sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Análise: O Silêncio de Malka

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero

Inserida na Coleção Angoulême, que a editora Devir tem vindo a lançar durante este ano, está esta obra do argentino Jorge Zentner e do espanhol Rubén Pellejero, intitulada O Silêncio de Malka e que chegou às livrarias portuguesas há algumas semanas.

Este é um belo livro que nos conta a história de uma família judia que, vítima das perseguições que marcaram a Rússia no final do século XIX, é forçada a abandonar a sua terra natal e a procurar um novo futuro na Argentina. Logicamente, e esse será um dos principais focos desta obra, essa mudança não é apenas geográfica, mas também cultural e espiritual, pois contrariamente ao que poderiam desejar, estes recém-chegados da Rússia à Argentina, enfrentam a dureza do trabalho agrícola e a adaptação a um território desconhecido, onde os migrantes são tratados com desdém pelos locais. Infelizmente, é algo que, passe o tempo que passar, parece continuar a assolar a sociedade. Se calhar, é algo que está adjacente ao facto de os humanos não serem tão humanos assim, diria eu.

Mas avancemos.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
O Silêncio de Malka
 é constituído por seis histórias distintas, cada uma centrada num momento ou período específico, que em conjunto formam um retrato profundo da experiência dos imigrantes russos na Argentina. No centro do enredo, está Malka, uma criança cuja inocência contrasta com as duras realidades que a vão rodeando desde tenra idade. A sua voz - ou melhor, o seu silêncio - funciona, pois, como símbolo da sua vulnerabilidade, mas também da sua resiliência, já que, convenhamos, se resistir a um destino malfadado não é tarefa fácil, imaginem fazê-lo sem poder falar. Há silêncios que são mais ruidosos do que muitas palavras ocas e insípidas e essa é a metáfora mais presente neste O Silêncio de Malka.

Os seis capítulos que compõem a obra, mesmo fazendo parte de um todo, apresentam alguma independência narrativa, podendo até ser lidos de forma isolada. À primeira vista, o leitor poderá ficar com a ideia de que Zentner não tinha uma estrutura narrativa fechada quando começou a escrever a obra e que foi acrescentando episódios ao longo do tempo. Consequentemente, essa fragmentação inicial pode dar a sensação de que não existe uma orgânica muito forte entre todas as partes. Confesso-vos que dei comigo a sentir isso à medida que lia a obra. Mas uma segunda leitura, com mais atenção a algumas pistas deixadas pelo argumentista, permitiu-me constatar que cada capítulo tem uma ligação subtil com os outros, compondo, no fim, um quadro muito mais coeso do que se poderia supor.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
Esse aspeto faz com que a leitura seja enriquecedora, sendo possível encontrar ecos, símbolos e pequenos detalhes que estabelecem pontes entre pequenos eventos que poderiam parecer soltos ou independentes. Este é, portanto, um daqueles casos em que a narrativa ganha profundidade ao ser revisitada, demonstrando que a fragmentação aparente é, na verdade, uma forma de refletir a própria condição das personagens, feita de momentos dispersos que só no tempo se consolidam num todo mais profundo.

Outro elemento notável deste O Silêncio de Malka é a forma como a obra equilibra fantasia e realidade. Quem acompanha as minhas análises já se deve ter dado conta que, por vezes, eu tenho uma certa tendência a considerar que "demasiada fantasia" pode arruinar os intentos narrativos de uma obra. Como o "céu é o limite" na utilização da fantasia, dou-me conta de que muitos autores se deixam levar por essa atratividade mas deixando, depois, que as suas obras fiquem inverossímeis ou demasiado imberbes. Em O Silêncio de Malka há fantasia, sim, mas de um modo temperado e equilibrado, abrindo o véu para uma reflexão mais profunda, mas através de uma postura credível ou, pelo menos, sensata. Há, de facto, momentos em que elementos mágicos, inspirados tanto pela tradição judaica da Torá como pelas crenças populares da Argentina rural, atravessam a narrativa. Esses episódios não são meras fugas para o irreal, mas funcionam como metáforas das esperanças e medos das personagens. E ao conjugar o fantástico com o registo mais histórico e informativo do livro, Zentner constrói um retrato complexo que ultrapassa a simples crónica da migração dos russos.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
Este equilíbrio entre fantasia e realidade também contribui para que a obra seja envolvente sem perder densidade. Por um lado, mergulha o leitor na experiência concreta dos migrantes russos que procuraram uma vida melhor na Argentina; por outro, abre espaço para a imaginação e para o intangível, como se nos sugerisse que toda a experiência humana é atravessada por forças invisíveis, sejam elas religiosas, culturais ou emocionais. Gostei desta profundidade temática.

