quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Análise: O Abismo do Esquecimento

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa

Para estranheza de alguns que esperariam que fosse a Levoir a publicar este livro em Portugal, foi a editora Ala dos Livros que, recentemente, editou a mais recente obra de Paco Roca. Denominado O Abismo do Esquecimento, este trabalho de Paco Roca que, desta vez, se faz acompanhar no argumento pelo jornalista Rodrigo Terrasa, volta a ter a Guerra Civil Espanhola como pano de funo, como já tinha acontecido em Os Trilhos do Acaso.

Bem, na verdade, a história acontece já depois de a Guerra Civil Espanhola ter terminado. José Celda e mais uma dezena de homens são fuzilados pelo regime de Franco na região de Paterna, em Valência, sendo depois sepultados numa vala comum. O único crime destes homens? O de terem uma opinião divergente àquela instituída e controlada por Franco.

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
Passados mais de setenta anos, acompanhamos a empreitada de Pepica Celda, filha de José, que, agora uma idosa, ainda não desistiu de descobrir os restos mortais do seu pai de forma a que o mesmo possa recuperar, já longas décadas depois do seu fuzilamento, a dignidade que lhe foi roubada pelo regime franquista. Acima de tudo, é uma batalha pessoal de Pepica contra o esquecimento. Não apenas do seu pai, mas de mais de 2.000 pessoas que foram assassinadas naquela mesma região e enterradas em 135 valas comuns, semelhantes às de José Celda. E que, lamentavelmente, o Governo espanhol tem vindo a esquecer. Ou a contribuir para o esquecimento. O que, bem vistas as coisas, é uma e a mesma coisa.

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
A par dessa demanda pessoal, Pepica Celda toma conhecimento de Maruja Badía, filha de Leôncio Badía, que no tempo em que estes crimes se perpetravam era coveiro no cemitério de Paterna. Ora, este homem republicano que se viu relegado para a função profissional que ninguém queria, foi peça chave para que as viúvas dos homens executados e enterrados em valas comuns pudessem identificar os cadáveres dos seus entes queridos. Badía tentava dar o tratamento mais digno possível a estes homens executados: recolhia informações sobre os seus nomes e inventariava-as; deixava junto de cada homem assassinado uma garrafa com um papel que continha o nome desse mesmo de forma a que, futuramente, este homens pudessem ser mais facilmente identificados - e mal sabia ele o jeito que isso daria aos investigadores, décadas mais tarde; e tirava pequenas madeixas de cabelo dos cadáveres que depois dava às suas viúvas, de modo a que as mesmas ficassem, pelo menos, com uma recordação dos falecidos maridos.

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
Assim sendo, e embora as duas histórias se encontrem intimamente interligadas, O Abismo do Esquecimento acaba por nos oferecer duas narrativas distintas. Confesso que fiquei especialmente sensibilizado com a vida de Leôncio Badía e pelo seu contributo silencioso e potencialmente letal para restituir alguma justiça e dignidade a um mundo perdido em si mesmo.

Paco Roca é reconhecido pelo seu talento em criar histórias em banda desenhada que exploram temas humanos profundos e emoções complexas. E este livro é um exemplo notável da habilidade de Roca em combinar narração gráfica com uma análise introspectiva e político-social. A par de toda esta história, Paco Roca volta a ser feliz na introdução de alguns elementos algo surrealistas ou simbólicos, com a alusão à obra clássica Ilíada para fazer um paralelismo entre a importância para a humanidade dos rituais fúnebres, de forma a assegurar-se dignidade e uma certa perpetuidade aos que deixam o mundo, aumentando, desse modo, a profundidade e complexidade emocional da obra.

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
A menção ao contexto histórico de Espanha e o modo como a memória coletiva e as experiências do passado influenciam o nosso presente, enquanto sociedade, é, pois, um dos temas centrais deste belo e maduro livro. Aqui mergulhamos numa consequência direta da Guerra Civil Espanhola e da ditadura de Franco. Porque quer queiramos, quer não, o presente é um reflexo de como o esquecimento e a repressão política afetam não só a vida dos indivíduos, mas também a identidade coletiva das sociedades ditas modernas. Neste caso, a sociedade espanhola.

