De todos os livros que a mais recente Coleção de Novelas Gráficas da editora Levoir e do jornal Público apresentaram, este Tati e o Filme Sem Fim, dos autores franceses Arnaud le Gouëfflec e Olivier Supiot, foi uma das obras que, logo à partida, mais interesse fez florescer em mim. Por vários motivos: por eu não conhecer a obra - nunca tinha ouvido falar da mesma, sequer; por eu ser um apaixonado pelo cinema e por Jacques Tati; e pela capa do livro que, carregada de poesia e muito bem conseguida em termos visuais, me agarrou desde o primeiro instante que a observei.
E depois de lido este livro que tenta ser uma biografia da vida e obra do célebre cineasta francês Jacques Tati, devo dizer que considero que esta foi uma boa aposta por parte da editora Levoir.
E começo por aí. Tenho lido e ouvido algumas críticas à qualidade global dos títulos daquela que foi a 8ª Coleção de Novelas Gráficas da editora. Todas as críticas têm a sua razão de ser e acho que, quando bem fundamentadas, são mais que bem-vindas. E, claro, também é natural que se prefira determinados títulos em detrimento de outros. Tudo certo. Mesmo assim, há algo que me parece bastante claro: é que muita gente ainda não percebeu a real função e potencial da Coleção de Novelas Gráficas da Levoir. Acham, imagino, que o objetivo desta coleção seja o de nos trazer a nós, leitores consumados de BD, obras de fama e celebração mundial. Mas não é. O objetivo, isso sim, é levar BD a pessoas que normalmente não leem banda desenhada. Se com a publicação de banda desenhada, a coleção também arrasta leitores consumados de BD, ótimo. Mas não é a eles que esta coleção se dirige. Leiam a entrevista de Silvia Reig, editora da Levoir, no meu livro Muitos Anos a Virar Páginas se ainda vos restam dúvidas quanto a isto.
"Ah e tal... mas nas primeiras coleções de Novelas Gráficas da Levoir eram lançadas obras celebradas mundialmente." Certo. Mas isso aconteceu no início da coleção, quando era necessário criar um branding para a mesma. Esta é a lição número 1 de Marketing na construção de um determinado produto. Em primeiro lugar, há que chegar às pessoas, fazendo com as mesmas se interessem pelo nosso produto. Implica, claro está, um esforço adicional por quem lança o produto. Em segundo lugar, há que manter o público conquistado e tentar aumentá-lo, se possível. Para isso, é necessário que o produto/serviço mantenha qualidade. E, no caso da Coleção de Novelas Gráficas, é exatamente isso que tem sido feito. É verdade que, com o passar do tempo, a editora começou a lançar alguns títulos menos conhecidos por cá, mas a sua tentativa sempre foi a de tentar trazer obras com qualidade, fossem elas mais ou menos conhecidas. Coisa que é mais que legítima! E acho que muita gente se esquece disso. Desculpem o desabafo, mas apeteceu-me fazê-lo.
Voltando a Tati e o Filme Sem Fim, esta é, pois, uma obra que encaixa perfeitamente no espírito desta coleção: tem qualidade, não é especialmente conhecida e trata um tema que tem o potencial de chegar a mais gente que, de outra forma, poderia não se interessar por um livro de banda desenhada. Neste caso, falo de amantes de cultura e do cinema em particular.
A esse propósito, relembro que o lançamento deste livro vem sublinhar uma certa tendência recente nacional (e não só) em lançar-se banda desenhada sobre figuras incontornáveis do cinema, já que, no ano passado, a Ala dos Livros lançou As Guerras de Lucas e a ASA lançou Quentin Por Tarantino, que faz parte de uma trilogia do autor Amazing Améziane dedicada a célebres realizadores de cinema, sendo os outros dois livros dedicados a Francis Ford Coppola e a Martin Scorsese - e que se espera que a ASA também lance num futuro próximo.
