Não sabia bem o que esperar desta nova aposta da editora Escorpião Azul, denominada Em Redes, um álbum do autor português Xico Santos que se faz acompanhar, no argumento, pela francesa Audrey Caillat, e posso dizer-vos que fiquei rendido à relevância, maturidade, ambiente e ritmo deste novo livro. Passou a ser, quanto a mim, um dos melhores livros do catálogo da editora portuguesa.
De Xico Santos apenas conhecia o livro Vil – A Tragédia de Diogo Alves, com argumento de André Oliveira, publicado pela editora Kingpin Books. Sinceramente, e apesar de alguns bons atributos desse trabalho, esse até não foi um livro que me tenha convencido muito. Quer no argumento, quer na ilustração. E, também por isso, lá está, este novo livro que vos trago hoje, me surpreendeu bastante. E pela positiva.
O trabalho de ilustração de Xico Santos neste Em Redes parece ter evoluído bastante, apresentando várias vinhetas de belíssima inspiração e execução, numa história que tem muito de evocativa e que nos faz pensar. Se de Xico Santos eu não conhecia muito, da autora francesa Audrey Caillat eu não sabia absolutamente nada.
Lendo a nota introdutória deste livro, percebemos que Audrey Caillat não assumiu, sozinha, os desígnios deste argumento mas que, ao invés, colaborou na escrita do mesmo com Xico Santos, sendo, portanto, co-autora do argumento.
Xico Santos afirma na mesma nota que é natural da zona onde decorre a ação para este Em Redes: a zona da Ria Formosa, no Algarve. Mais concretamente, a Ilha da Culatra onde, a partir da Primeira Guerra Mundial, esta pequena ilha funcionou como um centro de aviação naval destinado à luta antissubmarinos, onde aterravam hidroaviões, já que as condições naturais da região eram perfeitas para que os franceses pudessem aterrar os seus hidroaviões que serviam de apoio à luta submarina.
Com base neste facto da história portuguesa, poucas vezes comentado ou conhecido, Xico Santos e Audrey Caillat oferecem-nos uma história que se passa em dois períodos diferentes: os anos 40 e os anos 80. Durante essas duas épocas, acompanhamos a história de duas personagens: Rafael, um solitário pescador local, e Jean, um cativante piloto francês que, já depois da Segunda Guerra Mundial terminar, nos anos 40, continua na ilha. Eventualmente, acaba por nela assentar bases e construir família com uma portuguesa dali.
E Jean não era o único a proceder de tal forma. Já antes dele, as gentes locais, quase todos pescadores ou familiares dos mesmos, tinham-se fixado na ilha recorrendo à construção de casas de madeira ilegais. E isso acaba por servir como pano de fundo para que, na segunda parte da história, que se passa nos anos oitenta, acompanhemos a reação da população local ao anúncio de demolição daquelas casas por parte do Governo português. Confrontada com esta opção governamental, a população residente nesta ilha da Culatra não teve outra opção que, mesmo protestando, ver as suas antigas casas deitadas abaixo. Tudo isto é factual e pertence à nossa história.
É esta a contextualização histórica, bem explanada, da obra, mas Em Redes é muito mais do que um livro com o propósito único de ser informativo ou histórico. Este é um livro de profunda reflexão, de profunda contemplação e de profundo amadurecimento.
É na história destas duas personagens, Jean e Rafael, aparentemente desconexas uma da outra, que reside toda a beleza deste livro. Ambas as personagens são completamente díspares mas, de algum modo, encontram pontos em comum de um modo bastante incomum. Jean é o tipo de homem que cativa todas as mulheres locais e que, eventualmente, até acaba por se casar com uma delas. Já o pescador Rafael, é daquelas pessoas lunáticas, totalmente solitárias, que até é alvo de um certo gozo e desdém por parte daqueles com quem se cruza. Mas a vida tem caminhos insondáveis. E as emoções também.
E acaba por haver (?) uma relação amorosa não resolvida entre os dois homens. Nada que seja muito denunciado, panfletário ou que tente sequer politizar o tema da homossexualidade. Nada disso. Muito mais puro, honesto e subtil que tudo isso. Tal como no ato da pesca, apenas as redes são lançadas, cabendo ao leitor a sua própria reflexão sobre o tema. A sua própria "pesca".
O tempo era outro e se calhar nem passou pela cabeça dos dois homens envolverem-se para um relação amorosa assumida que, nos dias atuais, seria algo aceitável e relativamente normal. Mas os sentimentos são coisas difíceis de contrariar e fica muito bem presente, mas sempre com a maturidade e a classe que o tema também merece, que houve algo especial entre aquelas duas personagens.
A abordagem ao tema por parte dos dois autores, através de bons diálogos que deixam certas ideias no ar sem nunca as materializar ou através de belíssimos e inspirados desenhos, que tanto evocam, de Xico Santos, tornam a obra uma verdadeira beleza. Diria até que esta história daria um ótimo filme que, mantendo o mesmo tom, poderia ser um verdadeiro sucesso.
Como se o tema, as personagens e a relação platónica vivida não fosse algo já suficientemente bom de ver e evocar, a história liga bem os pontos ao encontrar, através da questão da demolição das casas, o evento certo para uma certa resolução, uma certa conquista, um certo "silver lining" para a relação entre ambas as personagens, já com o peso da idade, mostrando que um amor ou uma admiração entre duas pessoas pode existir durante toda uma vida, mesmo quando não existe uma relação física entre ambas. Bela mensagem.
Quanto às ilustrações de Xico Santos, devo dizer que a forma como o autor representa os ambientes locais, o mar, as embarcações e as personagens, através de um traço a preto e branco, com escala de cinzentos, bem mais confiante do que em Vil – A tragédia de Diogo Alves, tal como o modo como as suas ilustrações "respiram" calmamente, com uma boa gestão de silêncios ou da cadência do tempo, me pareceram muito convincentes e em total harmonia com aquilo que a história nos procura dar.
Relativamente à edição, também é bom ver que a Escorpião Azul tem vindo a estabilizar a qualidade e homogeneidade dos seus lançamentos: o livro apresenta capa mole, com badanas, e bom papel no interior, com boa encadernação e impressão. No final, há um caderno de extras, com oito páginas, em que nos são dados muitos esboços e estudos de personagem. Como elemento diferenciador, as páginas têm na sua extremidade um tratamento a cor azul - que simboliza a cor do mar, sempre presente na história - e que, mais uma vez, oferece beleza ao objeto-livro.
Em suma, Em Redes é uma bela, subtil e madura obra. Confesso-vos: o livro tinha despertado o meu interesse, mas honestamente não esperava que fosse tão bom. Dentro das bandas desenhadas nacionais lançadas até agora, em 2024, Em Redes está claramente entre as minhas preferências!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Em Redes
Autores: Xico Santos e Audrey Caillat
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 120, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Setembro de 2024
Sem comentários:
Enviar um comentário