O livro peca apenas, na minha opinião, por ser algo curto. Fico com a ideia que, com mais algumas páginas, certos eventos poderiam ter sido mais bem retratados.

O traço de Rubén Pellejero é outra das coisas que merece destaque absoluto. O estilo daquele que haveria de se tornar no ilustrador da atual série Corto Maltese, é, nesta obra, original e familiar ao mesmo tempo, conseguindo criar empatia imediata com o leitor. As expressões faciais, os cenários e a caracterização das personagens são muito belos e conseguem transmitir uma humanidade palpável. Além disso, as cores utilizadas são belíssimas, conferindo uma atmosfera particular a cada capítulo. É um trabalho de cores que não serve apenas para embelezar a obra, mas também para reforçar o tom emocional de cada episódio. Aprecie especialmente esta vertente cromática da obra.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
A beleza dos desenhos faz com que, mesmo nos momentos mais duros da narrativa, haja sempre um espaço para a contemplação estética. Pellejero consegue transformar a dor, o desespero ou a solidão em imagens de grande impacto, sem nunca resvalar para a gratuitidade. 

Em termos de edição, o livro apresenta capa dura baça e bom papel baço no interior. O trabalho de encadernação e impressão também é bom. O livro é ainda composto por um epílogo de três páginas, alguns esboços de Pellejero e um texto sobre a obra, da autoria de Benoit Mouchart. Há também um texto introdutório à obra por parte de Zentner. São generosas 26 páginas de extras. A edição continua ter o formato de 17 por 24 cms. Um formato que muitos consideram pequeno em demasia. Não diria que seja grande, mas no caso em concreto, sinto que a leitura não sei prejudicada pela escolha deste formato.

Em suma, O Silêncio de Malka é uma obra comovente e sofisticada, que combina narrativa histórica, fantasia simbólica e belos desenhos de Pellejero. A parceria entre este e Zentner resulta num livro belo e melancólico, que fala da dor do exílio, da força da memória e da capacidade de resistência das comunidades perseguidas. Eis um livro que espero que não orbite fora dos radares dos leitores portugueses.


NOTA FINAL (1/10):
8.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir

Ficha técnica
O Silêncio de Malka
Autores: Jorge Zentner e Rubén Pellejero
Editora: Devir
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Junho de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Kingpin Books nos últimos 5 anos!


Hoje apresento-vos os 10 livros mais relevantes que li da editora Kingpin Books e que foram lançados nos últimos 5 anos, período de existência do Vinheta 2020.

A Kingpin Books foi responsável pela produção e lançamento de muita da banda desenhada nacional - e não só - relevante que foi editada em Portugal nos últimos 15 anos. Infelizmente, a cadência editorial da editora portuguesa decaiu um pouco nos últimos anos, embora a qualidade dos livros editados continue a ser muito boa. Dito por outras palavras, são poucos, mas bons os livros que têm saído da fornalha da Kingpin.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Sem mais demoras, eis aqueles que considero que são os 10 melhores livros de banda desenhada editados pela Kingpin entre 2020 e 2025.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Análise: Akira – Livro 1

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House
Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo

Sem desprimor para as restantes obras editadas pela Distrito Manga, uma chancela do grupo Penguin, a recente publicação da obra-prima do autor Katsuhiro Otomo, intitulada Akira, reveste-se como a melhor aposta da editora até à data!