Jacques Tati nasceu no início do século XX, em Le Pecq, França, e transformou-se num icónico cineasta, ator e comediante francês, conhecido pelo seu estilo único de humor visual e minimalismo narrativo. Ganhou fama internacional com os seus filmes que satirizam a modernidade e o comportamento humano, muitas vezes centrados na desajeitada e encantadora personagem Monsieur Hulot, interpretada pelo próprio Tati. Obras como "As Férias do Sr. Hulot" (1953), "Meu Tio" (1958), que lhe rendeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ou "Playtime" (1967) são marcos do cinema e são reconhecidos pela sua estética inovadora, coreografia precisa e críticas bem-humoradas à sociedade moderna.
E é a vida de Tati, desde a sua infância, passando pelos principais momentos da sua carreira, que o argumentista Arnaud le Gouëfflec procura passar para o enredo do livro, indo aos primórdios da vida do cineasta quando, na sua juventude, sonhava ser palhaço. Jacques Tati começou por trabalhar enquanto moldureiro, tendo a sua própria visão do cinema sido influenciada por esta atividade profissional. Afinal de contas, a maneira como filmamos pode ser semelhante à maneira como emolduramos uma imagem. Tal como esta ponte feita entre um facto na carreira do autor e a justificação adjacente para esse mesmo facto, o livro é pródigo em explicar-nos o porquê de certas características na postura e obra original de Tati. E, nesse ponto, Tati e o Filme Sem Fim acaba por ser uma obra bastante bem conseguida e com valor acrescentado.
Este "poeta do quotidiano", que captava tão bem as situações mundanas da vida humana, acabou por trilhar uma obra cinematográfica de especial relevância. Especialmente se tivermos em conta que apenas fez seis filmes que foram suficientes para que a crítica e público mundial lhe atribuíssem o título de Mestre do cinema.
A maneira como a história de Tati nos é contada por Arnaud le Gouëfflec tem méritos e deméritos. É muito interessante que o autor crie uma ambiente narrativo que nos faz viajar entre cenas, como se estivéssemos dentro de um filme de Tati. Por outro lado, isso também acaba por deixar o fio condutor narrativo mais frágil e desconexo entre si. O que faz com que, por vezes, se torne numa leitura algo maçuda, carregada de informação pertinente, sim, mas que nos é dada em tom quase académico. Acredito que se a narração - e a ponte entre a mesma e os diálogos - tivesse sido melhor limada, o livro seria mais marcante ainda.
Já as ilustrações de Olivier Supiot, são bastante belas e conseguem, mesmo através de um traço simples, quase infantil, embora elegante, colocar-nos no universo de Tati, refletindo a atmosfera dos cenários que o cineasta usava nos seus próprios filmes. São também várias as opções, técnicas e abordagens visuais que Supiot nos oferece, o que funciona bem para melhor demarcar os vários filmes em que o leitor deste livro é convidado a "entrar". A maneira como as cores são aplicadas também confere uma aura artística e poética ao todo, por vezes a fazer lembrar a pintura. Noutros casos, há vinhetas em que o desenho parece mais esbatido e apressado. Não obstante, outros exemplos há onde o leitor é convidado pelo autor a perder-se na observação de determinadas ilustrações.
A edição da Levoir é em capa dura baça, com bom papel baço no miolo do livro e um bom trabalho em termos de encadernação e impressão. No final, é oferecida ao leitor uma filmografia de Tati.
Em suma, Tati e o Filme Sem Fim é uma escolha interessante e bem-vinda da Levoir para esta sua mais recente Coleção de Novelas Gráficas, sendo um livro que consegue transmitir a sensibilidade e a visão artística de Jacques Tati, proporcionando ao leitor uma experiência imersiva no seu mundo criativo, que certamente encantará os admiradores do cineasta e despertará a curiosidade de novos públicos para a sua obra.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Tati e o Filme Sem Fim
Autores: Arnaud le Gouëfflec e Olivier Supiot
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 198 mm x 266 mm
Lançamento: Outubro de 2024
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