quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Análise: Toutinegra



Toutinegra, de André Oliveira e Bernardo Majer

Toutinegra é uma banda desenhada publicada pela editora Polvo e oferece-nos uma história verdadeiramente madura, maravilhosamente escrita por André Oliveira e curiosamente ilustrada por Bernando Majer. E à qual os leitores portugueses de banda desenhada – e não só – deviam dar uma oportunidade. Certamente, a grande maioria desses leitores ficaria maravilhada com esta obra. 

A necessidade de pertença de alguém que, sem saber a sua origem, consegue, ainda assim, arriscar que não faz parte daquele lugar nem daquelas gentes, é o mote inicial com que Toutinegra nos brinda. E se, aparentemente, ao folhearmos desprendidamente o livro, ficamos com a ideia de que se trata de uma história sobre crianças, diria que, na verdade, após lermos o livro com atenção, percebemos que é uma história sobre adultos, que já foram crianças e que cujas vivências não mais os largaram. Não é, contudo, um livro saudosista no sentido positivo e alegre da palavra, que remete para os dias belos passados na infância. Sem querer revelar muito da trama aqui presente, diria que o tipo de saudosismo que emana desta obra é aquele referente à perda de algo bom na infância e a forma como isso nos molda e confina o modo de ser, na vida adulta. Não mais somos a mesma coisa depois de perdermos algo que fazia (tanto) parte de nós. Isto já foi dito muitas vezes, por muitas pessoas, em muitos livros, filmes e canções mas há formas e formas de o dizer e Toutinegra, dá-nos a sua própria visão. Profunda, triste mas que, no derradeiro final, deixa entrar uma luz de esperança. Uma redenção.

Toutinegra
reveste-se de uma sensibilidade que, infelizmente, não é tão comum assim em banda desenhada. Uma sensibilidade que nos toca lá no fundo, que nos tira o sorriso superficial que temos na cara, deixando-nos com um nó na garganta. André Oliveira é exímio no uso da palavra, dando-nos um texto simples e profundo, que nos faz pensar e refletir sobre a vida, sobre os sonhos, sobre as vivências passadas, as raízes, as memórias e a ausência de um tempo que já não volta a ser.

A história apresenta-nos duas crianças, Pedro e Adelaide que vivem em Moinho, uma isolada e desabitada aldeia do interior do país. São as únicas crianças que frequentam a escola e, também por isso, são amigos inseparáveis. Mas claro, mesmo estando confinadas a um local tão recôndito e particular, ambas têm origens e famílias muito diferentes. Pedro apenas tem mãe – Dona Luz, a mulher maluca da aldeia – e Adelaide, mesmo tendo um pai com grave doença, tem uma família dita mais normal e abastada. Pedro é como que o enigma, uma pergunta sem resposta, da qual apenas se pode especular. Já Adelaide é um milagre da vida – pois nasceu de pais já algo idosos. Ela é, portanto, uma luz para eles e para a própria aldeia onde vivem.

A história assume depois, uma dimensão do universo fantástico, com o aparecimento de uma criatura, com quem as personagens começam a esgrimir argumentos e questões sem resposta. Esta figura apresenta-se como que uma consciência carregada de negritude que as crianças começam a ganhar da vida que as rodeia.

O que é maravilhoso neste livro é a forma inteligente e sensível como André Oliveira nos embala, ao sabor e ritmo das suas palavras, construindo uma história que parece levar a um sítio, mas que, à medida que a vamos desvendando, nos leva a um outro caminho. Quiçá menos fantasioso, mas com uma violência emocional cortante. 

O estilo de ilustração aqui presente encaixa bem na narrativa, sendo bastante bem conseguido. Com um traço pueril e linear, Bernando Majer apresenta-se em grande estilo na banda desenhada portuguesa. E embora o seu estilo seja  naïf e infantil na ilustração, com as personagens a fazerem lembrar-me a saudosa série infantil televisiva de Tom Sawyer, o autor soube munir as suas ilustrações de um processo de colorização graciosa que em muito contribui para um resultado bonito de se observar. Diria até, que o seu desenho sem estas cores não seria tão cativante, nem as suas cores utilizadas num estilo de ilustração mais detalhado e desenvolvido, teriam, presumivelmente, um resultado tão agradável. O seu signature style, acaba mesmo por depender em muito das cores que são utilizadas de forma leve e bonita, através da aplicação de aguarelas em tons muito suaves. É um livro bonito e com uma identidade muito própria na parte das ilustrações. Talvez este tipo de ilustração não agrade a toda a gente mas, pelo menos para mim, funciona muito bem, quando aplicado à narrativa construída por André Oliveira.

Em termos de edição, a Polvo oferece-nos um bom produto, com uma (bonita) capa dura. A meu ver, talvez o tipo de papel brilhante que aqui foi utilizado não fosse o mais indicado. Olhando para a arte de Bernardo Majer e para o próprio cariz poético da obra, diria que um papel baço funcionaria melhor. Mas isso é um detalhe porque a edição da Polvo, repito, está bem conseguida.

Em conclusão e em poucas palavras: Toutinegra é uma obra fantástica que merece ser conhecida e que consolida, ainda mais, André Oliveira como um dos melhores argumentistas de banda desenhada em Portugal.


NOTA FINAL (1/10):
8.9


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Toutinegra
Autores: André Oliveira e Bernardo Majer
Editora: Polvo
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2019

Análise: Os Beresford – Mister Brown




Os Beresford – Mister Brown, de Emilio Van der Zuiden

Depois de, em 2018, a Arte de Autor, ter começado a editar a Coleção Agatha Christie, que reúne adaptações para a banda desenhada da obra da escritora, a editora portuguesa já lançou três álbuns: Hercule Poirot - Crime no Expresso do Oriente, Miss Marple - Um Cadáver na Biblioteca e este Os Beresford - Mister Brown, que merece a análise que se segue. A título de curiosidade, informa-se que a Arte de Autor tem previsto para o próximo mês de Outubro, o lançamento de um álbum duplo desta coleção, que será constituído pelos tomos Morte no Nilo e O Misterioso Caso Styles.

Todas as obras da Coleção Agatha Christie são adaptadas por autores de banda desenhada diferentes. Neste caso, Os Beresford – Mister Brown ficou a cargo de Emilio Van der Zuiden.

