Se os mais céticos (ainda) poderão franzir o olho a uma afirmação como "2024 tem sido dos melhores anos de sempre no que ao lançamento de banda desenhada de qualidade em Portugal diz respeito", uma coisa é clara: basta-nos olhar para o conjunto muito alargado de bandas desenhadas de qualidade superior lançadas em 2024 em Portugal para chegarmos a uma fácil conclusão: é bem possível que este seja, de um modo global, o melhor ano de sempre . Ou um dos melhores, vá.
E este breve parágrafo inicial serve apenas para introduzir uma das mais recentes apostas da editora Ala dos Livros: a série Shi, da autoria de Zidrou e Homs. Esta era uma série há muito esperada por mim. Desde que, numa livraria na Bélgica, depositei os olhos no primeiro tomo desta obra, que percebi que estávamos logo perante um trabalho que eu queria ter na minha biblioteca pessoal. Daí que não hesitei mais do que alguns segundos para comprar, de uma só vez, os dois primeiros tomos. Passados uns anos, fiquei, pois, muito agradado por saber que a obra seria por cá editada. Ainda por cima, numa edição de luxo, como poderei abordar um pouco mais à frente.
Originalmente lançada em 2017, esta série, ainda em continuação, depressa conquistou uma grande aclamação pelo público e crítica. Coisa que, olhando para o trabalho fortemente inspirado de Zidrou e Homs, não surpreende. O primeiro ciclo de Shi é composto por quatro tomos, enquanto que o segundo e terceiro ciclos, são constituídos, cada um, por dois tomos. No total, a série está pensada para vir a ter oito tomos. Para já, a Ala dos Livros brinda-nos com um volume duplo que, naturalmente, agrega os dois primeiros volumes da série, oferecendo-nos, de uma só assentada, metade do primeiro ciclo da série.
Desta vez, começo-vos por falar das ilustrações de Homs. Já li milhentos livros de banda desenhada e posso dizer-vos com sinceridade que o trabalho deste autor figura no círculo muito fechado dos meus ilustradores preferidos de banda desenhada. Sei que estas questões são sempre pessoais e algo subjetivas mas, com objetividade, também podemos ainda assim referir que os desenhos de Homs são tecnicamente muito evoluídos, com os cenários a serem de cortar a respiração, com as personagens a apresentarem uma expressividade incrível, com a dinâmica da planificação a ser estonteante, com as cores a serem magníficas. Enfim, para mim, em termos de ilustração, o trabalho de Homs é perfeito, pois não sei, honestamente, e mesmo em termos teóricos, de que forma poderia melhorar os desenhos de Homs. Dito por outras palavras, mesmo que eu quisesse andar aqui à procura de defeitos... não o conseguiria fazer. Está certamente entre os meus dez ilustradores preferidos de banda desenhada... de sempre.
E, portanto, só isso já era meio caminho andado para a obra Shi ser totalmente recomendada. Pois aqui, e possivelmente mais do que nunca, Homs pôde dar asas à sua criatividade e capacidade ilustrativa, através de vários cenários, várias épocas, várias indumentárias, vários momentos de ação e um conjunto variado de peripécias. O próprio Homs, nas notas de agradecimentos inaugurais da obra, agradece a Zidrou por este ter criado "a história que Homs gostaria de desenhar".
Não tenho muitos mais elogios superlativos a fazer a Homs... os seus desenhos são um autêntico deleite, uma verdadeira obra de arte, rica, refinada e trabalhada, que todos devem conhecer e que eleva, só por si, a qualidade de Shi.
Mas, claro, ainda falta fazer referência à outra parte da obra: o argumento.
Zidrou é um dos meus argumentistas preferidos de banda desenhada - vejam lá a "dream team" responsável por esta obra! Nunca li um livro de Zidrou que não fosse do meu agrado. E já li bastantes. As suas histórias trazem sempre consigo algo que fica a ressoar no nosso pensamento já depois de finalizadas as leituras. E, tanto ou mais importante que isso, as suas personagens estão sempre munidas de uma personalidade muito própria que as fazem credíveis e inesquecíveis até para aqueles leitores que, como eu, travam conhecimento, num ritmo diário, com novas BDs e novas personagens.
Em Shi, Zidrou avança por caminhos novos, dando-nos uma história complexa, megalómana, com várias camadas, que acontece em vários momentos e tempos de ação. Quer no tempo presente, quer no tempo passado. É uma obra que mistura a narrativa de ação com uma exploração profunda de temas de conflito pessoal, questões éticas e misticismo, com vários toques de fantasia onde até vemos Zidrou a piscar o olho a algumas das criações de Jodorowsky. Mesmo assim, e ao contrário do autor por mim mencionado, Zidrou não parece, pelo menos para já, perder as rédeas da sua própria criação. De facto, e isso é uma coisa que sempre admiro numa argumentista, por muito rocambolesca e audaz que possa ser a história de Shi, Zidrou parece saber exatamente para onde quer levar a trama, não oferecendo, por isso, partes do enredo de forma aleatória ou introduzidas à força, como fillers, como, infelizmente, tantas vezes vemos em banda desenhada.
O próprio género é de difícil catalogação: Shi é um policial, é uma história de época, é uma história de ação, é uma história de aventura, é uma história de fantasia e até tem um cariz de consciencialização social.
Estamos em Londres, em pleno século XIX, onde a primeira Exposição Universal acaba de ser inaugurada. Uma das famílias que marca presença em tão importante evento é a família Winterfield. A filha, chama-se Jennifer, e é uma fã de fotografia. A esse propósito, decide fotografar uma mulher japonesa com o seu bebé nos braços. Mas, depois de feita a fotografia, Jennifer descobre que o bebé estava morto no momento da fotografia.
As circunstâncias que rapidamente se sucedem acabam por unir estas duas mulheres em cenas de ação agitadas, que as leva a uma sede de vingança perante o Império Britânico e, indo até mais longe, perante todo o mundo, onde as mulheres acabam por ver a sua existência relegada para segundo plano. Não diria que seja uma história "forçadamente feminista", se é que me entendem, mas é inegável que está bem presente em Shi um feminismo latente, que é bem-vindo, bem doseado e adequado. As mulheres acabam, por isso, por ser as verdadeiras heroínas desta história que nos mantém sempre com máxima atenção, num ritmo narrativo fulgurante. Talvez por isso, de início até pode ser uma história algo confusa e difícil de acompanhar. O que faz merecer reparo que a opção da Ala dos Livros em publicar álbuns duplos até permite que o leitor mergulhe melhor na narrativa, sem que nela fique tão perdido como ficaria se apenas pudesse ler um tomo de cada vez.
Mas há muito mais nesta narrativa do que aquilo que aqui referi. E das duas umas: ou eu contava aqui tudo aquilo que acontece neste primeiro volume duplo, estragando dessa forma o prazer de leitura a todos aqueles que - acertadamente - não hesitarão em ler este fantástico livro; ou quedava-me por não falar mais sobre a história aqui presente. E é isso que farei.
Direi apenas, e ainda, que a história de Shi, cujo nome tem origem num ideograma que significa “a morte”, não é apenas uma história de vingança, mas uma busca por identidade e autoconhecimento no meio de um contexto caótico e violento. Zidrou consegue tecer uma narrativa complexa em que o leitor é forçado a lidar com questões existenciais, de identidade e, claro, com a moralidade de ações como a vingança. Este volume traz-nos, portanto, a construção inicial de um drama épico que mistura misticismo com um olhar humano sobre como a dor, a injustiça e o sofrimento podem mudar a essência de um ser humano.
Já a edição da Ala dos Livros, é um verdadeiro mimo para os leitores. Para além de reunir, conforme já referido, dois tomos da série num só volume, o livro apresenta capa dura coma textura aveludada suave ao toque e uma ilustração (linda!) diferente das ilustrações das capas ditas normais. Mas se, como eu, também apreciam as ilustrações das capas normais, não se apoquentem porque a Ala dos Livros teve o cuidado de incluir essas ilustrações de capa no interior da obra. Além disso, refira-se ainda que o livro traz fita marcadora de tecido e que a lombada também é em tecido e que, à semelhança do que a Ala dos Livros tem estado a fazer com a série Blacksad, o conjunto das lombadas dos livros da coleção formará depois uma ilustração. Sim, babem-se colecionadores, porque esta edição é linda. No interior há ainda, como extra, um caderno de 12 páginas com ilustrações e estudos de capa de Homs, que são um mimo para a vista.
Em suma, se ainda não compraram este livro, não percam mais tempo, pois é seguro que ficarão bem servidos numa autêntica orgia visual onde Homs se assume como um dos melhores ilustradores em banda desenhada, e onde Zidrou se arrisca numa história complexa, intensa, impactante e que consegue transformar Shi num clássico instantâneo da banda desenhada franco-belga. Obrigatório!
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Shi - Livro 1 (Tomos 1 e 2) - No princípio era a fúria e O rei demónio
Autores: Zidrou e Homs
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 320 mm
Lançamento: Setembro de 2024
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