Depois de um ano de hiato, causado pela pandemia de
covid-19, a Comic Con voltou a acontecer durante o passado fim-de-semana, entre
9 e 12 de Dezembro. O que é sempre algo louvável!
A grande novidade desta edição dizia respeito à alteração do
espaço onde o evento decorria. Depois da Exponor e do passeio marítimo de
Algés, desta vez o espaço foi a Altice Arena, no Parque das Nações, em Lisboa,
bem como toda a área circundante ao local, que ia até ao Pavilhão de Portugal.
O evento foi, por isso, híbrido na forma, com iniciativas a acontecer dentro e
fora do Pavilhão Atlântico. Devo dizer que, de um modo geral, este parece-me
ser o melhor local que, até agora, este evento teve.
É fácil de lá chegar, por transporte próprio ou público, há
estacionamento com relativa facilidade (embora seja bastante caro) e o espaço
físico oferece valências que nas edições anteriores do evento não eram
possíveis. Nomeadamente, o impressionante auditório principal, que ocupa metade
da Altice Arena. De um modo geral, a Organização soube tirar proveito do
espaço, há que dizer. Na outra metade do pavilhão temos as várias marcas, quase todas
associadas a canais de televisão, onde são feitas aquilo a que hoje em dia,
pomposamente, se chamam “as ativações de marca.” São, no fundo, stands de
canais televisivos onde se promovem séries e programas de televisão tentando,
de alguma forma, criar algum tipo de experiência com o público. Circulando até
à Sala Tejo, encontramos a área comercial, onde é vendido todo o tipo de
merchandising relacionado com pop culture. Nesse mesmo espaço, está também a
área para autógrafos de autores de bd. No andar de cima, há uma zona para as
crianças brincarem e um pequeno auditório destinado às apresentações de autores
de literatura e de banda desenhada. Acedendo à rua, pela Sala Tejo,
encontrávamos o acesso para um auditório intermédio em dimensão e a restante
área outdoor, onde estava uma pequena tenda dedicada ao cosplay e outra,
bastante maior, dedicada ao gaming. Entre essas duas tendas havia um espaço de
restauração, com vários pontos de venda de street food e, mais adiante, estavam
mais alguns locais de “ativações de marca”, com a presença de um stand (muito
bem conseguido) dedicado à série Walking Dead e outro espaço, com enormes
artefactos insufláveis, dedicado ao Disney Plus. Na entrada do Pavilhão
Atlântico havia a zona Artist’s Alley, onde ilustradores expunham o seu
trabalho.
Na sexta-feira estavam poucas pessoas. No sábado o espaço encheu-se bem
mais. Ainda assim, achei que estava bom para se circular sem grandes problemas e com
filas não tão grandes como vi, noutras edições, no Passeio Marítimo de Algés.
Em tempos de covid, é assinalável o esforço glorioso que a organização há-de
ter feito para ter um evento a decorrer sem (grandes) problemas.
Portanto, olhando para o todo que foi a Comic Con, acho que
a Organização está de parabéns pelo trabalho feito. E a mudança para o Parque
das Nações parece-me boa.
Mas depois há a questão da banda desenhada…
Em primeiro lugar, o nome do evento não corresponde ao que
aí se trata. Isto não é uma convenção ou uma conferência dedicada a comics.
Ponto final, parágrafo. Talvez o nome mais justo para o evento pudesse ser Pop
Culture Con. Aí, talvez os fãs de banda desenhada, e de comics em particular,
não se sentissem tão defraudados com o nome do evento. Mas também compreendo
que o nome há-de ter tido uma razão óbvia. Por ventura, quando este evento foi
lançado, pela primeira vez, nos Estados Unidos, havia um maior enfoque nos
comics.
E, com efeito, se pensarmos bem, isto acontece em muitos outros
eventos. Que dizer, por exemplo, do Rock in Rio, que não se passa no Rio de
Janeiro - mas em Lisboa - e que de música rock, quando temos a bamboleante Ivete Sangalo aos
saltos no palco, não tem nada? Se calhar dever-se-ia chamar Pop in Lisboa, não?
Mas claro, o branding da coisa não seria tão forte. Também a Comic Con
dever-se-ia chamar Pop Culture Con. Mas é o que temos. E também não será pelo
nome de um evento que devemos sentirmo-nos defraudados.
Começando até pelo melhor, há que dizer que o cartaz de
presenças de autores do universo da banda desenhada era muito interessante.
Provavelmente, de forma global, até é capaz de ter sido o melhor line-up de
sempre: Matthieu Bonhomme (O Homem que Matou Lucky Luke), Miguelanxo Prado
(Traço de Giz), Peter Van Dongen (Blake e Mortimer), Paco Roca (Rugas, A Casa),
Ralph Meyer (Undertaker), Michele Benevento (Tex), Mike Grell (Green Arrow), Álvaro Martínez Bueno (DC
Comics), Juan Cavia (Balada para Sophie) e os portugueses Filipe Melo e Paulo
Monteiro.