Este clássico intemporal do mangá e da cultura popular japonesa, que desde o seu lançamento original já teve eco em todo o mundo, até já havia sido integralmente publicado em Portugal pela Meribérica durante os anos noventa. Nessa altura, optou-se por publicar a série com o sentido de leitura ocidental, da esquerda para a direita, e numa versão a cores que havia sido especialmente (e originalmente) produzida para o mercado americano por se acreditar, à época, que essa seria a melhor forma de fazer chegar um mangá ao mercado norte-americano. Talvez por esse motivo - desta obra ter sido lançada em Portugal nessa mesma versão a cores - eu e muitos dos leitores portugueses, tivemos o primeiro contacto com a série desse modo. Mas, quanto a esse ponto, já lá irei.

Situada numa Neo-Tóquio distópica após a destruição nuclear de 1982, a história acompanha Kaneda, Tetsuo e outros jovens mergulhados num turbilhão de conspirações militares, experiências secretas e no despertar de poderes psíquicos devastadores. Aquando do seu lançamento, Akira conseguiu romper com a estética mais convencional dos mangás da altura, introduzindo um traço detalhado, urbano e incrivelmente cinematográfico, que teve repercussões em todo o mundo, sublinho. 

A cidade de Neo-Tóquio, uma metrópole erguida sobre as ruínas de Tóquio após uma explosão misteriosa que desencadeou a Terceira Guerra Mundial, e um local onde as ruas passaram a estar abarrotadas de gangues, corrupção política e marginalidade, é um cenário que respira inquietação e que se afirma como uma personagem per se. Nesta distopia carregada por um ambiente caótico e opressivo, são as personagens Kaneda e Tetsuo, dois jovens rebeldes, que, juntamente com os seus amigos do  gangue, montam velozes motas, vagueando pelas ruas em busca de velocidade, adrenalina e confrontos com outros grupos rivais. 

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House
O eixo central da narrativa reside, pois, na amizade  - e posterior confronto - entre Kaneda e Tetsuo, dois adolescentes que acabam por simbolizar diferentes respostas à marginalidade que se faz viver na cidade. Kaneda é carismático e impulsivo, encarnando o espírito da juventude rebelde que prefere agir em vez de refletir. Já Tetsuo, é alguém inseguro e sempre na sombra do amigo, que encontra nos seus novos poderes adquiridos uma oportunidade de afirmação. 

De resto, o "enigma de Akira", ainda apenas meramente sugerido neste primeiro volume, funciona como motor narrativo. Este enigma não é apenas uma força destrutiva do passado, mas também uma ameaça latente, algo que todos temem, mas ninguém compreende inteiramente. Essa presença invisível ecoa a ideia de que a verdadeira catástrofe nunca está distante, e de que o ser humano, ao brincar com forças que não controla, arrisca a sua própria autodestruição.

Akira apresenta-se como uma obra de entretenimento puro e duro, mas que traz consigo uma alegoria política e existencial. E que, mais de três décadas depois, permanece uma referência incontornável, não apenas pela sua estética revolucionária, mas pelo modo como articula caos, poder e humanidade através de uma narrativa que continua atual e provocadora. O seu impacto foi tal que, quando o anime estreou em 1988, já havia uma base de fãs global. O próprio anime haveria de constituir um marco no cinema de animação e no anime, em particular, passando a ser uma obra de culto. Contudo, e obviamente, o mangá original vai muito além do filme, tanto em profundidade narrativa quanto em densidade temática. 

Por falar em densidade temática, convém ainda dizer que outro dos trunfos de Akira é o facto da série ser um dos pilares do cyberpunk. A fusão entre tecnologia avançada e decadência social, a crítica ao autoritarismo, a presença de poderes paranormais como metáfora para forças incontroláveis e a representação da juventude como resistência contra estruturas opressivas são elementos que influenciaram não apenas outros mangás, mas também várias outras obras da literatura, do cinema e dos videojogos. 

