Da autoria do canadiano Guy Delisle, a editora Devir brindou os leitores portugueses com este Crónicas da Brimânia. Do mesmo autor, a editora já havia lançado Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte (que também recebeu recentemente uma segunda edição da Devir) e Shenzhen – Uma Viagem à China. Dentro deste estilo, de crónica política de viagem, fica, deste modo, a faltar apenas a versão portuguesa de Crónicas de Jerusalém. Quem sabe, não estará para breve esse lançamento.
Por agora, cabe-me um olhar atento a este Crónicas da Birmânia. Tal como nos outros trabalhos de Delisle, estamos perante um livro de pequenas rábulas e apontamentos narrativos, que nos são dados através de breves histórias, com cerca de uma ou duas páginas, em que o autor nos conta as suas passagens do dia-a-dia. Como a mulher de Guy Delisle, Nadège, trabalha na Organização Médicos Sem Fronteiras, isso faz com que Nadège seja alocada em várias Missões dessa Organização, em locais bem distantes do mundo ocidental. O que permite a Guy Delisle que, através das longas estadias de trabalho da sua mulher, possa encontrar nelas o(s) tema(s) e o(s) ambiente(s) exótico(s) e alternativo(s) adequado(s) para a construção das suas histórias, vistas enquanto outsider. Também foi assim nas suas outras obras. E, desta vez, o destino do casal e do filho de ambos, é a Birmânia, também conhecida como Myanmar.
E este livro, assim como os outros trabalhos do autor, acaba por funcionar mais como um diário de viagem - ou de estadia, vá – do que como um conjunto de crónicas. É que, mais do que fazer uma dissertação sobre os problemas políticos do país, Delisle dá-nos um conjunto de histórias que mais não são do que retalhos do seu dia-a-dia. Como é a vida na Birmânia, como é difícil ultrapassar o calor que sempre se faz sentir, como funcionam as pequenas e as grandes características do povo e da sociedade locais; e que abismo separa esse quotidiano birmanês da realidade do mundo ocidental.
E, desse ponto de vista, parece-me óbvio que a obra de Delisle seja de grande relevância. E não apenas para leitores de banda desenhada. Se alguém vai fazer uma viagem à Birmânia/Myanmar, ou se estuda relações internacionais e/ou políticas; ou se simplesmente tem vontade de saber mais sobre o país da célebre Prémio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi, terá nesta obra um importante contributo para a sua sede de conhecimento. No entanto, permitam-me não criar falsas expetativas: não pensem que Crónicas da Birmânia é um ensaio muito detalhado sobre o país. É apenas uma fonte de (algum) conhecimento. Permite-nos um breve vislumbre à temática. Isto porque o autor não parece focado em tornar a sua obra em algo meramente didático. E, por isso, acrescenta-lhe algum do seu humor.
Diria que é um humor ultra suave que, na melhor das hipóteses, me arrancou um sorriso da cara e não uma gargalhada. Tento não cair muito neste tipo de comparações porque, normalmente, acabam por ser injustas, mas olhando, por exemplo, para a série O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf que, à semelhança das obras de Delisle, também nos revela uma história real e que põe em oposição o mundo ocidental com o oriental, diria que, quer o humor, quer as situações sérias e dramáticas retratadas, são bem mais "mornas" no trabalho do autor canadiano, do que na série da autoria de Riad Sattouf. Mas, claro, trata-se de uma questão subjetiva. O humor de Guy Delisle é temperado com perspicácia mas, muitas vezes, por não procurar ter uma punchline, fica um pouco a marinar na mente do leitor, tornando a piada em algo “seco”. A meu ver, até é na narração mais séria das situações que o autor testemunha, nomeadamente quando se desloca com as equipas dos Médicos Sem Fronteiras, que o livro se torna em algo mais marcante e interessante, revelando, sem grandes dramatizações, as reais condições de vida de certas populações que (ainda) sucumbem ao vírus da SIDA ou ao vício da toxicodependência. Ou, em muitos casos, de ambos.
Há algo importante que também me merece comentário. A obra original foi lançada em 2008 e, portanto, esta versão portuguesa da obra, que em boa hora chega ao nosso país, reconheço, aparece com um atraso de lançamento de 12 anos que acaba por ficar datado numa questão central: a de Aung San Suu Kyi. É que, se em 2008, a política birmanesa ainda era vista como um ícone da liberdade e uma mártir das mãos totalitárias do aparelho de Estado, com o passar dos anos, viu a sua situação alterar-se drasticamente. Desde 2016, que passou a integrar o Governo birmanês enquanto Ministra dos Negócios Estrangeiros. E, desde então, especialmente quando, em 2017, o Exército Nacional chacinou milhares de mortos em Rakhine, passou de mártir a vilã, gerando muita controvérsia e tendo levado a que muita gente tenha pedido a Aung San Suu para renunciar ao seu Prémio Nobel da Paz. Ora, não é que a leitura de Crónicas da Birmânia saia beliscada como estes acontecimentos mais recentes. Porém, julgo que a persona da política da Birmânia ainda é aqui tratada no seu antigo estado de graça. E isso torna a leitura algo datada. Nesse sentido, penso que uma breve introdução - e atualização - ao tema, poderia ter sido benéfica para os leitores portugueses com menos informação sobre este assunto.
Em termos de arte, e mesmo sendo verdade que as capas das suas obras são sempre bem sugestivas e bem executadas do ponto de vista do grafismo e ilustração, diria que Guy Delisle apresenta um estilo simples. Seria perfeito para o cartoon americano de onde, aparentemente, faz beber as suas inspirações mas, para um estilo que procura ser mais de novela gráfica, de crónica, por vezes pareceu-me algo pobre e demasiado despido, em termos técnico-gráficos. No entanto, honra seja feita ao autor por não nos dar um conjunto de crónicas em que a parte cénica é sempre igual. E isso é algo que por vezes acontece neste tipo de banda desenhada. Com efeito, ao ilustrar as viagens que faz durante a sua estadia na Birmânia, vê-se que há um esforço em passar para o leitor as paisagens que visitou. E aí, o livro ganha em importância gráfica, além da importância do texto.
Em termos de edição, é um trabalho muito bem realizado pela editora Devir. Uma encadernação de boa qualidade, uma capa bem dura e um papel de boa gramagem fazem deste Crónicas da Birmânia um excelente “objeto-livro”. É igualmente assinalável que a Devir, que tem pautado os seus últimos lançamentos com obras do universo mangá, tenha, com esta obra, regressado ao lançamento de novela gráfica, mais direcionada para um público mais maduro.
Em conclusão, a Devir está de parabéns por ter lançado a terceira obra deste autor canadiano, tão relevante e tão apreciado no mundo inteiro. Crónicas da Birmânia, não sendo perfeita, é uma obra que merece ser lida pelos amantes de uma bd mais adulta e com um cariz mais político-social. E que tenha uma leve – levíssima! - pitada de humor. Welcome back, Guy Delisle.
NOTA FINAL (1/10):
7.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Crónicas da Birmânia
Autor: Guy Delisle
Editora: Devir
Páginas: 268, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2020
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