A leitura do recente Harlem, de Mikaël, de quem a editora Ala dos Livros já havia publicado os igualmente brilhantes álbuns Giant e Bootblack deixou-me, mais uma vez, maravilhado. Este é um daqueles álbuns que faz tudo bem: tem um bom argumento, tem um bom enredo, é educativo, tem boas personagens de quem guardamos memória já depois de finalizada a leitura do livro, tem ilustrações magníficas, cores belas e um igualmente belo trabalho de edição. Que mais podemos pedir?
Tal como em Giant e em Bootblack, este Harlem pertence à trilogia de histórias ambientadas na Nova Iorque do século passado. Cada uma destas histórias foi originalmente lançada em dois volumes e em cada um deles a Ala dos Livros optou, e bem, por publicá-los em volumes duplos integrais.
Harlem foca-se numa personagem real histórica, Stephanie St. Clair, também conhecida por Queenie, o que aumenta o cariz educativo da obra.
A ação decorre, como seria expectável, no bairro de Harlem, situado na ilha de Manhattan, em Nova Iorque. Estamos em 1931, durante a época da Grande Depressão. Os habitantes desta cidade, que por esta altura já é o centro do mundo, vivem muitas privações. E, em especial, a população negra, segregada neste bairro, diariamente vê injustiças racistas a serem perpetradas pelo regime vigente.
Porém, e apesar das difíceis circunstâncias, há uma mulher, Stéphanie St. Clair, conhecida como Queenie, que parece contrariar o regime. É mulher, é negra e profundamente rica, tornando-se influente no bairro.
Mas, e à boa maneira da cidade da qual Frank Sinatra cantava "if I can make it there, I'll make it anywhere", Queenie teve que superar muitos obstáculos e ser muito corajosa para subir a pulso até ocupar a sua posição atual. Originária das Índias Ocidentais e outrora escrava, cria a lotaria clandestina de Harlem que a torna muito poderosa e rica. Obviamente, o seu sucesso incomoda não só a polícia local, como a mafia que procura reclamar para si o império construído por Queenie.
Esta Queenie representada pelo autor francês Mikaël revela-se uma enigmática e interessantíssima personagem, da qual até já uma outra banda desenhada, intitulada Queenie: Godmother of Harlem: A Graphic Novel, de Aurelie Levy e Elizabeth Colomba, foi publicada. Com efeito, ela é uma espécie de "godmother" que terá que se envolver numa luta contra a polícia e contra a máfia. A história remete-nos, pois, para clássicos do cinema como O Padrinho, Tudo Bons Rapazes, Era Uma Vez Na América, entre outros. Pessoalmente, sou um grande fã do género e acho que a história arquitetada por Mikaël neste Harlem está muito bem construída, adicionando várias personagens relevantes e carismáticas além da protagonista Queenie. Não é portanto de espantar que esta seja uma daquelas BDs que nos dão a impressão de estarmos a ver um filme no cinema.
Se a história e os diálogos são bons, há uma outra coisa neste Harlem que também é digna de nota: a história principal é entrecortada por flashbacks do passado de Queenie. Dito assim, não parece nada que não tenhamos visto em milhentos outros livros ou filmes. Mas, no caso em apreciação, estes flashbacks demarcam-se totalmente da restante história ao serem-nos dados de forma muda, sem qualquer texto. E, ainda por cima, com uma paleta de cores que difere daquela utilizada na restante história. Ora, não só os desenhos são lindos - já lá irei - mas também a capacidade de Mikaël em nos contar uma história passada de vida sem qualquer recurso a texto é verdadeiramente impressionante. Acaba por dar a ideia que temos um "novo livro dentro do livro". Que certamente, se isolado da obra e comercializado dessa forma, continuaria a resultar muito bem. Fiquei mesmo muito bem impressionando com este, digamos assim, "extra" da obra. E talvez seja até esse o motivo que, possivelmente me faz considerar Harlem ligeiramente acima dos também impressionantes Giant e Bootblack.
Como se não bastasse tudo aquilo que aqui é feito em termos de história e narrativa, o autor ainda nos dá um pequeno easter egg, ligando os acontecimentos desta história aos dos livros anteriores. Uma cereja no topo do bolo, diria.
Concentrando-me nas ilustrações presentes nesta obra, o trabalho de Mikaël volta a ser magnânime. A forma como o autor capta a cidade de Nova Iorque consegue fazer-nos viajar para a Big Apple e fazer-nos absorver todos os seus ruídos, os seus cheiros, a sua sujidade, a sua beleza, as suas gentes e o seu rebuliço. Há vinhetas que poderiam ser comercializadas como postais da cidade de Nova Iorque dos anos 30, tal não é a sua beleza e perfeita execução. É um livro extremamente bonito.
E não é só a cidade que é brilhantemente desenhada pelo autor. As personagens são muito bem esculpidas, a sua linguagem corporal ou o dramatismo das suas expressões faciais são perfeitos e a própria escolha de planos de câmara é portentosa, remetendo-nos, mais uma vez, para o cinema. Aprecio também a forma como o autor consegue diferenciar as várias personagens, bem como um certo erotismo que perpassa em várias cenas.
A parte dos flashbacks, já por mim referida, numa escala em tons azulados, apresenta-nos maravilhosas ilustrações que nos pedem uma observação cuidada. Um verdadeiro deleite para os olhos.
Até a própria capa do livro - e sobrecapa - é de uma beleza estética estonteante.
Quanto à edição da Ala dos Livros, eis-nos perante mais um belíssimo trabalho. O livro apresenta capa dura baça, bom papel brilhante, boa encadernação e boa impressão. Para além da também boa escolha, já enunciada, de publicar num só volume os dois volumes que correspondem à totalidade da obra. No final do livro, somos ainda brindados com um dossier de extras com 14 páginas, que nos permite apreciar inúmeros esboços do autor. Neste ponto, devo dizer que gostaria que os comentários do autor - que surgem ao lado das ilustrações - tivessem sido traduzidos em vez de deixados em francês.
Portanto, em suma e como já referido por mim, Harlem é - como, aliás, Giant ou Bootblack também o são - uma daquelas bandas desenhadas que me deixam de "barriga cheia" por fazerem tanta coisa bem. Estes livros de Mikaël até podem não ser, por motivos que serão apenas pessoais e subjetivos, "livros de uma vida", mas que são livros brilhantemente executados já será algo mais objetivo e claro de afirmar. Harlem é, pois, totalmente recomendado, e entra para o grupo dos melhores livros de banda desenhada do ano. Não deixem de ler!
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Harlem - Edição Integral
Autor: Mikaël
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Outubro de 2024
Nas referências cinematográficas, não esquecer o "The Cotton Club", do Coppola, onde não só é apresentada a personagem da "Queenie", mas também o "Bumpy" e o próprio "Dutch Schultz".
ResponderEliminarGostei muito da trilogia, mas este "Harlem" destaca-se!