O estilo visual de Otomo é um dos grandes trunfos de Akira. Desde as primeiras páginas, o desenho expressivo, dinâmico e minucioso constrói uma cidade vibrante, mas sufocante, onde cada rua, cada veículo e cada detalhe arquitetónico transmite verosimilhança. Mais do que um simples pano de fundo, a cidade é o reflexo de uma sociedade em colapso, onde a juventude procura escape em motas potentes e confrontos violentos. A própria iconografia das motas tornou-se tão emblemática que hoje é indissociável do imaginário da obra.

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House
E, também por isso, há uma sensação de velocidade que está sempre presente em Akira. Otomo utiliza enquadramentos cinematográficos, linhas de movimento e sequências longas de perseguições para transmitir essa urgência quase palpável que arrasta o leitor para este ritmo acelerado, como se estivesse dentro das corridas nocturnas pelas ruas de Neo-Tóquio. 

Falando dos desenhos e da componente visual da obra, e mesmo que possa chocar o leitor mais purista que me leia, tenho que referir que teria preferido que a obra fosse reeditada a cores. E quando digo isto, não é apontando alguma falha à edição da Distrito Manga. Até porque a editora portuguesa se limitou a ser fiel à edição original da obra, editando-a a preto e branco, da forma que foi originalmente concebida por Otomo, e com o sentido de leitura japonês. Nada de negativo pode, portanto, ser dito acerca dessa opção. Além de que também compreendo que se esta obra fosse lançada a cores, possivelmente teria um preço muito mais avultado. E talvez as cores ainda necessitassem de um tratamento especial. No entanto, e admitindo que talvez o meu julgamento seja condicionado pelo primeiro contacto que tive com esta série na sua versão a cores, quando penso em Akira, penso numa banda desenhada a cores. E era essa que, teimosamente, eu gostaria que voltasse a chegar às livrarias portuguesas. Deste modo, sou-vos sincero quando vos confesso que reler esta série a preto e branco me deixou saudades da edição a cores.

Quanto à edição da Distrito Manga, o livro tem capa mole e uma sobrecapa baça. No interior, o papel é de boa qualidade e a impressão e encadernação são boas. As guardas do livro, a cores, são particularmente impactantes e bonitas.

Em suma, a Distrito Manga merece uma vénia pela aposta neste mangá. Relevante ainda hoje, Akira mantém a sua frescura pela forma como aborda questões universais: a luta pelo poder, a fragilidade da amizade, o medo do desconhecido e a desconfiança nas instituições. A estética visual continua impressionante, e a narrativa, carregada de urgência, não perdeu intensidade com o passar das décadas. A mestria de Otomo está em equilibrar o seu espetáculo visual com uma reflexão profunda sobre o poder e a violência. Essa combinação garante que Akira permaneça, ainda hoje, não apenas uma leitura “apetecível”, mas um clássico indispensável da banda desenhada mundial.


NOTA FINAL (1/10):
9.4



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House

Ficha técnica
Akira – Livro 1
Autor: Katsuhiro Otomo
Editora: Distrito Manga
Páginas: 352, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 178 x 256 mm
Lançamento: Junho de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Polvo nos últimos 5 anos!



Cá estou eu para mais um TOP 10 com a melhor banda desenhada editada nos últimos 5 anos em Portugal! Hoje é dia de ficarmos a conhecer quais os melhores livros de BD que a editora Polvo lançou nos últimos 5 anos.

A Polvo é uma das editoras de banda desenhada mais antigas em Portugal, tendo já editado perto de 200 livros, desde o seu início de atividade há quase 30 anos. Sendo uma editora de cariz independente, não tem uma assiduidade muito constante no lançamento de novos livros, ao longo dos meses, embora, todos os anos, seja quase garantido que haverá novos livros desta editora a serem lançados por alturas do Amadora BD

Com um catálogo que se concentra numa clara aposta em obras de origem brasileira, a editora tem também editado muitas obras de referência de autores nacionais, bem como de outros autores europeus.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a "crème de la crème" de cada editora.

Deixo-vos então, as 10 melhores BDs editadas pela Polvo nos últimos 5 anos.