terça-feira, 7 de janeiro de 2025

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024

2024 foi um ano de muita banda desenhada lançada em Portugal! 

O excelente artigo publicado recentemente por Daniel Maia confirma, aliás, aquilo que tenho vindo a dizer há muito tempo: vivemos numa era dourada da banda desenhada em Portugal! Sei que estas coisas são sempre cíclicas, de certa forma, e que também já tivemos, no passado mais e menos recente, boas épocas de edição de BD que, infelizmente, acabaram por dar lugar a um certo marasmo editorial após iniciais tempos promissores. 

Isso é verdade, mas uma coisa que também é inegável, é que este "período dourado" já se arrasta há alguns anos. E as coisas até vão melhorando de ano para ano. São cada vez mais os autores portugueses a publicarem os seus trabalhos em belas edições, são cada vez mais as editoras a lançarem obras estrangeiras de qualidade superior (também em belas edições), são cada vez mais os eventos dedicados à banda desenhada que pululam por esse país fora, são cada vez mais os livros sobre banda desenhada a serem publicados... Não esquecendo que já há em Portugal, segundo a Constituição Portuguesa, um dia dedicado à banda desenhada, enfim... estamos mesmo a viver o melhor momento de sempre!

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024

2024 até pode ter sido o ano mais forte de todos, mas apenas por ter tido em si o natural e orgânico desenvolvimento das sementes plantadas nos últimos cinco ou seis anos, parece-me.

Trago-vos, portanto, mais abaixo, uma breve análise ao ano de 2024, centrando-me nas editoras portuguesas e no trabalho que as mesmas nos apresentaram ao longo do último ano.


Começo com as duas maiores editoras em termos de dimensão: a ASA e a Iguana (ou Grupo Penguin Random House).

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
Parece-me ser justo afirmar que a ASA, sob o leme do editor Luís Saraiva, está finalmente a consubstanciar a sua relevância editorial em termos de banda desenhada. É verdade que já havia sintomas positivos nos últimos dois/três anos, mas foi o ano de 2024 que, quanto a mim, comprovou a seriedade da aposta em BD por parte da ASA/LeYa. Em 2024, a editora terminou as brilhantes e obrigatórias séries Spirou - A Esperança Nunca Morre e O Árabe do Futuro (sob a chancela da Teorema), enquanto que também apostou em obras de qualidade superior como Tananarive, Quentin por Tarantino, Senhor Apothéoz, a série As 5 Terras ou as duas belas obras da holandesa Aimée de Jongh Dias de Areia e O Deus das Moscas. Em termos de séries lançadas com o jornal público, a ASA terminou a excelente O Assassino (ainda começada durante o ano 2023) e editou o clássico Tanguy e Laverdure. A par destas boas obras, a editora resgatou ainda Gaston Lagaffe, Murena e As Águias de Roma, reeditou a Trilogia Filipe Seems e manteve as suas apostas mais clássicas (e expectáveis) em Lucky Luke, Blake e Mortimer e Michel Vaillant. Em termos de obras destinadas ao público apreciador de mangá, a ASA também tentou consolidar a sua aposta neste subgénero, com obras como Red Flower, Radiant, Horion e Arena. Neste cômputo, com uma qualidade mais questionável, é certo.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
A Penguin Random House, através das suas várias chancelas, consolidou a sua aposta na banda desenhada. Ainda me parece, em comparação, uma aposta mais ligeira do que a da editora ASA, mas não deixa de ser verdade que o grupo Penguin teve os seus méritos em 2024. Especialmente pela aposta em autores nacionais como Joana Mosi (A Educação Física), Jorge Mateus e Paulo Caetano (O Segredo dos Mártires), Filipa Beleza (Amor) ou Jorge Pinto (Tempo - Em Busca da Felicidade Perdida). Em termos de obras internacionais, o grupo editorial lançou uma das melhores BDs do seu catálogo que dá pelo nome de Erva, continuou a publicação de Sapiens e lançou os interessantes Aqui, A Bibliotecária de Auschwitz e Nas Suas Mãos. Para além disso, o grupo editorial criou uma nova chancela - a Distrito Manga - completamente dedicada à publicação de mangás, com obras como Ataque dos Titãs, Edenzero e Tokyo Revengers. A par destas apostas, a editora também publicou três livros dedicados a Mafalda, de Quino, sendo que o volume integral com mais de 600 páginas merece claro destaque.

