que se preze deve possuir.
Nota ainda, positiva, para as personagens imaginadas pelo autor que são profundas e bidimensionais, tornando-se mais verossímeis. Todas elas têm algumas qualidades, mas todas elas têm profundos vícios e defeitos que fazem com que a imersão do leitor seja ainda maior.
O traço a preto e branco puro do autor - que até marcou presença no último Amadora BD para o lançamento desta obra - apresenta-se bastante "cartoonesco" e rico em detalhes, que dão riqueza visual à obra. Este não é um daqueles livros em que nos basta olhar para três ou quatro páginas para percebermos "ao que vamos". Não, porque o autor tenta constantemente recriar-se, através de uma muito inventiva planificação, que desconstrói alguns dos cânones clássicos da banda desenhada, enquanto que, noutros casos, os desenhos também se apresentam diferentes, através de grandes ilustrações de página dupla que contrastam com outras páginas onde as vinhetas são mínimas em dimensão. Não se pode dizer que, apesar do volumoso número de páginas, Lehmann não se esforce - com sucesso - para que a leitura não fique repetitiva. Dou destaque a uma longa cena muda, sem o recurso a qualquer balão de fala, onde o autor nos apresenta o romance vivido por Severino. Verdadeiramente brilhante!
Muito relevante também é a forma como o autor reproduz visualmente este período histórico brasileiro, com a introdução de cartazes publicitários, artigos de jornal e documentos históricos que, naturalmente, aumentam o cariz documental da obra e a sua dinâmica visual.
Em termos de edição, relembro a opção da editora Levoir por dividir a obra original em dois volumes. Algo que, bem sei, desagradou a muita gente. Podemos fazer um esforço para compreender que a editora tenha optado por dividir a obra em duas partes de modo a não tornar o livro demasiadamente extenso para a coleção que, relembro, não costuma ter livros tão volumosos em número de páginas - e, mesmo assim, recordo que, na mesma coleção, a Levoir editou, há uns anos, e num só volume, a obra O Idiota, de André Diniz, que tinha mais páginas do que este Chumbo. Não obstante essa tentativa de compreensão da nossa parte, e tendo em conta que a editora tem estado a editar algumas obras fora da coleção das novelas gráficas, como Dissident Club, Kobane Calling ou A Árvore Despida, com um preço diferente e mais elevado do que os da coleção, parece-me que teria sido mais apropriado que a editora lançasse Chumbo num só volume e fora da coleção. Mesmo que o preço da mesma fosse mais elevado, a edição e a fidelidade perante a obra original acabaria por sair beneficiada. Mas são opções. Compreendo que, por outro lado, a introdução desta obra na coleção também aumentou a qualidade e appeal comercial da mesma.
De resto, os dois livros apresentam capa dura baça, bom papel baço no interior e boa impressão e encadernação. No final do segundo volume, há um texto adicional do autor Matthias Lehmann. Nota positiva para a segunda capa do livro que, quanto a mim, até é bem mais apelativa do que a capa do primeiro volume, igual à versão original da obra.
Em suma, Chumbo é mais outra das grandes obras de banda desenhada editadas em Portugal durante o ano de 2024 que, provavelmente, se assume com um dos melhores anos de sempre no nosso país, no que à quantidade de obras com enorme qualidade intrínseca diz respeito. Chumbo é pesado como chumbo em termos de qualidade e deve ser lido por todos!
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Chumbo - Parte 1
Autor: Matthias Lehmann
Editora: Levoir
Páginas: 224, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270 mm
Lançamento: Setembro de 2024
Autor: Matthias Lehmann
Editora: Levoir
Páginas: 168, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 mm x 270 mm
Lançamento: Outubro de 2024
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