Análise: Bestiário da Isa

Bestiário da Isa, de Joana Afonso

Dizer que Bestiário da Isa pode muito bem ser a confirmação de Joana Afonso enquanto autora indispensável da banda desenhada nacional, pode até ser uma frase sem grande nexo, se tivermos em conta a profícua carreira da autora. Com efeito, são da sua autoria obras relevantes como o multipremiado O Baile, Living Will, Zahna, Deixa-me Entrar e vários outros títulos. Todavia, e não obstante o que acabo de referir, acho que Bestiário da Isa dissipa as dúvidas de quem quer que fosse o cético que (ainda) não considerava Joana Afonso como uma das autoras de banda desenhada mais relevantes do país.

O álbum até começou por ser lançado numa versão mais curta, com pouco mais de 20 páginas, em edição de autor. Esse mesmo álbum haveria de conquistar um prémio no Amadora BD, em 2021, para Melhor Fanzine / Edição Independente. Depois disso, e também porque a história merecia ser mais bem desenvolvida, a autora beneficiou de financiamento oriundo do projeto “Garantir Cultura” (Compete 2020) para assim finalizar, em cerca de 70 páginas, a história que havia começado. Desta vez, as editoras nacionais que abraçaram esta iniciativa foram A Seita e a Comic Heart.

A história coloca-nos a seguir a vida da protagonista, Isa, que trabalha numa empresa de controlo de pragas. Mas não estamos a falar do tipo de pragas que conhecemos como as de baratas ou de ratos. Não. Estamos a falar, isso sim, de pragas a envolver monstros. O trabalho de Isa é, pois, o de capturar estes monstros, sempre que a sua empresa é chamada. No entanto, a personagem vive numa situação precária, com sentimentos mistos, pois o seu sonho era o de ser investigadora destes animais bizarros e míticos. Tendo de os caçar, Isa também nutre por estas criaturas um sentimento de admiração.

E, no dia em que fica a tomar conta do seu sobrinho, Miguel, que a acompanha numa destas caças aos monstros, sucedem inúmeras aventuras que, sendo óbvio que marcam o seu pequeno sobrinho, também nos trazem a sugestão de que fazem Isa refletir sobre a sua vida. O álbum avança então para um ritmo bastante alucinante, com bastante ação à mistura, que, tudo somado, acrescentam uma sensação de urgência à leitura e umas pitadas de fantasia que contribuem para uma bela experiência.

Devo dizer que a autora foi deveras inteligente ao saber colocar numa só história tudo aquilo que tem revelado apreciar na sua arte: os monstros e as figuras mitológicas, bem como as personagens humanas, com quem simpatizamos imediatamente. Está cá tudo em Bestiário da Isa!

Em termos de desenho, este álbum mantém as características inerentes ao estilo de ilustração de Joana Afonso: as personagens apresentam caras amistosas, com expressões "cartoonizadas" mas inequívocas na forma como passam emoções ao leitor. Há uma certa cuteness nos desenhos de Joana e, talvez por isso, considero que têm, não só um enorme apelo comercial – pois é fácil sentir empatia pelos desenhos da autora – como, em paralelo, têm o potencial de fazer a autora chegar a uma larga faixa etária, já que este seu livro (também) deverá apelar aos mais novos.

Eu sou um confesso fã do trabalho da Joana Afonso. Não só porque aprecio os seus livros, mas também porque – e sim, eu sei que já disse e escrevi isto várias vezes – a autora consegue ter um signature style muito seu e muito pessoal e isso, meus caros, não é coisa fácil de alcançar. Não se trata de desenhar bem ou mal. Há muitos ilustradores que desenham muitíssimo bem, mas que passam toda uma carreira em busca de um signature style (uma imagem de marca, por outras palavras) sem que o mesmo apareça. Joana Afonso é ainda uma jovem autora e já o conseguiu há muito. É por isso que sempre que aparece um novo álbum da autora, eu fico logo "em pulgas" para o ler e com uma ideia clara em mente: “este livro vai ter desenhos muito bons”. E nunca me sinto defraudado.

E, mesmo admitindo a minha admiração pelo estilo próprio e original da autora, devo dizer que Bestiário da Isa é, até ao momento, o melhor trabalho da autora em termos de ilustração. Os seus livros sempre foram bem desenhados, mas concretamente neste, a autora parece estar um pouco mais inspirada do que o normal, puxando ao máximo pelas suas valências de ilustradora. Não só em termos de desenho como, também, na própria narração visual da história e na forma confiante e bela como a planificação é feita. Também a própria diversidade e dinâmica na utilização de ilustrações, de diferentes formas e feitios, dão a este livro o tom de modernidade perfeito. E já para não falar nas cores que são muito bonitas e que casam que nem uma luva nos desenhos da autora.

Se tenho estado a tecer muitos elogios – mais que merecidos! – a esta obra, há algo onde me parece que Bestiário da Isa, não sendo minimamente mau, também não encanta: no argumento. E quando digo isto, não é que sinta que em termos de história, diálogos ou na narração da ideia, o livro tenha sido mal concebido. Nada disso. Simplesmente acho que, nesse cômputo, a obra não consegue acompanhar o nível de qualidade gráfica que a mesma nos oferece.

A premissa, a narração e os diálogos são razoavelmente apelativos mas parecem-me algo superficiais em demasia, servindo mais o propósito de serem um engodo para que a autora possa dar largas aos seus fantásticos desenhos.

Se o objetivo da autora foi direcionar propositadamente a obra para um público mais infantil (e atenção que não há nada de mal nisso, pelo contrário, até é algo que merece louvores), então talvez a história naive, de poucas nuances narrativas e diálogos demasiado simplistas, encaixe perfeitamente. Dito de outra forma, enquanto livro para um público infantil, considero que Bestiário da Isa roça a perfeição. Enquanto livro para um público mais maduro, considero que a história poderia ter sido contada com mais aprumo narrativo, aprofundando melhor algumas das questões que, muito por alto, acaba por levantar.

Em termos de edição, torna-se claro que A Seita e a Comic Heart fizeram aqui um belo trabalho. O livro apresenta uma (bela) capa dura e tem bom papel brilhante. A encadernação e a impressão apresentam boa qualidade e o livro ainda é guarnecido com um pequeno caderno de extras, com belos esboços da autora.

Em suma, Bestiário da Isa só surpreenderá aqueles que ainda não sabem que Joana Afonso é uma autora magnífica, carregada de originalidade e de um trabalho ímpar. Este é um livro que aponta para um público mais jovem, mas não é por isso que a obra não pode - e deve! - ser lida por toda e qualquer pessoa que goste de banda desenhada.

NOTA FINAL (1/10):

8.9

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

Bestiário da Isa

Autora: Joana Afonso

Editora: A Seita

Páginas: 72, a cores

Encadernação: Capa dura

Formato: 20 x 28 cm

Lançamento: Outubro de 2022