Se a contribuição destas duas editoras grandes foi bastante relevante para o impulso editorial de banda desenhada em Portugal durante 2024, não poderemos descurar o trabalho feito por editoras de menor dimensão, mas que, em termos de qualidade de obras, impressiona e não fica nada atrás das obras supramencionadas.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
A Ala dos Livros parece ter sedimentado a sua posição como uma das mais relevantes editoras de banda desenhada em Portugal. Os seus anteriores anos já tinham sido impressionantes em termos de número e qualidade de obras, mas 2024 foi especialmente feliz para a editora portuguesa. Sou-vos sincero: não li um único livro da editora em 2024 que considerasse, sequer, "fraquito", quanto mais "mau". Todos os livros lançados me impressionaram pela positiva. Obras como A Estrada, um dos melhores livros do ano, O Abismo do EsquecimentoAl CaponeAs Guerras de Lucas, AVA - 48 Horas na Vida de Ava GardnerA Adopção – Ciclo II, O Combate de Henry FlemingO Mundo Sem Fim, Presas Fáceis - Abutres, Pocahontas ou Harlem, que fechou a série de Mikael dedicada à cidade Nova Iorque, são demonstrativas da qualidade editorial da Ala dos Livros. E não nos ficamos por aí. A aposta na fabulosa série Shi, de Zidrou e Homs, numa edição estrondosa, foi outra das apostas bem conseguidas da editora que continuou a publicar banda desenhada de origem nacional como o novo O Corvo - O Despertar dos Esquecidos (Luís Louro), o novo volume de CO.BR.A (Marco Calhorda e Zoran Jovicic) e a reedição de 7 Senhoras, de Margarida Madeira. De resto, a editora continuou com as séries em curso, como UndertakerO Mercenário e com a série Obras de Pratt, da qual editou Jesuit Joe e outras histórias e Verão Índio, esta última resultante da parceria de Pratt com Manara. Só lamentei que a editora não tenha lançado em 2024 nenhum volume da sua reedição especial de Blacksad, mas também compreendo que dada a dimensão da editora e o número de obras publicadas, talvez não tenha dado para lançar tudo.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
Também a editora Arte de Autor voltou a dar-nos um ano com belas obras de banda desenhada, se bem que com uma aposta mais virada para autores e obras mais clássicas do que em anos anteriores. Destacam-se o maravilhoso e, por cá, inédito volume duplo de Sambre VII e VIII, a reedição integral de Fábulas das Terras Perdidas - Ciclo 1 - Sioban, a edição em dois volumes de Jonas Fink, Jon Rohner, A Corrida do Século, Brigantus #1 - Banido, a reedição integral de O Vento nos Salgueiros e a aposta em dois belos livros:  A Universidade das Cabras e O Lobo. A editora lançou ainda dois volumes de Corto Maltese: o primeiro, A Rainha da Babilóniade Bastien Vivès e de Martin Quenehen, é uma adaptação da mítica personagem para a contemporaneidade, enquanto que o segundo livro de Corto lançado pela Arte de Autor, intitulado A Linha da Vida (Juan Díaz Canales e Rúben Pellejero) adopta um espírito mais em linha com os álbuns clássicos de Hugo Pratt. Fiquei com pena que as séries O Castelo dos Animais e 1629 não tivessem tido continuidade em 2024, mas isso deveu-se aos próprios autores e não à editora portuguesa. A segunda parte de 1629 até chegou a ser lançada em França, mas já muito em cima do Amadora BD, pelo que a Arte de Autor optou por deixar este livro para 2025. Quanto ao quarto e último volume de O Castelo dos Animais, o mesmo ainda não saiu.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
Da parceria editorial da Arte de Autor com a A Seita saíram ainda três belos livros: Na Cabeça de Sherlock Holmes, o melhor livro do ano quanto a mim, o belo e poético Naturezas Mortas e o impressionantemente grandioso O Inferno de Dante.

Já que falo n' A Seita, devo dizer que, uma vez mais, a cooperativa editorial entrou de forma pálida no ano, mas terminou-o com um impressionante número de lançamentos no Amadora BD. Esta é uma editora que me lembra a célebre frase de Cristiano Ronaldo em relação ao ketchup. Algumas obras até demoram a sair... mas quando saem... saem todas de uma vez!  Em termos de banda desenhada nacional, a editora lançou Sol (Diogo Carvalho), A Norte de Sul Nenhum (Fernando Cabrita e João Mascarenhas), Boarding Pass (Ricardo Santo), O Arauto (Ruben Mocho), Macho-Alfa #3 (Filipe Duarte Pina e Osvaldo Medina), Muzinga (André Diniz) e, em parceria com a Kingpin Books, Fojo (Osvaldo Medina). Reeditou ainda o livro A Revolução Interior - À Procura do 25 de Abril, de João Ramalho-Santos, João Miguel Lameiras e José Carlos Fernandes. 

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024

Quanto a banda desenhada estrangeira, a editora voltou aos universos de Thorgal, com Thorgal Saga - Vol. 1 - Adeus Aaricia (Robin Recht); de Lucky Luke, com Os Indomados (Blutch); de Tex, com Minstrel Show (Mauro Boselli e Marco Ghion); e de Dylan Dog, com Picada Mortal (Alberto Ostini e Francesco Ripoli). 

A editora lançou ainda dois livros ilustrados de origem nacional: Fernando Pessoa - O Menino Que Sonhava (André Morgado e Tainan Rocha) e O Corvinho - O Menino Que Queria Ser Herói, passando a editora portuguesa a (também) reunir no seu catálogo a obra de Luís Louro. 

Em termos de mangá, a editora trouxe-nos algumas propostas, todas elas bastante interessantes: Made in Abyss, Butterfly Beast - Série II, Gannibal, Deadpool Samurai e O Meu Marido Dorme no Congelador.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
A editora Devir também teve um ano bastante forte. Dando continuação às séries de mangá que tinha em andamento, e que são demasiadamente numerosas para estar aqui a referir, teve novas apostas em séries como Dragon Ball, Boa Noite, Punpun, Crianças do Mar ou Frieren. Lançou ainda dois mangás autoconclusivos que foram Look Back (Tatsuki Fujimoto) e o fabuloso Bairro Distante, de Jiro Taniguchi. Terminou as séries Tomie (Junki Ito) e Sunny (Matsumoto). Em termos de comics, a editora voltou ao lançamento das séries Walking Dead Lazarus e, na banda desenhada europeia, lançou o muito belo Maltempo (Alfred) e o Crónicas de Jerusalém (Guy Delisle). Ainda durante 2024, a editora anunciou planos audazes para 2025: que passa a ter as obras DC no seu catálogo, estando prometidos os lançamentos de Batman - Três Jokers, Batman by Grant Morrison, The Nice House on The Lake, Bodies ou a aposta no franco-belga com obras como Trilogia Nikopol, de Enki Bilal, Alack Sinner - Bófia ou Detetive, de Muñoz e Zentner, O Silêncio de Malka, de Pellejero & Zentner, Silêncio, de Comès, Le Cahier Bleu, de André Juillard, Le Goût du Chlore, de Bastian Vivès, e Kiki de Montparnasse, de Catel & Bocquet.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
A Levoir teve um belo ano em termos de lançamentos, também. E uma das grandes causas disso foi a aposta na coleção Clássicos da Literatura Portuguesa em BD que reuniu autores nacionais na adaptação para banda desenhada de algumas das obras mais marcantes da nossa literatura. De um modo geral, estas adaptações têm apresentado boa qualidade e, além disso, a coleção tem sido excelente para levar a banda desenhada nacional a um maior número de leitores. Considero, portanto, de extrema importância que esta coleção exista. A par da mesma, também a coleção de Novelas Gráficas voltou com mais um conjunto de belas obras, das quais se destacam Táxi Amarelo (Chabouté), Chumbo (Lehmann), O Desaparecimento de Josef Mengele (Matz e Jörg Mailliet) ou O Homem que Corrompeu Hadleyburg (Wander Antunes). Fora destas coleções, a editora lançou Kobane Calling, um dos melhores livros do ano, e outras obras interessantes, em que se assinalam, Dissident Club - Crónica de Um Jornalista Paquistanês Exilado em França, Dorian Gray, A Árvore DespidaTorpedo 1972 - O Que Isso Dói! e Os Pássaros de Papel. Destaque ainda para a reedição da série As Extraordinárias Aventuras de Adèle Blanc-Sec, de Jacques Tardi.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
A Gradiva talvez tenha perdido um pouco o fulgor de anos recentes no que ao lançamento de banda desenhada diz respeito, mas, mesmo assim, teve um ano sólido em números de BDs editadas. A sua grande aposta e, de longe, a sua melhor BD do ano, foi A Vida Secreta dos Escritores, de Miles Hyman. Também O Fotógrafo de Mauthausen, de Salva Rubio e Pedro J. Colombo, mesmo não sendo perfeito, apresentou boas ideias. De resto, a editora lançou Lepanto, mais um volume da sua série dedicada às Grandes Batalhas Navais e os três volumes de Ilíada, na sua série A Sabedoria dos Mitos. Nota ainda, positiva, para a aposta mais inesperada em Os Mistérios, um curioso livro ilustrado da autoria de Bill Watterson (autor de Calvin & Hobbes) e John Kascht, e para a conclusão (à data) da série Tango, de Matz e Phillipe Xavier.

Com menor número de lançamentos em banda desenhada estiveram as editoras Escorpião Azul, Polvo, Relógio D'Água, Kingpin Books e G. Floy Studio.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024

A Escorpião Azul parece-me estar, cada vez mais, a encarrilar bem no seu próprio modus operandi. Baixou no número de edições, sim, mas parece-me estar a trabalhar cada um dos seus livros de uma forma melhor e mais cuidada. 

E todos eles foram livros interessantes que passo a citar: O Atendimento Geral (Paulo J. Mendes), Em Redes (Xico Santos e Audrey Caillat), E Depois do Abril (André Mateus e Filipe Duarte) e Paciência é o Meu Nome do Meio, de Inês Fetchónaz. A editora apenas lançou uma obra de autor estrangeiro, A Língua do Diabo (Andrea Ferraris), mas foi um belo livro. Lançou ainda um livro sobre banda desenhada da minha autoria, que dá pelo nome de Muitos Anos a Virar Páginas.

A Relógio D'Água, que é uma editora de cariz generalista, para além das adaptações para banda desenhada das obras Admirável Mundo Novo (Fred Fordham) e Duna II (Brian Herbert, Kevin J. Anderson, Raúl Allén e Patricia Martín), lançou a melhor banda desenhada do seu catálogo - até agora, pelo menos - denominada Patos - Dois Anos nas Areias Petrolíferas, de Kate Beaton.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024

A Kingpin Books apenas lançou três livros em 2024, mas todos eles dignos de nota. Quer Fojo, de Osvaldo Medina, já mencionado, quer O Homem Que Sonhou o Impossível (Mário Freitas e Lucas Pereira) ou O Punhal (Nuno Duarte, João Lemos, Osvaldo Medina, Rita Alfaiate e André Caetano) são bons livros que merecem ser (re)conhecidos.

A Polvo apenas costuma lançar os seus livros no Amadora BD, com salvas exceções. E a única exceção de 2024 foi Espiga, de Bernardo Majer, que a editora lançou no Festival de Beja. Além desse bom livro do autor português, a editora apresentou-nos outras belas obras como Edgar (Mathieu Sapin), Maria - Em Cada Rosto, Igualdade (Henrique Magalhães), Mukanda Tiodora (Marcelo D'Salete) ou a reedição integral de Cogito Ego Sum, de Luís Louro, que, desta forma, também passou a fazer parte do catálogo da editora portuguesa.

A análise ao trabalho das editoras portuguesas de BD em 2024
Finalmente, é com pena que verifico que a G. Floy Studio parece estar a perder muito do seu fulgor de outros tempos. Não tanto em termos qualitativos, mas especialmente em termos de quantidade de edições lançadas anualmente. 

Note-se que, durante o ano 2024, a editora ainda nos fez chegar belas obras, como a continuação e fecho da série Reckless, de Ed Brubaker e Sean Phillips, e as séries Marvel - Preto, Branco e Sangue (vários autores) e Saga, de Brian K. Vaughan e Fiona Staples. 

Além disso, lançou os audazes volumes integrais de BRZRKR (Keanu Reeves, Matt Kindt, Ron Garney e Bill Crabtree) e Black Magick - O Primeiro Livro das Sombras (Greg Rucka e Nicola Scott). Mesmo assim, comparando com outros tempos, são parcos os lançamentos da editora, o que me faz desejar que a G. Floy Studio volte a investir mais no mercado nacional. E já em 2025!

Em suma, 2024 foi um ano verdadeiramente excecional em termos de quantidade e qualidade no lançamento de banda desenhada. O bom trabalho feito pelos editores portugueses tem dado frutos e faço votos para que, mesmo que não se ultrapasse em número e em qualidade o ano de 2024, os próximos anos sejam de continuidade de forma a que a banda desenhada em Portugal continue a crescer, chegando a um público mais alargado.

E, já agora, deixo os meus votos de um bom ano para todos os que me seguem.

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