sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Análise: Aqui

Aqui, de Richard McGuire - Cavalo de Ferro - Penguin Random House

Aqui, de Richard McGuire - Cavalo de Ferro - Penguin Random House
Aqui, de Richard McGuire

Foi ainda no final do ano 2024 que o Grupo Penguin, desta vez através da sua chancela Cavalo de Ferro, publicou a banda desenhada multipremiada Aqui, de Richard McGuire, aproveitando o facto de ter chegado aos cinemas a adaptação da obra pelas mãos do realizador Robert Zemeckis e com Tom Hanks como protagonista. Ora, mesmo que tenha sido esse o engodo que fez a editora apostar no lançamento da obra original, considero positivo que a Cavalo de Ferro tenha apostado nesta obra. Quem ganha somos nós, fãs de banda desenhada.

O livro Aqui, de Richard McGuire, é uma obra notável que desafia as convenções narrativas tradicionais, não só da banda desenhada, como também de qualquer meio para contar uma história - como, aliás, também fica bem patente no filme de Zemeckis. Publicado originalmente em 2014, Aqui explora a passagem do tempo de maneira única, situando toda a narrativa num único ponto geográfico: a sala de uma casa. E sempre através do mesmo plano, como se houvesse uma câmara a filmar daquele mesmo ângulo desde o tempo dos indígenas - em que ainda nem sequer tinha ali sido erigida uma casa - até ao tempo atual. Para tal, o autor utiliza uma montagem temporal que vai saltando entre milhares de anos no passado e no futuro.

Aqui, de Richard McGuire - Cavalo de Ferro - Penguin Random House
Como consequência, a estrutura do livro é inovadora, utilizando uma abordagem onde os diálogos são parcos e onde a narrativa não tem nada de convencional, nem tampouco de linear. Cada página contém fragmentos de diferentes momentos no tempo sobrepostos, através de vinhetas, que representam tempos diferentes. Exemplificando: encontro-me com o livro na secretária onde escrevo este texto e abri-o aleatoriamente. O que obtive foi o mesmo plano da sala constante nas mais de 300 páginas do livro, mas com duas cenas/vinhetas. Uma de 1989 em que numa reunião familiar um dos membros cai da poltrona e outra de 1960 em que uma mulher pergunta: "perdeu alguma coisa?".

Esta premissa livre da obra oferece-nos em cada duas páginas um conjunto de camadas temporais que  coexistem, permitindo ao leitor observar simultaneamente um momento no ano de 1600, por exemplo, uma cena doméstica no século XX e vislumbres de um futuro distante. Essa multiplicidade de tempos sobrepostos reforça a ideia de que o espaço é testemunha de incontáveis histórias e eventos, muitas vezes desconectados, mas interligados pela geografia comum. 

Se pensarmos bem, que histórias poderiam contar as nossas casas? Se são casas antigas, certamente já lá tiveram muitas outras histórias. Mas mesmo sendo casas novas, que estreámos quando para lá fomos viver, que histórias testemunhou aquele preciso lugar onde foram construídas as fundações da nossa casa? O pensamento é curioso e dá que pensar sendo nele que assenta toda a reflexão da obra. É claro que é um livro que, por isso mesmo, não deixa ninguém indiferente. E se o podemos amar, também o podemos detestar, já que o próprio livro se finda nas barreiras que ele mesmo se auto impõe. Se as milhentas subnarrativas que nos são dadas podem parecer aleatórias e, em muitos casos, desconexas entre si, ou se a leitura se torna um pouco repetitiva, isso são consequências diretas - e claramente assumidas - do autor ao apostar-se fazer um livro tão original. Mas, enfim, goste-se ou não, é inegável a maneira inteligente como a obra rompe padrões e estruturas, conseguindo ser singular.

Aqui, de Richard McGuire - Cavalo de Ferro - Penguin Random House
Outro aspecto fascinante de Aqui é como a obra aborda a questão da memória e da conexão humana com o tempo e o espaço. Ao apresentar momentos do quotidiano lado a lado com eventos históricos ou naturais, McGuire questiona a importância relativa de cada um. Uma conversa trivial entre familiares pode compartilhar a mesma página com a paisagem devastada de um futuro pós-apocalíptico, desafiando o leitor a reconsiderar o significado e o impacto de eventos aparentemente pequenos. Esse contraste constante reforça uma sensação de humildade diante da vastidão do tempo.

A ausência de personagens centrais - ao contrário da recente adaptação para cinema da obra em que a história de Tom Hanks é a história principal de Aqui - é outra escolha ousada e significativa de Richard McGuire. Em vez de se focar numa narrativa baseada em indivíduos, o autor torna o espaço o verdadeiro protagonista. É como se a sala – e, por extensão, o mundo – fosse um arquivo que guarda as marcas de cada momento que testemunha. Essa abordagem universal torna o livro acessível a diferentes interpretações, permitindo que cada leitor projete as suas próprias experiências e reflexões sobre o fluxo do tempo.

Aqui, de Richard McGuire - Cavalo de Ferro - Penguin Random House
Mesmo assim, a premissa é tão fértil que não consigo deixar de achar que poderia ter sido mais bem aproveitada e que as pontas soltas narrativas deixadas pelo autor poderiam ter sido mais bem atadas entre si. Mas como o tempo, que nem sempre ata os nós dos seus capítulos, há uma sensação de efemeridade. De inconstância.

Visualmente, McGuire utiliza um desenho limpo, com quadros que variam de tamanhos e formas, criando uma sensação de fluidez e desordem controlada. As ilustrações são minimalistas, mas bastante poéticas, transmitindo emoções e ideias complexas sem a necessidade de textos extensos. A paleta de cores também desempenha um papel fundamental, ajudando a distinguir os diferentes períodos temporais e a evocar sensações específicas, como a nostalgia, o progresso ou a decadência. Esta utilização imagética não captura apenas a atenção do leitor, mas também exige uma leitura ativa e contemplativa. É possível que fiquemos perdidos ao longo da leitura, muito embora cada vinheta tenha uma menção ao ano que representa. 

A edição da Cavalo de Ferro é bem conseguida, com o livro a apresentar capa dura baça, bom papel e bom trabalho ao nível de impressão e encadernação. Mais do que isso, é bom ver que a Penguin - embora de uma forma  demasiado(?) parcelada nas suas variadas chancelas, o que acaba por gerar uma certa confusão nos leitores - tem vindo a engordar o seu conjunto de bandas desenhadas de qualidade superior. Aqui é apenas mais uma dessas obras.

Em resumo, Aqui é uma obra que transcende rótulos e desafia o leitor a expandir a sua percepção de tempo, espaço e narrativa. A sua abordagem única, tanto visual quanto conceptual, faz do livro uma obra que continua a inspirar debates sobre os limites da literatura e da arte sequencial. McGuire oferece mais do que uma leitura; proporciona uma experiência sensorial sobre a efemeridade da vida e a permanência do espaço. É um livro que não apenas lemos, mas também sentimos e vivemos em cada página.


NOTA FINAL (1/10):
8.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Aqui, de Richard McGuire - Cavalo de Ferro - Penguin Random House

Ficha técnica
Aqui
Autor: Richard McGuire
Editora: Cavalo de Ferro (Penguin Random House)
Páginas: 304, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Novembro de 2024

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