A história tem como protagonistas a bonita Tuppence Cowley e o ruivo Thomas Beresford. Ambos se conheceram na Primeira Guerra Mundial, onde Tuppence era enfermeira e Thomas era soldado. Agora que foram desmobilizados, voltam a encontrar-se e juntos, montam uma sociedade que dá pelo nome de “The Young Adventurers Limited“. E logo se vêem implicados num caso de espionagem. Há quatros anos, o navio Lusitania naufragou e uma das vítimas desse evento foi um oficial americano que, vendo-se na iminência de não escapar com vida ao referido naufrágio do navio, confiou documentos oficiais a uma rapariga, Jane Fish, para que a mesma os levasse ao Rei de Inglaterra. Entretanto, Jane Fish acaba desaparecida e a missão dos “The Young Adventurers Limited“, Tuppence e Thomas, será encontrar esta jovem que está escondida algures em Inglaterra.

Emilio Van der Zuiden dá-nos uma adaptação consistente e bem ritmada que torna esta obra bastante acessível e de leitura fácil. Embora conheça outros livros de Agatha Christie, não conhecia nenhuma das histórias a envolver o casal Beresford e portanto, devo admitir que este livro foi uma agradável surpresa para mim. O argumento dá várias voltas, levando-nos por um caminho para, logo a seguir, nos levar por outro, o que torna interessante o mistério que envolve as personagens, nomeadamente a personagem enigmática de Mister Brown. Sendo, como já referi, uma leitura fácil e direta, a camada de mistério e de enigma nunca é muito profunda e a própria ação, tendo em conta que o livro apenas tem 64 páginas, tem que ser rápida, sem grande espaço para desenvolvimento de personagens.

Relativamente à ilustração, este é um álbum muitíssimo bem conseguido. O traço de Emilio Van der Zuiden é elegante, e em linha clara, com o autor a revelar capacidades elevadas no desenho das personagens, dos veículos, dos cenários e, basicamente, de tudo o que ilustra. Tudo é brilhantemente bem desenhado e a própria tónica da ilustração – a que também muito ajudam as competentes cores de Fabien Alquier – remete-nos para o universo dos livros de Agatha Christie e para a ambiência british do Reino Unido, no período pós Primeira Guerra Mundial. Acho que isso é um grande feito do autor, pois nem sempre as adaptações de obras da literatura para a banda desenhada conseguem transportar-nos para esse universo visual, que já tínhamos construído mentalmente aquando da leitura dos romances. O universo de Agatha Christie que Emilio Van der Zuiden nos dá é exatamente, sem tirar nem pôr, o universo que imaginei quando li alguns romances de Christie.

Outra coisa há, que é impossível não referir quando se olha para esta obra: a fantástica, audaz e, por vezes, corajosa, planificação da obra. Sendo um "álbum clássico" (chamemos-lhe assim) no estilo, história e até ilustração, achei curioso e interessante que a planificação desta banda desenhada fosse tão dinâmica. De facto, nesse cômputo, parece haver de tudo um pouco neste Os Beresford: desde largas ilustrações que ocupam duas páginas, vinhetas de todo o tipo de tamanhos e formas, utilização de algumas vinhetas com o fundo propositadamente a branco. O autor serve-se de várias técnicas que muito contribuem para que a obra se torne bastante diversificada. 

E há particularmente dois conjuntos de páginas duplas, nomeadamente as páginas 16 e 17 e as páginas 38 e 39, que merecem destaque por desmontarem e recriarem todas as fundações da planificação clássica da banda desenhada. No primeiro caso, acompanhamos uma conversa de Tuppence, Thomas e Mr. Carter por um jardim, onde os vamos seguindo, para trás e para a frente, como se essas duas páginas, fossem uma grande ilustração, separada por vinhetas que mostram as personagens em todos os ângulos possíveis, passeando pelos caminhos intrincados do jardim. Notável, sem dúvida. No segundo caso, nas páginas 38 e 39, também temos a ação da fuga de Thomas montada de forma sui generis pelo autor, com uma ilustração central da casa de onde a personagem se tenta evadir. Embora não tão bem conseguido como o primeiro exemplo, também é algo audaz e muito interessante por parte de Van der Zuiden. Há um preço a pagar com estas excentricidades do autor: nem sempre o fio condutor da ação é perfeito e fluído, o que pressupõe um cuidado redobrado por parte do leitor para melhor compreender o que se está a passar, pela ordem certa. Não obstante, e sublinhando a coragem de avançar com páginas deste engenho e criatividade, é um preço pequeno que o leitor paga por algo novo e refrescante que, na minha opinião, é muito bem-vindo.

Não tão bem-vindas são as legendagens que, muitas vezes, não parecem colocadas da melhor forma, o que obriga o leitor a ter que voltar atrás, e reler a vinheta do início, para que a história faça sentido. É uma questão pequena, mas que deveria ter sido mais bem acautelada pelo autor, para garante de melhor fluidez na leitura. Julgo também que, por vezes, teria sido possível ter um pouco de menos texto na obra, embora compreenda que haja uma certa tendência para tal nas adaptações de obras de literatura.

Quanto à edição da Arte de Autor, como não podia deixar de ser, é de excelente qualidade. Edição cuidada, com capa dura e papel de boa gramagem. Sendo o papel baço, parece-me a escolha mais feliz para este tipo de história, pois realça as cores e traço do autor. 

Ainda não li Miss Marple - Um Cadáver na Biblioteca (embora brevemente seja aqui publicada a análise a esse livro que a editora já me fez chegar) mas, entre Hercule Poirot - Crime no Expresso do Oriente e este Os Beresford - Mister Brown, posso dizer que o último é sobejamente melhor do que o primeiro volume. Uma boa e refinada história para fãs de bandas desenhadas de detectives e mistério e, claro, para os amantes da incontornável obra da autora Agatha Christie.


NOTA FINAL (1/10):
8.6



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
Os Beresford – Mister Brown
Adaptação do Romance de Agatha Christie
Autor: Emilio Van der Zuiden
Editora: Arte de Autor
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2019

Lançamento: Homem-Grilo



Acaba de ser anunciado o lançamento da obra Homem-Grilo. Trata-se de uma publicação de autor, do selo de Flávio C. Almeida - FA que, há uns meses, lançou para o mercado português a obra Pepper e Carrot.