Infelizmente, alguns destes nomes acabaram por não
comparecer no evento. Foi o caso de Matthieu Bonhomme e de Paco Roca. Dois nomes
muito queridos dos leitores portugueses, diga-se. No meu caso, lamentei especialmente o
cancelamento de Paco Roca, visto que era eu que iria conduzir o painel dedicado
à sua obra. Contudo, vivemos em tempos complexos devido à covid-19, e aos
constrangimentos consequentes, e são coisas que acontecem. E, claro, não podemos
“apontar armas” à organização nesta questão. Por muito que as coisas estivessem
combinadas, a última palavra é sempre dos autores. O Paco Roca, por exemplo,
encontrava-se doente e não pôde comparecer. É chato, mas acontece.
No entanto, há algumas coisas que podemos apontar à
organização. E a principal delas é que, a meu ver, a Organização encara a banda
desenhada como algo suplementar. Quase de bónus. Do género: “’bora lá arranjar
um cantinho para esta malta da banda desenhada (público e profissionais) achar
que a bd também está representada na Comic Con”. Não me entendam como injusto
ou ingrato nesta questão. Já o disse acima, e assinalo novamente, que em
matéria de cartaz, e especialmente para os amantes de banda desenhada de origem
franco-belga, como é o meu caso, a Organização fez um excelente trabalho este ano.
Todavia, onde me parece que a Comic Con deveria fazer alterações é em todo o
resto relacionado com a banda desenhada, que não diz respeito ao cartaz de
convidados. Do que falo, concretamente?
Ora bem, em primeiro lugar, julgo que a banda desenhada
merece um espaço só para si. Nesta edição do evento, e tal como também já disse
mais acima, os dois únicos espaços dedicados à banda desenhada, eram as mesas
destinadas aos autógrafos e o auditório onde decorriam os painéis com os
autores. Nota para a honrosa presença do
Clube Tex Portugal, que tinha um stand no evento. Mas, tirando isso, a Organização não providenciou um espaço dedicado à bd. Havia, isso sim, a introdução da bd
noutros espaços. Portanto, vamos lá ser sinceros e deixarmo-nos de rodeios: com
aquilo que a Organização desenvolve em termos de bd no evento, a verdadeira
razão para um amante de banda desenhada ir à
Comic Con é para tentar sacar uns
autógrafos dos autores de que gosta e, na melhor das hipóteses, para assistir a
uma apresentação. É manifestamente pouco. Faz-me pensar na possibilidade de
existência de um evento chamado
Vegans Con, onde o espaço comercial são
charcutarias e talhos e onde os pratos disponíveis para degustação são chanfana
e
baby ribs. Vá lá, organização, um pouco mais de esforço, por favor.
Tal como o cosplay ou o gaming têm tendas dedicadas a essas
áreas, parece-me que seria justo que a banda desenhada tivesse um espaço
dedicado à 9ª arte. Até poderia ser a tenda mais miserável do evento. Nós não
nos importamos com isso. Convinha é que essa tenda tivesse, para além do espaço
dos autógrafos e do pequeno auditório, um espaço comercial que representasse –
verdadeiramente - o setor da banda desenhada. Como é possível imaginar-se,
sequer, um evento que diz dedicar-se à banda desenhada e onde não se pode
comprar banda desenhada? Os três únicos espaços onde consegui ver alguma – mas pouca
- banda desenhada à venda foram os da Casa da BD, da FNAC e da E Pop Culture
Store. Muito pouco. Migalhas. Onde estão a Kingpin Books? A Dr. Kartoon? E os
espaços das próprias editoras? Onde estavam os livros de editoras importantes
da banda desenhada como a Arte de Autor, a Ala dos Livros, a ASA, a Seita, a
Gradiva, a Escorpião Azul, a Polvo e todas as outras? É simples a resposta: não
estavam. Tirando um ou outro livro dos autores que estiveram presentes no
evento.
Mas, para além do espaço comercial, nesta suposta tenda dedicada
à banda desenhada, há também outra coisa que deveria estar presente: um espaço
de exposição de obras de banda desenhada. Para termos uma ideia concreta desta
minha sugestão, até podemos olhar para aquilo que foi feito com o stand de promoção à série Walking
Dead. Num pequeno espaço, a rondar os 54 ou os 72 metros quadrados, fez-se uma
coisa muito bem feita. Um "mini-museu", com artefactos dos walkers que já se
passearam pela série. Simples, não dispendioso e um dos melhores espaços de
todo o evento. Não se poderia fazer algo assim para um espaço de exposição
dedicado à banda desenhada, com algumas pranchas dos autores que estão presentes
no evento?
Não pensem que estou a ser megalómano ou a chutar ideias
para o ar que não podem ser realizadas por uma questão de espaço ou de orçamento.
Não me digam que é uma coisa assim tão impossível ter-se uma tenda/ uma sala/ um
espaço dedicado à banda desenhada, que serve para tudo o que tem a ver com banda
desenhada aí decorrer: os autógrafos, as apresentações, o espaço comercial e o
espaço de exposição.
