Sal é uma das obras de banda desenhada lançadas em 2022 que mais me surpreendeu. E quando digo, ou melhor, escrevo isto, não quer dizer que tenha sido a melhor BD que li no ano passado. Certamente não o foi. Porém, como não sabia bem o que esperar deste livro – e, portanto, não tinha expetativas muito elevadas, admito – tenho que dizer que me deixou bastante satisfeito e espantado pela maturidade que a obra emana.
A história é sobre Salomé – carinhosamente apelidada de “Sal” – que, devido a todo o background familiar que a rodeia – é considerada uma "jovem em risco" e, portanto, acaba por ir parar a uma casa de acolhimento, sendo retirada à sua família.
A protagonista desta história, com 14 anos, é uma personagem fictícia, mas criada com base no agregado de casos reais com que João Andrade, o argumentista deste livro, travou conhecimento, já que trabalha diretamente com casas de acolhimento. Talvez (também) tenha sido isso que fez com que a história parecesse real e genuína. O discurso que é proferido pela personagem de Sal parece-me completamente ajustado àquilo que poderíamos esperar de uma jovem de 14 anos a viver uma situação semelhante. Se é verdade que a personagem apresenta uma certa rebeldia e uma vontade de contrariar algumas regras, também não deixa de ser verdade que, por debaixo dessa rebeldia, está uma criança vítima de abusos sexuais, sem saber que caminho seguir e o que fazer, tentando apenas encontrar algum do conforto que, infelizmente, este mundo parece não ter reservado para si.
A história é chocante, dramática e dá-nos um murro no estômago. Posso dizer que quando se conhece o porquê de Sal ter pavor aos famosos e numerosos túneis do Funchal, o tapete é-nos completamente tirado e levamos com a realidade, crua e dura, como ela sabe ser – e para isso também contribui a forma brilhante com que Luís Buchinho soube ilustrar esta parte da história. Se não é vontade de chorar aquilo que sentimos, é vontade de gritar, de amaldiçoar exasperadamente o porquê de tais atos serem praticados junto de crianças. É uma leitura pesada, aviso já. Mas, já que é baseada na realidade, é uma leitura que, sendo pesada, também deve ser lida por todos. É importante que não viremos a cara a estes acontecimentos.
João Andrade conta-nos uma história que merece ser lida, mas não apenas por abordar um tema que merece ser comentado. Na verdade, o autor também revela uma enorme apetência para a escrita, utilizando frases marcantes que nos deixam a pensar na vida e na existência. Sal está muito bem escrito, portanto. E a cereja em cima do bolo é que, narrativamente falando, João Andrade também vai sabendo dosear os vários eventos na vida da personagem de Sal. Começamos por achar que esta jovem foi vítima de violência doméstica pelo pai, mas, à medida que a história avança, percebemos que as coisas aconteceram de uma outra forma. Boa história, boa escrita e bela narração.
E se temos estado a falar da história e do argumento desta obra, é impossível não falarmos na componente gráfica. E, desde logo, porque o ilustrador é estreante enquanto autor de banda desenhada e é conhecido por ser um estilista português de sucesso nacional e internacional. Falo de Luís Buchinho. Foi com agrado que fiquei a saber que, não só Buchinho é um amante de banda desenhada como, agora, com Sal, também é um bom autor de banda desenhada.
E diga-se que o seu trabalho está envolto numa grande dose de personalidade e estilo próprio que não deixará os leitores indiferentes. Por vezes, os seus desenhos, especialmente em termos de expressões faciais e linguagem corporal das personagens, parecem algo arcaicos e a merecer um pouco mais de aprumo gráfico do autor, sim, mas também não deixa de ser verdade que, noutros casos, o autor apresenta ilustrações verdadeiramente belíssimas. Especialmente na capacidade de passar ao leitor um bom naipe de emoções. E, lá está, será esse, a meu ver, o mais elogio que se pode dar a um ilustrador de banda desenhada.
O estilo de ilustração que Buchinho nos apresenta é, pois, bastante diversificado. Não só nos tipos de desenho, como também nas próprias técnicas utilizadas. Em termos de planificação, Sal também é uma obra cheia de ecletismo visual: temos ilustrações que ocupam uma só página, temos páginas carregas de pequenas vinhetas (com algum ruído visual em demasia, reconheço) e ainda temos uma curiosa e original divisão de vinhetas. Por vezes, há uma sobreposição de vinhetas ou páginas onde as pranchas nem sequer têm delimitação entre si. O que torna a leitura mais dinâmica não perdendo, por outro lado, o bom ritmo narrativo.
Em termos de legendagem é que me pareceu que o livro poderia ter sido mais bem conseguido. É demasiado anárquico o modo como as legendas são colocadas, bem como as próprias fontes que variam por demais entre si.
Percebemos que, em termos de ilustração, o autor vem de outro universo gráfico o que traz, sem dúvida, e como já referi acima, vantagens e desvantagens. Todavia, o resultado final é bastante bom e refrescante.
Um comentário ainda sobre a forma como a história nos é dada: sendo o livro um projeto da Fundação Cecilia Zino, no Funchal, Madeira, devo confessar que, olhando para o tema do livro, e para aquilo que esta fundação faz, que consiste no acolhimento de jovens em situação de risco, devo dizer que estava à espera de um certo paternalismo e, como é, muitas vezes, apanágio neste tipo de iniciativas, uma forma da Fundação se promover a si mesma e às suas atividades. Estava enganado. E isto que refiro, é logo um ponto muito positivo que o livro traz consigo. Lá por ser um livro sobre uma fundação que tem casas de acolhimento, não procura pintar estas casas de cor de rosa.
Com efeito, os jovens que se vêem neste tipo de instituições, não encontram ali um clima de serenidade, como se fosse uma casa de bonecas. É óbvio que, se os jovens estão em risco, encontram ali alguma paz de espírito e são, pelo menos, afastados de realidades familiares nefastas para as suas vidas. Mas, não obstante, o ingresso neste tipo de casas de acolhimento traz uma certa dificuldade de adaptação que, muitas vezes, é incrementado pela resistência que os próprios outros jovens que já estão na instituição demonstram para com os novatos. Gostei desta característica do livro que, a meu ver, dá credibilidade ao próprio intento da Fundação, bem como ao bom e sincero trabalho do autor, João Andrade.
Em termos de edição, estamos perante um belo trabalho feito pela Fundação Cecilia Zino. Capa dura, bom papel brilhante e uma boa encadernação e impressão. Não sei até que ponto a preferência por um papel mate, baço, não teria sido uma melhor opção, tendo em conta o estilo de ilustração de Luís Buchinho. Mas, seja como for, e tendo em conta que esta é uma edição que poderemos considerar (quase) independente ou, pelo menos, de uma Organização não tão habituada a lançar banda desenhada, acho que em termos de edição, o trabalho também acabou por ser bastante bem feito e meritório.
Em suma, a minha conclusão depois de ler este Sal é que esta banda desenhada foi a grande revelação do ano, em termos da banda desenhada nacional. Traz-nos uma história demasiadamente humana, à qual dificilmente alguém ficará indiferente, mas sem dramatizar em demasia, apoiando-se na tristeza de tantos jovens em situações de perigo para criar um produto capitalista e falsamente humano. Ao invés, tudo é humano e genuíno neste Sal: o belo argumento de João Andrade, carregado de palavras que ficam connosco após o término da leitura, e a peculiar arte de Luís Buchinho, servida por uma certa rebeldia na utilização dos cânones clássicos da linguagem da banda desenhada. Tudo somado, é um livro que todos devem conhecer!
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Sal
Autores: João Andrade e Luís Buchinho
Editora: Fundação Cecilia Zino
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 20 x 26 cm
Lançamento: Novembro de 2022
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