Desta vez, estamos perante uma banda desenhada, da autoria de Cadú Simões, que fez a sua estreia no ano 2000. Por esse motivo, este lançamento também procura assinalar os 20 anos do super-herói.

Mais abaixo, fiquem com a nota de imprensa e com as imagens promocionais.


Homem-Grilo, de Cadú Simões, Ricardo Marcelino e Alex Rodrigues

Não importa quando, onde, ou quem, a jornada do herói é sempre a mesma, e isso inclui até mesmo um certo super-herói!

Carlos Parducci era um jovem como outro qualquer até ser mordido por um grilo radioativo (se é que os grilos mordem) e receber habilidades proporcionais às desse inseto, além do sensacional sentido de grilo (que ele não sabe pra que serve, mas tudo bem). Carlos então resolveu fazer bom uso dos seus novos poderes e, assumindo o nome de Homem-Grilo, começou a combater o crime e a proteger os fracos e indefesos em Osasco City. Mas para ele, mais do que uma grande responsabilidade, ser o Homem-Grilo é uma grande diversão, principalmente quando se tem a oportunidade de chutar no rabo de vilões megalomaníacos que querem dominar o mundo (e está cheio deles por aí, mas... onde é que eu já ouvi isto tudo antes!).

Criação do argumentista Cadu Simões, o Homem-Grilo a princípio, estava destinada a ser um super-herói sério com aventuras online. No entanto, o bom-senso venceu, e o herói com aspeto cómico prevaleceu. O Homem-Grilo fez a sua estreia em 2000, na forma de uma dezena de tiras virtuais publicadas na internet, comemorando 20 anos de “carreira” que é assinalado também por esta publicação. Com ilustrações de Ricardo Marcelino e Alex Rodrigues, capa de Will, e edição de Flávio C. Almeida.

Disponível em www.fabd.pt e em várias plataformas online.

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Ficha técnica
Homem-Grilo
Autores: Cadú Simões, Ricardo Marcelino e Alex Rodrigues
Editor: Flávio C. Almeida
Páginas: 58, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
PVP: 13,30€
Também disponível em formato digital: ISBN 9781716563379 - PVP 3,99€ 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Vencedor do Passatempo "A Época das Rosas"




Já temos o vencedor para o passatempo/giveaway do Vinheta 2020 que tinha o livro A Época das Rosas para oferecer!

Desta vez, ultrapassámos as 160 participações, feitas através do facebook e do instagram

Foi feito um sorteio através de um site para o efeito (Sorteador.com.br) que, aleatoriamente, escolheu o seguinte participante:


Joana Marinho


Muitos parabéns! Este A Época das Rosas, lançado em Portugal pela Planeta Tangerina, já é teu!

Quanto a todos os que desta vez não ganharam, resta-me agradecer pelas participações. 

Se concorreste e não ganhaste desta vez, não desanimes porque o Vinheta 2020 terá muitos mais passatempos nos próximos tempos.

Só tens que ir passando no blog e acompanhando as redes sociais do mesmo, para saberes que prémios haverão para oferecer aos leitores deste espaço.

Até já!



Análise: The New Deal




The New Deal, de Jonathan Case

The New Deal é a sexta novela gráfica da Coleção de novelas gráficas da Levoir e do Público, e assume-se como uma ótima escolha para esta coleção, que tantas obras e autores novos nos tem dado, globalmente, ao longo dos últimos 6 anos.

Este é um livro que nos mostra que é possível fazer as coisas de forma simples mas com um resultado muito interessante e abonatório. The New Deal, do autor americano Jonathan Case que vê assim a sua primeira obra a ser editada em Portugal, é uma história simples, direta, e sem grandes subterfúgios narrativos ou "bengalas" de argumento. Quase como se fosse uma tele-novela, de tão simples que é na sua premissa. Mas isso não tem necessariamente de ser negativo, pois mesmo não sendo uma história com grandes reflexões a fazer – embora a questão racial e a era do New Deal marquem presença de forma subtil –, esta é uma obra muito bem conseguida.

A história passa-se na Nova Iorque dos anos 30, exatamente pela altura em que o New Deal era implementado pelo Presidente Roosevelt, com o objetivo de levantar a economia americana, após o período de Grande Depressão que se vivera até então. A ação toma lugar, precisamente, e quase integralmente, no emblemático e prestigiado Hotel Waldorf Astoria. Os dois protagonistas da história são Frank e Theresa. Ambos são empregados no hotel nova-iorquino como paquete e como empregada da limpeza, respetivamente. Frank contraiu uma dívida ao jogo e Theresa é uma atriz amadora. Entretanto uma vaga de roubos misteriosos começa a acontecer no hotel e Frank e Theresa passam a ser alvos de investigação. Aparece ainda uma muito sensual Nina, que se assume como uma misteriosa personagem, e que em muito influenciará a aliança que Frank e Theresa se vêem forçados a fazer. 

A história demora um pouco a arrancar verdadeiramente, mas quando o faz, é em linha recta até ao final do livro. Reunindo uma boa dose de situações cómicas e de mistério, Jonathan Case oferece-nos uma obra ligeira e simples, em termos de argumento, mas que é o engodo perfeito para nos cativar perante as suas magníficas ilustrações.

E, de facto, a arte de The New Deal é maravilhosa, encaixando perfeitamente no período histórico dos anos 30, com o autor a demonstrar um grande virtuosismo técnico no desenho. Case oferece-nos um livro com uma ilustração com um traço elegante e fino que, por vezes, faz lembrar a obra do célebre Will Eisner, embora, no caso de Jonathan Case, haja um cuidado mais realista com as expressões das personagens. Nesse cômputo da caracterização das expressões faciais, Case assume-se como um verdadeiro mestre, oferecendo-nos um impressionante desfile de bem executadas e inconfundíveis expressões faciais, que aprofundam o estado emocional das personagens e, consequentemente, do leitor. Passamos facilmente a nutrir empatia pelas personagens deste livro.

Em termos de cor, The New Deal apresenta um "falso preto e branco" pois, ao longo de todo o livro, estão presentes tons azulados de cinza que transmitem charme e beleza às páginas onde habitam vinhetas de uma dimensão generosa que, inteligentemente, potenciam ainda mais a boa caracterização facial das personagens. Nesta componente do tratamento da cor, a obra lembrou-me bastante Harley Quinn: Através do Espelho, publicado também pela editora Levoir. Embora, naturalmente, ambas as obras, quer do ponto de vista do tema, quer do ponto de vista da história, nada mais tenham em comum.

No departamento da arte, faço ainda um destaque à forma como o autor desenha mulheres que aparentam uma beleza ímpar, muito agradável à vista do leitor. Quer Theresa, quer Nina, são mulheres lindíssimas, com fisionomias perfeitamente traçadas por Jonathan Case.

A edição da Levoir está em linha com os seus livros desta coleção de novelas gráficas: capa dura, papel fino e, no geral, uma boa edição para um preço tão simpático de 10,90€. Não foram notados erros ou problemas nesta edição, como aconteceu em O Neto do Homem mais Sábio ou em Rever Paris, portanto, podemos esperar que esses problemas tenham sido a exceção e não a regra.

Como crítica negativa a esta obra, talvez a história pudesse ser um pouco maior em dimensão, para melhor desenvolver e preparar o leitor para o final que, não sendo mal executado, é algo brusco. No final a sensação do leitor é: “já acabou?”. O que também não deixa de ser algo que tem o seu lado positivo, visto que o autor nos consegue prender à narrativa da obra.

Em suma, The New Deal faz-me lembrar aqueles músicos maravilhosos que, utilizando poucos acordes, conseguem fazer músicas simples, mas que são, igualmente, soberbas. O autor poder-se-ia ter perdido num argumento mais profundo, com questões político-sociais mais prementes, mas, ao invés, optou por fazer tudo de forma simples e direta. Esta é uma história policial bem straight e ligeira que convida a uma leitura sem pausas da obra. Uma aposta ganha da Levoir por ter escolhido aquela que é, a meu ver, e por enquanto, a melhor obra desta sexta edição da coleção de novelas gráficas. 
Recomendada, certamente.


NOTA FINAL (1/10):
8.7




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha Técnica
The New Deal
Autor: Jonathan Case
Editora: Levoir
Páginas: 120, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2020

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Análise: Lucky Luke Muda de Sela




Lucky Luke Muda de Sela, de Mawil

Se, tal como eu, ficaram céticos quanto a um livro que subverte algumas coisas no clássico Lucky Luke, apresentando o cowboy mais famoso do mundo a deslocar-se numa bicicleta, em vez de no seu célebre e fiel cavalo Jolly Jumper, devo dizer que não há razões para alarme! Não é o Lucky Luke típico – desenganem-se os que acham ou esperam que seja – mas é uma bonita, sentida e, acima de tudo, divertidíssima homenagem a essa figura inesquecível da banda desenhada - e até mesmo da cultura popular -, que é Lucky Luke. Portanto, ponham de lado o ceticismo pois este é um livro que não vão querer deixar de ler!

Mawil, autor alemão que julgo ser inédito em Portugal, mergulhou bem fundo, nas profundezas da sua memória, para aí encontrar as características singulares que fizeram desta série incontornável da banda desenhada franco-belga, aquilo que ela é. E essas características, e de forma muito sucinta, são estas: 1) Lucky Luke é um cowboy solitário; 2) que dispara mais depressa do que a própria sombra; 3) que se mete em diversas aventuras mirabolantes; 4) mas com uma narrativa que sempre se apoia em factos reais. Isto é, há sempre algo histórico, algo real em que a série se baseia para narrar as suas histórias. 5) Por último, todos os livros têm uma vertente muito divertida, com personagens carismáticas e cómicas que ficam célebres junto dos leitores.

Agarrando nestas 5 características, Mawil soube (re)criar um excelente álbum de Lucky Luke, que assenta bem nas tais características nucleares que apontei. Senão vejamos: em Lucky Luke Muda de Sela, 1) o cowboy tem uma aventura bastante solitária em grande parte do livro; 2) são-nos mostradas situações em que relembramos porque é que Luke é o cowboy mais ágil e rápido com a sua pistola; 3) somos introduzidos numa aventura muito louca que atravessa os Estados Unidos da América (ainda por cima, com o protagonista montado numa bicicleta); 4) não esquecendo de introduzir os factos reais na história, ao nível do desenvolvimento das bicicletas, bem como, utilizando duas personagens reais. Finalmente, 5) as novas personagens que aparecem nesta história, são divertidíssimas e bem carismáticas. Et voilà, temos os ingredientes certos para uma boa história de Lucky Luke

Nesta aventura, conhecemos o inventor Albert Overman que acaba de inventar uma nova bicicleta, muito diferente das que existiam então – que tinham uma grande roda à frente e outra, bem pequena, atrás – e que decide rumar até São Francisco, onde se realizava a maior corrida de bicicletas de todos os tempos. Com a sua nova bicicleta, que passa a usar uma corrente ente pedais e roda traseira, Overman acredita ter uma invenção que irá mudar para sempre a forma como a sociedade utiliza estes veículos de duas rodas. Eventualmente, o inventor conhece Lucky Luke, que o decide ajudar na sua demanda, mas que, invariavelmente, acaba metido numa grande confusão. Quando dá por ele, o cowboy solitário encontra-se a atravessar a América montado numa bicicleta(!). Se a ideia parece um pouco sem sentido, tendo em conta que, afinal de contas, se trata de um western, devo dizer que Mawil soube arquitetar muito bem o argumento de forma a que, mesmo parecendo absurdo, o leitor aceite e acabe por mergulhar com gosto na história. 

E o grande trunfo desta obra é, sem dúvida, a forma divertida como nos é contada. São inúmeras as situações engraçadas em que Lucky Luke se irá meter e estou certo que muitas delas arrancarão uma boa dose de risadas a muitos leitores. Não esquecendo também a introdução do Sr. Smith e a Sra. Wesson, que são dois vilões hilariantes, que certamente não serão esquecidos por quem ler este livro. 

