Foi ainda durante o Amadora BD que a editora Polvo publicou, entre outras novidades, o livro Edgar - De Lisboa a Paris, nos Passos do meu Sogro Revolucionário, do francês Mathieu Sapin. Era um livro que me estava a deixar com muita curiosidade de o conhecer, por vários motivos: a obra teve direito a uma exposição no Amadora BD e ainda tive o prazer de ouvir parte da apresentação da mesma durante o evento. E todas estas coisas aumentaram o meu interesse na obra.
Este é um livro que narra alguns dos principais acontecimentos na caminhada de Edgar, o sogro de Mathieu Sapin, cuja trajetória de vida foi marcada pela participação, de forma mais ou menos ativa, em acontecimentos históricos e pessoais significativos. Edgar é português e acompanhou de perto a ditadura de Salazar e a revolução portuguesa.
Depois de finda a minha leitura, posso dizer-vos que estamos perante um belo trabalho que tem o condão de ser recomendável por vários motivos: por um lado, a história de Edgar está repleta de eventos e experiências que valem a pena conhecer; por outro lado, o facto de Mathieu Sapin fazer de Edgar uma personagem muito interessante, que evoca o Dom Quixote de Miguel de Cervantes, ao levar-nos a questionar alguma da veracidade dos seus relatos, faz com que a leitura seja, por ventura, mais impactante. Por último, tratando-se de uma personagem portuguesa, até agora anónima, que testemunhou tantos eventos da história recente do nosso país, o livro reveste-se, claro está, de mais relevância para que possamos compreender melhor o período pelo qual Portugal passou. Diria até que é um daqueles casos em que seria um "crime" que as editoras portuguesas deixassem passar a oportunidade de publicar esta obra "tão portuguesa", mesmo tendo sido feita por um estrangeiro.
Ora, estas duas coisas que acabo de apontar podem soar um pouco divergentes, reconheço. Se, por um lado, Edgar é um contador de histórias que, bem ao jeito do protagonista do filme Big Fish, de Tim Burton, nos apresenta passagens que parecem (demasiadamente) mirabolantes na sua vida, o que nos faz duvidar da sua veracidade; por outro lado, a obra também tenta ser educativa e, portanto, essas duas valências poderão opor-se uma à outra. Mesmo assim, não se apoquentem: parece-me que o livro Edgar consegue fazer as duas coisas bem: é um importante contributo para que possamos mergulhar nestes factos históricos e, paralelamente, se a personagem real de Edgar é algo dúbia nas suas afirmações, isso permite, quanto a mim, uma proximidade do leitor à mesma. Devo dizer que fiquei fã de Edgar e, especialmente, da sua personalidade, completamente "fora da caixa" e extremamente genuína, bem apanhada pelo autor Mathieu Sapin.
O próprio Mathieu Sapin - e até mesmo o editor da Polvo, Rui Brito, já agora - aparece como personagem da obra, sendo que o livro não é mais do que um extenso conjunto de diálogos entre Sapin e o seu sogro, Edgar, com este último a contar-lhe, ou melhor, a contar-nos, a sua história de vida. Desde os tempos em que era jovem e começou a pôr em causa o regime que controlava Portugal, até aos tempos em que chegou mesmo a militar contra o mesmo, unindo-se aos grupos comunistas, participando em movimentos revolucionários, e acabando, eventualmente, por desertar do exército português e procurar asilo em Paris. Chegado a França, Edgar encontra não só refúgio do regime português, como a oportunidade para recomeçar a sua vida.
O livro acaba, pois, por revelar a complexidade de uma experiência de vida que pode muito bem ter sido partilhada por tantos e tantos outros portugueses que se viram confrontados com uma existência semelhante. Esta jornada inclui não apenas momentos de luta política, mas também a adaptação à vida num novo país e as suas relações pessoais e familiares. Pelo meio, Sapin vai-nos introduzindo a várias figuras e momentos chave da história contemporânea de Portugal, o que contribui, lá está, para a vertente mais educativa da obra e para dar alguma dinâmica narrativa à mesma.
O facto de Edgar ser um trabalho autobiográfico, focada no sogro de Sapin, confere uma camada de intimidade e autenticidade à história. O autor consegue entrelaçar elementos de sua própria vida com a história de Edgar, mostrando a influência que esta personagem tem na sua vida pessoal e na forma como ele vê o mundo. Essa abordagem pessoal torna a obra não apenas um retrato histórico, mas também uma homenagem a uma figura que, para Sapin, representa coragem e resiliência.
O que ainda não referi e que, a meu ver, é um ponto alto da obra, é o cariz humorístico da mesma. Não só considero este livro como pertencente ao subgénero do humor, como admito ter-me rido bastantes vezes à medida que ia avançando na leitura. Não é que estejamos perante um livro de gags clássicos, com a introdução cirúrgica dos clássicos punchlines que estão ali só mais para nos fazerem rir. Não. Mas estamos perante uma personagem forte, por vezes caricata, que, pela sua forma de estar e pelas suas afirmações - que são depois complementadas pelos comentários, pensamentos e justificações de Sapin - nos consegue arrancar várias risadas. Edgar é paranoico, achando sempre que os chineses o estão a vigiar, e conta-nos com desfaçatez o facto de ter sido a estrela de um documentário de Lazareff, de ser um descendente afastado do Duque de Wellington ou de ter escrito um livro sobre as suas vivências.
Face a todas estas afirmações estonteantes, vemos depois Sapin a fazer pesquisa em cima do que lhe é contado pelo sogro e a descobrir que, mesmo de uma forma que podemos considerar parcial, há verdade naquilo que Edgar afirma. Ou uma parte de verdade, vá. Bem à semelhança do já mencionado filme Big Fish, de Burton.
O estilo de ilustração combina bem com esta abordagem humorística. Os desenhos são "cartoonescos" e, por vezes, algo toscos nas formas, com as cabeças das personagens a serem bem maiores, em termos proporcionais, do que os corpos que as sustentam. Mesmo assim, a maneira como o autor desenha os cenários, como a baixa lisboeta, a Ericeira ou a cidade de Paris, por exemplo, é bastante agradável à vista. Nota positiva para as cores, da autoria de Clémence Sapin, que tornam as ilustrações de Mathieu Sapin ainda mais apelativas.
Em termos de edição, estamos perante um belo trabalho da editora Polvo que até não costuma editar livros nestes moldes: o livro apresenta capa dura brilhante, bom papel baço no interior do livro e bom trabalho ao nível da impressão e da encadernação. No final, enquanto extra, há um caderno gráfico onde temos acesso ao bloco de notas do autor, com textos e esboços. A edição portuguesa desta obra - que foi originalmente lançada em 2023 - apresenta uma nova capa que é bastante mais bonita do que a capa da edição original da obra.
Em suma, este é um livro bem-vindo e lançado com bom sentido de oportunidade por parte da editora Polvo, já que se comemoram em 2024 os 50 anos do 25 de Abril e importa não esquecer o quão negativamente impactante foi a ditadura de Salazar em milhares e milhares de portugueses que se viram perseguidos e forçados a trocar de pátria para a demanda por uma vida melhor. E mais livre. E em Edgar, Mathieu Sapin, dá-nos tudo isso enquanto nos apresenta uma personagem real e irresistivelmente cómica: o seu próprio sogro.
NOTA FINAL (1/10):
8.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020