Poderão dizer-me: “Ah, mas o público que vai por causa da
banda desenhada é marginal e não vale a aposta na banda desenhada, por parte da
Organização”. A essas pessoas eu respondo: “as pessoas que vão ao evento por
causa da banda desenhada são poucas porque não há uma aposta na bd por parte da
organização”. E andamos aqui às voltas. A apontar o dedo uns aos outros.
Note-se ainda que o público consumidor de banda desenhada
tem, em média, muito maior poder de compra do que a grande maioria do público
que se desloca à Comic Con e que compra um crachá ou, na loucura, um funko. E
quer isto dizer que a Organização, não se esforçando para agarrar esse público
da bd, está ela própria a perder uma bela oportunidade comercial.
Sei também que os preços praticados pela Organização para a
venda de espaço no evento foram muito elevados e completamente incomportáveis para
o mercado de bd em Portugal. Mais uma vez, a Organização poderá dizer: “Vêem,
não vale a pena chatearmo-nos muito com a banda desenhada porque as lojas ou
editoras nem sequer cá vêm vender as suas coisas”. Ao que eu responderia,
novamente: “se não há uma aposta da Organização na BD e, ainda por cima, os
preços pelo aluguer do espaço são enormes, é claro que as lojas e editoras não
vão cometer a loucura de ir à Comic Con”. Uma coisa gera a outra. E tem que
partir, SEMPRE, da Organização a aposta na banda desenhada. O resto vem por
arrasto.
Outra coisa ainda que destaco: o das apresentações.
Estive na apresentação de Peter Van Dogen e creio que toda a assistência tinha
6(!) pessoas. E 4 dessas pessoas correspondiam a uma família de um casal com dois
filhos adolescentes que estiveram sempre a entrar e a sair do auditório. Ou
seja, na verdade, eram 4 pessoas a assistir a uma apresentação. Um autor consagrado faz
uma viagem para fazer uns desenhos e falar para 4 pessoas... A sério? Infelizmente isto
não é algo que apenas aconteça na Comic Con. É triste chamarmos artistas
internacionais aos nossos eventos para falarmos das suas obras e, depois,
ninguém estar nestas apresentações. Acho que temos que fazer algo para mudar isto.
Uma das causas para que o auditório estivesse sempre vazio
era que estavam a decorrer, ao mesmo tempo, sessões de autógrafos. Ou seja, os
fãs de bd ou estavam nas filas para os autógrafos ou estavam no auditório. Não
se pode estar em dois sítios, ao mesmo tempo. A não ser que o auditório
estivesse perto dos autógrafos como, aliás, já propus na tal tenda dedicada à
banda desenhada. Dessa forma, talvez fosse possível estar-se numa fila de
autógrafos e a assistir ou a ouvir, ao mesmo tempo, as apresentações.
Em conversa com o meu amigo Carlos Cunha, do
JuveBêdê, ele
disse-me algo que faz todo o sentido e que subscrevo. As sessões de autógrafos
deveriam acontecer depois de cada apresentação e deveria ser dada uma senha prioritária de autógrafo às pessoas que estavam nas apresentações. Na minha opinião, não
faz sentido que a razão para estarmos com um autor seja apenas e só a de sacar
um autógrafo. Acho que lhes damos – aos autores – a imagem errada da nossa
admiração. Não quero com isto fazer juízos de valor, pois cada um sabe o que
quer e ao que dá primazia, mas acho que se queremos o autógrafo de um artista
de quem gostamos, não é pedir muito a nós mesmos que, em troca, assistamos à
apresentação desses autores. Ou será? E este sistema do: “vieste à
apresentação, toma lá uma senha prioritária de autógrafo” é muito mais justo para toda a
gente, parece-me.
Uma última nota sobre os prémios de bd da Comic Con que,
lamentavelmente, deixaram de ser feitos este ano. Era uma iniciativa com um
prémio monetário e que, por esse motivo, era bastante relevante para os autores
vencedores. É com pena que vejo o cancelamento destes prémios embora eu não
esteja bem por dentro sobre as razões que levaram a que isto acontecesse. E,
portanto, não direi mais além disto: é pena que isto deixe de existir.
Em suma, se é bom que a Comic Con exista e que seja um
evento de larga dimensão? Sem dúvida que sim! Se é bom que a banda desenhada
consiga, de alguma forma, estar representada neste evento? Sim, é algo bom. Se
uma verdadeira aposta da Organização na banda desenhada – que dá nome ao
evento, convém sempre relembrar – pode - e deve! - acontecer para que haja mais
autores, lojas e, acima de tudo, público de banda desenhada? Obviamente que
sim! É um no-brainer, como dizem os ingleses. Para que nós, público de banda
desenhada, não nos sintamos como um vegetariano que vai a um evento chamado
Vegan Con, onde se fala mais de carne do que de vegetais. Pelo menos, é essa a minha "new hope".