Para além de ser divertida, esta história também está bem ritmada, havendo espaço para que muita coisa aconteça. Desde uma viagem atribulada no comboio, a um encontro de Lucky Luke quase fatal com uma tribo de índios, a uma acidentada viagem de bicicleta pelo meio do deserto (e respetivas impossibilidades que isso acarreta), ou a própria corrida de bicicletas que sucede num espaço totalmente urbanizado como a cidade de São Francisco, tudo isso oferece ao álbum um certo dinamismo, que faz com que o livro possa ser lido de um só trago, pois não há espaço para repetições. A leitura é escorreita e fácil. 

Em termos de argumento, a única coisa que me pareceu não tão bem conseguida é que a personalidade deste Lucky Luke me pareceu algo descaracterizada. E não o digo pelo aspeto visual da personagem. Digo-o porque o achei um pouco mais "desmiolado", mais perdido, menos hábil e menos "senhor da situação", como normalmente costuma ser. Claro que a introdução de uma bicicleta, que era um objeto que, naquele tempo, parecia vindo de um outro planeta, pode justificar a reação algo insegura de Lucky Luke. Mas, mesmo assim, acho que o autor talvez pudesse ter introduzido algumas características clássicas do comportamento da personagem pois a verdade é que esta história continuaria a funcionar exatamente da mesma forma se, em vez de Lucky Luke, tivéssemos um qualquer outro cowboy inventado por Mawil.

Quanto à arte ilustrativa, penso que há um caminho certo e errado para conseguir aproveitar da melhor forma o trabalho de Mawil. Se olharmos para estes desenhos, comparando-os automaticamente com o trabalho de Morris, a desilusão é quase um dado adquirido. No entanto, se olharmos para esta arte, tendo em conta de que se trata de uma hommage ao Lucky Luke original, então aí, certamente, conseguiremos aproveitar e bem-dizer a forma como o autor alemão soube recriar estas personagens. Esta é, aliás, uma regra base para que os leitores consigam mergulhar verdadeiramente neste tipo de obras, que procuram prestar homenagens aos autores e/ou personagens originais. Este não é o Lucky Luke de Morris. Este é o Lucky Luke de Mawil que, é verdade, presta uma justa e bem conseguida homenagem ao herói original. Mas cabe ao leitor saber abrir a sua cabeça, para melhor aproveitar novas abordagens em séries clássicas.


As ilustrações de Mawil são extremamente cartoonizadas, com um estilo naïf e simplista no traço, e com as caras das personagens e dos cavalos a parecerem, por vezes, desenhadas por crianças. A forma algo arcaica como desenha as caras, bem "abonecadas", das personagens remete-me também para um estilo de desenhos animados que hoje em dia, passa muito na televisão. No entanto, é igualmente de salientar que na caracterização de algumas paisagens, Mawil revela ter uma boa capacidade ilustrativa que ajuda a obra a "respirar" melhor, para que não sejam (só) as personagens a monopolizar as vinhetas desta banda desenhada. 

Esta edição portuguesa – que faz o feito mais do que respeitável de anteceder a própria publicação da obra no mercado franco-belga! - está um autêntico mimo e segue aquilo que A Seita já nos deu, com o anterior O Homem que Matou Lucky Luke. Boa encadernação, com papel baço de primeira qualidade (que até cheira bem!) e que atribui o charme adequado à obra. E a capa dura baça também funciona muito bem. Um detalhe que merece nota é a lombada, por ter recebido da editora portuguesa o cuidado de ser igual à edição d’ O Homem que Matou Lucky Luke, o que será uma mais valia extra para os que compraram esse volume. Agora, juntando esse primeiro álbum a este Lucky Luke Muda de Sela, esses leitores poderão colocar ambos os livros, lado a lado, na estante, para um bom efeito visual.
A obra tem ainda uma capa alternativa que é exclusiva para a FNAC e que está, para o meu gosto, espetacular. Finalmente, há ainda um caderno de extras no final do livro onde vemos o processo de conceção da capa e de algumas pranchas e personagens. Se sou o primeiro a apontar problemas no design dos livros ou na qualidade da edição de certas obras de bd, também sou o primeiro a enaltecer as editoras e autores, quando fazem um magnífico trabalho. Como é o caso. Faço ainda um destaque para a tradução que me pareceu muito feliz, com a utilização de algumas expressões bem portuguesas, que tornam a história mais "nossa" sem, naturalmente, corromper ou alterar o texto original.

Capa da edição exclusiva da FNAC

Em conclusão, este é um livro adequado para miúdos e jovens mas que também vai agradar a muitos adultos, pela oportunidade de mergulhar num universo western tão querido e amado por tantos amantes de banda desenhada. Lucky Luke Muda de Sela é muitíssimo divertido, funciona extremamente bem e é uma agradável surpresa. Todos os fãs do cowboy mais célebre da banda desenhada deverão dar-lhe uma oportunidade. Há fortes probabilidades de não se arrependerem!


NOTA FINAL (1/10):
8.4



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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Ficha técnica
Lucky Luke muda de Sela
Autor: Mawil
Editora: A Seita
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2020

Lançamento: The New Deal

The New Deal, de Jonathan Case - Levoir e Público



The New Deal, de Jonathan Case - Levoir e Público

Amanhã chega às bancas o 6º volume da coleção novelas gráficas, da Levoir e do jornal Público. Desta vez, temos o autor americano Jonathan Case, que se estreia em Portugal com a obra de grande fôlego The New Deal.


Fiquem com a nota da editora e com as imagens promocionais.

The New Deal, de Jonathan Case
Jonathan Case, escritor americano, vencedor do Prémio Eisner, desenhador e pintor estreia-se em Portugal com The New Deal, considerada uma das melhores novelas gráficas de 2015 pela Amazon, sai em banca a 26 de Setembro.

The New Deal, de Jonathan Case - Levoir e Público
Case escreve e desenha esta brilhante novela gráfica com uma subtil dimensão política e social. Através do seu enredo falsamente ligeiro e personagens verdadeiros, The New Deal explora as relações humanas, disparidades de classe, tensões raciais, e capta o espírito da época que descreve: a Grande Depressão da década de 1930.

Na década de 1930 em Nova Iorque, o Waldorf Astoria era o hotel de maior prestígio em Manhattan. Com a chegada da encantadora Nina e da sua comitiva da alta sociedade, o hotel foi atingido por uma série de furtos misteriosos envolvendo Frank, um jovem paquete com azar ao jogo, e Theresa, a empregada de limpeza, negra e actriz amadora. O caso torna-se muito problemático, e a dupla deve rapidamente confiar um no outro para descobrir a verdade.