O próprio franquismo pode, com efeito, ser interpretado como uma metáfora para o próprio processo de esquecimento e supressão de memórias, já que o Governo Espanhol tentou controlar e omitir certos aspectos da história espanhola, nomeadamente aquilo que este livro nos convida a conhecer.
Os autores procuram, portanto, e para além de entreter e informar, denunciar a situação da Espanha pós-franquista, onde as memórias da Guerra Civil e da repressão foram muitas vezes minimizadas ou esquecidas nas décadas seguintes ao fim da ditadura.

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
Em termos de ilustrações, Paco Roca revela-se fiel a si mesmo, com as suas ilustrações a serem automaticamente identificáveis por todos os que já conhecem a sua obra. E, felizmente, em Portugal o autor tem muitos leitores e admiradores. 

O desenho em linha clara, com traço semi-realista, simples mas eficaz, dá-nos tudo aquilo que precisamos para bem apreciar esta história singular. Lá pelo meio, e nas páginas onde aparecem as referências diretas, já por mim referidas, a Ilíada, o autor dá-nos um estilo de ilustração algo diferente, que permite alguma dinâmica e uma aproximação ao cânone artístico da Antiga Grécia.

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
Não sou um grande adepto do formato horizontal (também chamado de formato italiano), confesso. Especialmente quando o mesmo não é devidamente explorado. É lógico que reconheço que este formato permite uma certa cinematografia nas vinhetas que, sendo bem mais largas, possibilitam uma aproximação à Grande Tela que pode criar uma experiência muito interessante para o leitor. Paco Roca fá-lo algumas vezes neste livro, mas não de uma forma que, a meu ver, justifique a opção pelo formato italiano. Para além deste O Abismo do Esquecimento, também em A Casa ou em Regresso ao Éden o autor optou por este formato. Sendo que, em Regresso ao Éden, Paco Roca foi especialmente feliz no bom aproveitamento do formato italiano. Atenção que não considero que esta opção de formato estrague minimamente a leitura, exceptuando raros casos em que a fluidez e orgânica da leitura saem um pouco prejudicadas. Todavia, o manuseio do livro acaba por ser mais difícil, já que somos quase obrigados a ler o livro sentados a uma mesa, pois se estivermos deitados ou simplesmente sentados num sofá/cadeira, o processo de leitura torna-se incómodo. A opção será sempre do autor, como é óbvio, mas (também) cabe ao leitor deixar o seu desabafo pessoal. 

O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
Ao contrário de praticamente todas as restantes obras de Paco Roca que foram anteriormente publicadas pela Levoir em Portugal, este O Abismo do Esquecimento - que, relembro, até tinha sido anunciado pela Levoir há cerca de um ano - acabou por ser publicado pela Ala dos Livros.

Em termos de edição, estamos perante (mais) um belíssimo trabalho por parte da Ala dos Livros. Arrisco até mesmo dizer que, finalmente, a obra de Paco Roca é tratada com o devido trabalho de edição que merece. Se não, vejamos: o livro apresenta capa dura baça com um excelente papel brilhante no interior. A impressão e encadernação também são de qualidade elevada. Mas o que chama mais à atenção é, para além da fita de tecido marcadora, a lombada em tecido que confere à edição o requinte que o livro reclama. No final da obra, há ainda um epílogo em que, através de um texto de sete páginas de Rodrigo Terrasa, ficamos a saber mais sobre o processo de criação do livro e sua respetiva investigação. Além disso, o texto é acompanhado por fotografias que aumentam ainda mais o estilo de reportagem jornalística da obra.

Em conclusão, O Abismo do Esquecimento acaba, pois, por ter um impacto profundo, não só pelo seu valor literário e artístico, mas também pelo seu poder de sensibilizar e fazer refletir sobre os crimes de guerra política praticados na nossa vizinha Espanha há poucas décadas. Para tal, a obra invoca um sentimento de injustiça e de tristeza que nos deixa um nó na garganta sem, no entanto, se fazer valer de um dramatismo desmesurado. Tudo na medida certa, portanto. Eis uma obra totalmente recomendada para quem aprecia histórias com uma abordagem mais madura e que exploram o lado sombrio e luminoso da experiência humana. Mais outro grande livro de 2024!


NOTA FINAL (1/10):
9.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa - Ala dos Livros
Ficha técnica
O Abismo do Esquecimento
Autores: Paco Roca e Rodrigo Terrasa
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 304, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 165 mm
Lançamento: Outubro de 2024


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