Os Cavaleiros de Heliópolis: Rubedo e
Citrinitas, de Jodorowsky e Jérémy
Quando, em 2019, a Editora Arte de
Autor nos presenteou com o lançamento do primeiro volume de Os
Cavaleiros de Heliópolis, da autoria de Jodorowsky e Jérémy, que
continha os dois primeiros tomos desta série, Nigredo e Albedo,
depressa considerei esse livro como o terceiro melhor álbum de 2019.
Recentemente, e apesar do período
conturbado que vivemos, a Arte de Autor, lançou o segundo livro, que
reúne os tomos III e IV, Rubedo, a Obra ao Vermelho e Citrinitas, a
Obra ao Amarelo, respetivamente, e que, portanto, deixa os portugueses com esta série
completa. Que maravilha de trabalho, por parte da Editora que, em
pouco mais de um ano, completa em português uma série de autores conceituados da banda desenhada. E, se não me engano, Jéremy – esse mago da
ilustração! – ainda nem sequer estava publicado em Portugal.
Falar de Os Cavaleiros de Heliópolis
sem falar da qualidade da edição por parte da Editora, também é
quase impossível. Estes livros enquanto objeto, são dos livros mais
bonitos que uma estante de bd pode ter. As capas têm um textura
macia e agradável, que as imagens na internet não conseguem
demonstrar. É necessário passar-se as mãos pela capa para se
perceber do que falo. Além disso, há ainda a questão de ser um
álbum duplo. Confesso que gosto bastante da opção por álbuns
duplos que as editoras, e em especial a Arte de Autor, têm vindo a
adotar. E acho que resultam especialmente bem na banda desenhada
franco-belga, em que cada número de uma série não costuma ir além
das 62 páginas, fazendo com que os livros se leiam muito depressa.
Com álbuns duplos, o prazer é portanto redobrado e a leitura – e
consequente imersão numa obra – parece sair melhorada com esta
opção dos álbuns duplos. Já para não falar que, mesmo que os preços destes livros sejam normalmente acima dos 20€, a verdade é que, se
fizermos as contas, até não saem nada caros, tendo em consideração que têm
o dobro das páginas.
Incidindo agora neste segundo livro,
posso dizer que a história a partir do ponto onde o primeiro livro termina. O
primeiro tomo Nigredo (o meu preferido) já nos tinha apresentado a
origem e background da personagem protagonista Asiamar e o segundo
tomo, Albedo, deixou-nos a meio da missão de Asiamar, que incluía a
figura histórica de Napoleão Bonaparte. O terceiro tomo, Rubedo,
que abre este segundo livro, continua e termina a história com
Napoleão, sendo que o quarto e último tomo, Citrinitas, nos leva
até Londres, aos tempos de Jack, o Estripador.
E isto é algo que aprecio muito na
série: o facto de nos fazer viajar no tempo. Fazendo-me lembrar,
até, a série de videojogos Assassin's Creed, que também nos faz
viajar na barra cronológica, levando-nos ao encontro de personagens
históricas que marcaram os períodos dourados das civilizações
egípcias, gregas, romanas, entre outras. Em termos narrativos, esta
opção temporal abre imensas possibilidades e, nesse sentido, Os
Cavaleiros de Heliópolis são pois, uma série carregada de elementos
históricos, onde personagens como Napoleão Bonaparte, Luís
XIV, Nostradamus, Imhotep, entre outros, aparecem. No entanto, considero que não devemos classificar a série
como sendo “histórica” porque, à boa maneira do autor
Jodorowsky, as voltas são-nos trocadas várias vezes e o autor faz
uma interpretação totalmente livre dos factos históricos, tal como
Quentin Tarantino fez, por exemplo, no seu aclamado filme Inglorious
Basterds.