Misturando maravilhosamente a palavra escrita e uma arte sublime em algo extraordinário, o autor apresenta uma banda desenhada extremamente agradável, onde a bicromia escolhida para colorir a sua novela dá às personagens uma elegância e beleza, acentuando o que de melhor cada uma tem.


The New Deal, de Jonathan Case - Levoir e Público
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Ficha Técnica
The New Deal
Autor: Jonathan Case
Editora: Levoir
Páginas: 120, a cores
Encadernação: Capa dura
PVP: 10,90€

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Análise: KM/H - MPH - Acima do Limite

KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio


KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo

KM/H – MPH – Acima do Limite é um livro publicado pela portuguesa G. Floy e que nos traz Mark Millar, desta vez acompanhado por Duncan Fegredo nas ilustrações, numa das suas mais interessantes e mirabolantes ideias.

E é, de facto, esse o ponto de partida da minha análise à obra: a ideia. Ou a premissa, como queiram. E nessa vertente, esta obra consegue ser verdadeiramente incrível. Uma daquelas boas ideias que permitem o desenvolvimento de tantos subplots. Mas não nos adiantemos em demasia. 

Antes disso, diga-se que KM/H – MPH – Acima do Limite conta-nos a história de um grupo de jovens de Detroit que consegue, devido à ingestão de uma droga denominada MPH, deslocar-se a uma velocidade estonteante. Tal como se, de um momento para o outro, depois de tomarem o medicamento, passassem a correr como o Flash, da DC Comics. Tudo começa quando Roscoe, um jovem de uma baixa condição sócio-económica, que se encontra na cadeia devido a um negócio de tráfico de droga que correu mal, adquire acidentalmente uma misteriosa pílula milagrosa que lhe permite correr de uma forma tão incrível que, por exemplo, pode atravessar em corrida os Estados Unidos, de São Francisco a Nova Iorque, em meros 4 minutos! A velocidade é tanta que é como se o tempo parasse. Ou, por outras palavras, a velocidade de alguém que ingere o medicamento é muitíssimas vezes mais rápida do que todo o mundo circundante, o que dá a ideia que o tempo pára. Mas na verdade, o tempo apenas se desloca muito mais devagar.

KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
E esta é, de forma sucinta, a premissa que Mark Millar nos traz desta vez. E que premissa fenomenal! Acho até que todos nós, especialmente os leitores de banda desenhada, já imaginámos como seria ter algum super-poder que nos permitisse fazer algo de extraordinário. No meu caso, lembro-me até de, em miúdo, achar que se eu conseguisse ser super rápido, tal como o Flash da DC ou o Bip-bip ou o Speedy Gonzales dos Looney Tunes, poderia ser jogador de futebol. E, mesmo sem grande técnica para jogar o desporto rei, bastar-me-ia correr de uma forma humanamente impossível – como acontece em KM/H – MPH – e que, ao "parar o tempo", os jogadores da equipa adversária não conseguiriam acompanhar-me e eu marcaria dezenas e dezenas de golos num só jogo! E, mais coisa menos coisa, isso é o que se passa nesta obra de Mark Millar. Será que eu deveria ter registado a minha ideia original de forma a, décadas mais tarde, processar Millar por me roubar a ideia? O pelo menos reclamar para mim alguns royalities? Eheheh. Julgo que não. Além disso, na minha (in)consciência infantil, o meu super-poder não seria usado para bem da comunidade, mas antes para que eu me tornasse no jogador de futebol mais incrível do mundo. Está visto que, no meu caso, com grandes poderes não viria grande responsabilidade!

KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
Bem, mas devaneios à parte, e tal como eu dizia, a premissa que Millar nos apresenta desta vez, é verdadeiramente deliciosa. Muitas vezes, vários leitores afirmam que Millar não é bem um argumentista de banda desenhada mas um argumentista de cinema. Eu não creio que assim seja, necessariamente, mas a verdade é que, mais do que nunca, KM/H – MPH – Acima do Limite parece pensado e idealizado para ser um filme de cinema. Toda a forma como a obra está montada aponta nesse sentido. E a própria ideia de como apresentar imageticamente o tempo a ficar parado - que mesmo sendo um desafio ilustrativo desafiante é extremamente bem executada pelos autores – parece mostrar o caminho de como esta obra pode (ou deve) ser feita, caso chegue a ser um filme ou uma série de televisão.

Quando Roscoe toma a pílula MPH pela primeira vez e as personagens e as ações das mesmas ficam como que congeladas – à semelhança do que acontece, por exemplo, no filme Big Fish, de Tim Burton, quando o protagonista vê pela primeira vez a mulher da sua vida – estamos perante uma cena verdadeiramente memorável na banda desenhada. Daquelas cenas que tão depressa não esquecemos. Como se fosse uma million dollar idea, como dizem os ingleses. A premissa é tão boa e permite pensar em tantas formas diferentes de a utilizar, que o problema da obra às tantas acaba mesmo por ser esse: possivelmente não consegue agarrar, desenvolver e explorar todo o potencial dessa excelente ideia. E, no final, quando acabamos a leitura deste livro, e por muito divertido que o mesmo seja, ficamos com a sensação que haviam outros caminhos, tão ou mais interessantes, que a série poderia ter traçado com esta brilhante premissa.

KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
Ainda assim, também não é justo dizer que a história não se desenvolve de forma interessante. Quando Roscoe se vê livre da prisão e vai ter com os seus amigos, depressa partilha com eles o seu super-poder, isto é, os medicamentos que ainda tem na caixa de comprimidos que surripiou ao seu colega de prisão. E então, a história assume um cariz social, ao dar-nos um grupo de jovens que decide roubar muitos bancos (é tão rápido a fazê-lo que nem as câmaras de vigilância parecem captar as identidades deste grupo super-rápido) e distribuir os seus ganhos (ou roubos?) às classes desfavorecidas. Como se fosse uma reinterpretação de Robin dos Bosques, que roubava aos ricos para dar aos pobres. Entretanto o grupo de "super-heróis medicado " encontra fissuras e discórdias entre si, já que parte do mesmo começa a ter uma preocupação social com os inúmeros roubos que o grupo anda a fazer. Porque, mesmo tratando-se de um roubo às instituições financeiras que são responsáveis por tantas das crises monetárias e económicas que vivemos, não é, ainda assim, um roubo? E não há nisso algo que seja eticamente reprovável? Estas são pois as questões que o autor começa a levantar e que, consequentemente, acabam por causar conflito entre os jovens do grupo de Roscoe. 

KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
E, eventualmente, o uso do medicamento em dosagens maiores chega a levar as personagens para outra era no tempo, permitindo a viagem temporal. E é aqui, que Millar me perdeu. Lá estou eu a relembrar as célebres palavras: less is more. Não querendo aprofundar mais a história e para onde ela caminha, diria que Mark Millar acaba por cair no exagero e à medida que nos aproximamos para o final da obra, que tinha tudo para ser um dos seus melhores trabalhos, ficamos com a ideia de estar a ver um filme adolescente de sábado à tarde. E o final, mesmo sendo bem arquitectado pela inteligente utilização do tempo – que mais uma vez, haveria (ou haverá?) de funcionar muito bem em cinema – peca por ser muito over the top

Penso também que as personagens poderiam ter sido mais bem desenvolvidas, de forma a terem maior profundidade. Mas lá está, numa obra deste fôlego, e com um numero de páginas que nem é tão grande assim, é exatamente na premissa do super-poder que os autores se debruçam com mais cuidado. O que até é compreensível. Poderiam ser outras personagens quaisquer que teríamos um livro semelhante.

Em termos de arte ilustrativa, Duncan Fegredo faz um excelente trabalho, especialmente na concepção de inúmeras situações que demonstram de forma muito credível e inteligente, a velocidade impossível dos protagonistas. O traço de Fegredo é moderno, bastante estilizado, sabe usar bons planos de câmara e encaixa natural e perfeitamente na história que Millar pretende contar. 

KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
A edição da G. Floy está em par com aquilo que a editora costuma fazer. Capa dura, papel brilhante, adequado a este tipo de comic, e boa encadernação. A capa da obra é bastante mal conseguida para o meu gosto. Aquele conjunto de pernas coloridas a correr, com a imagem invertida para o lado esquerdo, parece-me mal escolhido e que não consegue apelar ao tipo de leitores que poderiam ser potenciais interessados nesta banda desenhada. Sei que a G. Floy se limitou a escolher uma capa utilizada noutras edições de outros países mas acho que haveriam capas – mesmo dentro de cada numero que compõe este volume – mais adequados, como o exemplo que coloco aqui ao lado.

No final, parece-me que Mark Millar andou perto de fazer uma das suas melhores obras. Não o conseguiu por não agarrar convenientemente a ideia. Mas mesmo assim, e não sendo o seu melhor trabalho, é uma leitura fácil e agradável num livro que surpreende pela sua fantástica premissa e que, só por isso, já merece ser lido.


NOTA FINAL (1/10): 
8.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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KM/H - MPH - Acima do Limite, de Mark Millar e Duncan Fegredo - G. Floy Studio
Ficha técnica
KM/H - MPH: Acima do Limite
Autores: Mark Millar e Duncan Fegredo
Editora: G. Floy
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2018

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Análise: Bird (Série Completa)

Análise: Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo - Vitamina BD


Análise: Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo - Vitamina BD
Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo

Bird é uma banda desenhada em três tomos – A Tatuagem, A Máscara e A Cara -, escrita e ilustrada, respetivamente, pelos argentinos Carlos Trillo e Juan Bobillo, e que em Portugal foi integralmente editada pela extinta editora Vitamina BD.

Ao contrário de outras séries desta editora que, infelizmente, foram descontinuadas com o fecho da mesma, deixando os leitores portugueses sem um final para as séries que estavam a ler, esta série Bird foi publicada integralmente. O que é uma boa notícia. E outra boa notícia é que esta é uma série que se encontra facilmente nos mercados de bd em Portugal, com um preço fantástico de 3€ por volume. E 9€ pela série toda, parece uma proposta muito recomendável.

Bird é um thriller carregado de traições, personagens malévolas, incesto, violações, prisão, assassinatos, erotismo, drogas, amor, revolta, farmacêuticas sem escrúpulos, nudez, vício, moda, BDSM e vingança. E ainda que tudo isto seja verdade, é uma banda desenhada que apresenta uma dicotomia interessante: é que, se por um lado, a história é negra e pesada, por outro lado, a arte que nos é dada por Bobillo, é limpa, com cores suaves e uma luz bem harmoniosa que parece atenuar o carácter maduro da série. E esta mistura, presumivelmente inesperada para muitos, até funciona muito bem, diga-se!

Análise: Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo - Vitamina BD
A série conta-nos a história de Jobeth, a única herdeira de uma grande fortuna que acaba encarcerada num hospital psiquiátrico, onde foi internada contra sua vontade, pelo seu irmão, de forma a que este pudesse reclamar a fortuna de Jobeth para si mesmo. Entretanto, a protagonista consegue fugir da instituição psiquiátrica, onde sofria violência física e sexual, enquanto que era fortemente medicada e, sabendo-se procurada pelo irmão, passa a assumir uma nova identidade. Agora, em Nova Iorque, Jobeth começa a utilizar o nome de Bird, muda o aspeto visual, rapa o cabelo, tatua o corpo todo e acaba por se tornar numa super-modelo, carregada de sucesso. Ninguém sabe do real passado de Bird e ninguém a consegue associar a Jobeth. 

O primeiro livro é o melhor dos três e abre muito bem a história, apresentando-nos a narrativa de trás para a frente, para percebermos quais foram os eventos que levaram à primeira página, do primeiro livro. Bem conseguido, bem ritmado e com uma história que, mesmo podendo ser algo rebuscada por vezes, consegue ter uma boa unidade e ser original e cativante. O leitor vê-se imbuindo na história e procura a todo o custo saber o que se terá passado.

Análise: Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo - Vitamina BD
No segundo volume, há uma personagem importante que morre inesperadamente e aparecem mais duas ou três novas personagens que permitem aos autores mergulhar bem na trama. É também neste volume que começa a vingança da protagonista face àqueles que a atormentaram no passado. Essa sede de vingança de Jobeth continua no terceiro e último volume. A protagonista é perspicaz e tem um plano concreto para encetar a sua vingança, mas aqueles que ela persegue também a perseguem a ela, o que causa um "jogo do rato e do gato" interessante. A história mantém-se apelativa nos tomos 2 e 3, mas não tanto como no primeiro volume. Cai um pouco de qualidade – ou de imprevisibilidade narrativa - embora a vontade do leitor em conhecer a história até ao fim se mantenha inalterada. O final da série pareceu-me um pouco apressado também, de forma a caber nas 46 páginas do volume. Julgo que o último volume deveria ter tido mais páginas para que o final pudesse ser mais bem explorado pelos autores.

Há depois uma componente metafísica com o surgimento de um “espírito iluminado” que vai aparecendo a Bird. Se uma história tão mundana, do mundo real, aparentemente não precisava da introdução deste espírito do fogo, a verdade é que Trillo soube introduzir esta vertente mais intangível da história, de uma forma suave, levando o leitor a concluir que este tal espírito até pode muito bem ser a consciência da protagonista que, relembro, está viciada em medicamentos e, portanto, pode ter algumas visões, a tentarem comunicar-lhe o que fazer. 

Análise: Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo - Vitamina BD
A nudez é uma constante neste livro. Existem algumas cenas de sexo, mas não diria que sejam cenas muito gráficas. Dão apenas uma conotação erótica à história. Não me dei ao trabalho de contar mas é provável que Jobeth, ou Bird, apareça nestes livros tantas vezes vestida como aparece em nua. Nada disso é de criticar pois Bobillo desenha de forma muito graciosa o corpo feminino. Não se trata de um estilo de ilustração muito provocador, pois os corpos femininos que aparecem são todos eles muito magros e com formas muito retilíneas – excetuando, claro, a personagem de Renata Lennox, que tem formas grandes e voluptuosas, que fazem lembrar as mulheres desenhadas pelo autor português Luís Louro. Contudo, e tendo em conta que a história orbita à volta do universo da moda - onde as mulheres são descaradamente magras e com poucas formas - parece-me que foi uma decisão lógica e com sentido, por parte dos autores.

A arte de Bobillo é talvez o que mais salta à vista nesta série. É de extrema qualidade, sendo pintada à mão, e tem uma vertente bastante artística, com as aguarelas a darem uma componente clássica e extremamente madura à obra. É verdade que há algumas vinhetas onde o trabalho parece ter sido feito com menos detalhe do que noutras, que são muito impressionantes pelo pormenor dos desenhos e pela destreza técnica do autor na aplicação da cor. No último volume há uma certa mudança na arte do autor que começa a apresentar um traço mais esbatido e muitas vezes invisível, onde as aguarelas ainda assumem maior destaque do que o traço desenhado. Embora visualmente (também) seja interessante, preferi a opção dos dois primeiros volumes e considero que a mudança, não brusca mas facilmente visível no terceiro volume, tira alguma da fluidez e unidade ilustrativa à obra. Mas, seja como for, no geral, a arte do Bobillo é de alto nível e talvez o ponto mais alto nesta obra, não desfazendo o argumento que também é interessante.

Análise: Bird, de Carlos Trillo e Juan Bobillo - Vitamina BD
Há uma coisa negativa que, ainda assim, tenho que referir quando olho para a edição destes livros. O papel tem qualidade, a edição é em capa dura e a impressão é de qualidade. Isso está tudo bem. No entanto, olhando para o design do produto, para a forma como o “objeto livro” foi preparado, tenho que dizer que isto é um claro exemplo de "como não fazer um livro". Também é certo que, quando o primeiro álbum desta série foi lançado, estávamos em 2001 e isso talvez justifique que, nesses tempos, o design da capa de um livro de bd não fosse tão relevante para autores, editores e público. Mesmo assim, sempre existiram capas bem feitas no passado e portanto, chega-me a surpreender como as capas destes livros possam ser tão más. Desde a fonte escolhida para o nome dos autores, da série e dos volumes e a forma como esses elementos estão colocados na capa, tudo está feito com uma noção de estética miserável. O primeiro tomo é "mauzinho", o segundo tomo apresenta uma capa que considero interessante – talvez pela boa ilustração de capa do autor – e o terceiro tomo dá-nos uma das piores capas de um livro de banda desenhada que já vi. A ilustração está rabiscada, pouco percetível, as cores estão mal escolhidas. Parece-me francamente má e acho incompreensível que um ilustrador que tem tantos desenhos bonitos dentro destes livros, tenha optado por criar uma ilustração para a capa do terceiro tomo tão desinspirada. Quando numa loja segurava estes livros nas mãos, lembro-me de achar: “caramba, que capas tão más.” Felizmente, folheei o livro e aí pude ver a arte do autor, que me pareceu interessante, ao contrário das péssimas capas, e que lá me convenceu a adquirir a obra. Não me canso de dizer: as capas também vendem livros de bd. Se a culpa disto é maioritariamente dos autores, acredito que as editoras portuguesas, sempre que possam, devem tentar negociar/combinar com os autores e/ou com as editoras detentoras dos direitos de publicação, quais as formas de tornarem os “objetos livros” mais bonitos e apelativos. Assim, aqui a minha crítica não é só para estes livros - que já foram lançados quase há 20 anos e, portanto, merecem que eu lhes dê um certo desconto - mas sim para toda a publicação de banda desenhada despreocupada com a apresentação da melhor capa possível.

Em conclusão, esta série Bird, pode não ser uma banda desenhada perfeita mas é uma proposta bastante interessante por ser um thriller com algumas boas ideias e por ainda se encontrar nas livrarias e mercados de bd de Portugal, com um preço tão simpático. 


NOTA FINAL (1/10): 
8.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Bird 1 – A Tatuagem
Fichas Técnicas
Bird 1 – A Tatuagem
Autores: Carlos Trillo e Juan Bobillo
Editora: Vitamina BD
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Junho de 2001

Bird 2 – A Máscara
Bird 2 – A Máscara
Autores: Carlos Trillo e Juan Bobillo
Editora: Vitamina BD
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2002

Bird 3 – A Cara
Bird 3 – A Cara
Autores: Carlos Trillo e Juan Bobillo
Editora: Vitamina BD
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Abril de 2005