Acima de tudo, esta é uma história de
cariz esotérico, onde o protagonista Asiamar, sendo hermafrodita e
beneficiando de todas as possibilidades que essa característica lhe
confere, continua a sua caminhada para a obtenção de imortalidade e
para a ingressão num restrito grupo de imortais, uma irmandade
provida de poderes sobrenaturais, com base em conhecimentos de
alquimia, que procura salvar o mundo de líderes que são uma ameaça
para a humanidade.
A narrativa do autor é interessante porque é um
pouco imprevisível. Não sabemos bem que destino será dado às
personagens e à história e isso é revigorante para o leitor. Não
obstante, acho que o autor por vezes toma decisões narrativas
demasiado disruptivas para a história e (até) pouco justificáveis.
Goste-se ou não, é o seu estilo e há que aceitá-lo, mesmo que
certas opções pudessem, a meu ver, ter uma base mais
sólida e coerente. É um "pau de dois bicos", como já referi: oferece
imprevisibilidade à história mas fá-lo sacrificando, várias
vezes, a coerência e, por vezes, até a lógica. No entanto, face a
outras obras, devo admitir que Jodorowsky até está relativamente
contido nestes Cavaleiros de Heliópolis. Este segundo livro tem
algumas excentricidades narrativas, mas, ainda assim, mantém a
maioria das coisas boas que marcaram o primeiro livro. Uma coisa é
certa: Jodorowsky é one of a kind enquanto autor e, nesse sentido,
merece o respeito de todos os amantes de banda desenhada.
Se a narrativa do mestre das histórias
originais Jodorowsky, nos prende, a arte de Jérémy agarra-nos –
para sempre – a estes Cavaleiros de Heliópolis. Aliás, faço até
uma pequena nota para que as editoras portuguesas tenham em atenção
a espetacular série Barracuda, também do autor Jéremy que, infelizmente, ainda não está publicada em português. O desenho de Jérémy roça a perfeição. É detalhado, realista e com uma
utilização de perspetivas de “câmara” dinâmicas e arrojadas. A
fisionomia e anatomia das personagens é tratada com todo o cuidado e
perfeição. Às tantas, as personagens são tão bem desenhadas que
até uma personagem “feia” acaba por ser “bonita” devido a
ser tão bem desenhada. Jéremy assume-se, pois, como um autor
completo: cenas de romance, de ação, de caracterização de
ambientes, de cenários da natureza ou de uma arquitectura
requintada, planificação dinâmica, caracterização das
personagens... tudo é feito com extrema qualidade e elegância. O
difícil mesmo é arranjar algo para criticar – se é que é
possível fazê-lo. Com todo o respeito por Jodorowsky, que tantos
fãs tem em todo o mundo, é Jérémy quem mais brilha nesta série. É
ele a estrela da companhia com o seu trabalho incrível e
impressionante nesta série. Uma nota para as cores, asseguradas por Felideus, que
também são de elevada qualidade e que dão a esta série uma beleza
acrescida.
Em suma, olho para a série Os
Cavaleiros de Heliópolis como olho para uma qualquer coisa de
qualidade premium, seja um hotel de 5 estrelas, um iate, um restaurante
com estrelas Michelin ou um Rolls-Royce. E faço-o
porque considero que, tal como estes exemplos, esta série de banda
desenhada parece ser luxuosa em todos os aspetos: tem uma arte visual
espetacular a todos os níveis possíveis (desenho, cor, dinâmica,
ritmo); tem uma história que considero “fora da caixa” e que,
por isso, é extremamente original; tem ilustrações de capa (e
contracapa!) magníficas e, em cima disto tudo, ainda tem uma edição
por parte da editora Arte de Autor do mais luxuoso possível. É caso para
perguntar, exclamando com alguma indignação: “Tu, oh amante de banda desenhada
franco-belga que me lês... já compraste esta coleção? Então
estás à espera de quê?”.
Imprescíndível. E mais um dos
lançamentos do ano.
NOTA FINAL (1/10):
9.1
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Ficha técnica
Os Cavaleiros de Heliópolis: Rubedo e
Citrinitas
Autores: Jodorowsky e Jérémy
Editora: Arte de Autor
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura