No passado mês de Outubro, por alturas do Amadora BD, a editora Devir fez-nos chegar o lançamento de Crónicas de Jerusalém, de Guy Delisle, autor de quem a editora já tinha publicado, há uns anos, Shenzhen - Uma Viagem à China, Crónicas da Birmânia e Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte. E tal como nessas obras, este Crónicas de Jerusalém assenta numa premissa semelhante.
Trabalhando a esposa do autor na organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, Guy Delisle acompanha a sua mulher, juntamente com os filhos de ambos, sempre que esta viaja para sítios do planeta onde costuma haver algum tipo de conflito político-militar. E, a partir daí, dessa experiência que o autor se vê forçado a fazer, vai-nos dando as suas crónicas, baseadas nas suas vivências e pareceres enquanto estrangeiro de um país de primeiro mundo num país onde toda a cultura e forma de estar são diferentes.
Crónicas de Jerusalém não foge à regra e assume-se como (mais) uma obra singular que mistura o formato de diário gráfico com uma análise crítica e sensível sobre a vida quotidiana numa das cidades mais complexas e emblemáticas do mundo: Jerusalém. O livro acaba, pois, por combinar observações pessoais com comentários históricos, políticos e culturais sobre a realidade de Israel e da Palestina. Originalmente lançado em 2011, 14 anos depois o livro continua extremamente atual, pois este é um dos territórios do planeta onde, lamentavelmente, a concórdia entre as várias facções parece mais impossível.
Delisle apresenta Jerusalém como um mosaico de culturas, religiões e tensões sociais. A obra ilustra com maestria o choque entre judeus, muçulmanos e cristãos, evidenciando as camadas de significados e conflitos que atravessam a cidade. Delisle consegue captar os detalhes do quotidiano, desde os mercados e bairros até aos rituais religiosos, com uma sensibilidade que evita estereótipos simplistas. O autor demonstra como essas comunidades coexistem (ou não) dentro de um espaço geograficamente limitado, criando uma tensão palpável que permeia toda a narrativa.
O humor é outro elemento marcante do livro. Delisle usa a sua habilidade para tratar temas pesados com alguma ironia e leveza, transformando momentos tensos, como os longos procedimentos de segurança em checkpoints ou as conversas sobre política com os locais, por exemplo, em episódios que equilibram seriedade e comicidade. Essa abordagem não diminui a gravidade dos temas tratados, mas permite ao leitor enfrentar a complexidade da região sem se sentir sobrecarregado.
O que também é bastante notado na obra de Guy Delisle, é a perspetiva pessoal e pouco convencional do autor. Diferente em relação à forma como jornalistas ou historiadores analisam a região, o autor adota um ponto de vista de outsider, filtrando as suas observações pela ótica de um pai e marido que tenta levar uma vida comum e tão normal quanto possível num país onde a normalidade - pelo menos do ponto de vista de um ocidental - escasseia.
Se esta abordagem humaniza a obra e convida o leitor a identificar-se com a perplexidade e com as descobertas do autor, também me traz a mim, enquanto leitor, uns certos "problemas". Não ponho em causa a relevância do trabalho de Delisle - que defendo, aliás, que todo o leitor de banda desenhada deve conhecer -, mas a verdade é que a postura demasiado neutra do autor acaba, quanto a mim, por tornar a leitura algo enfadonha e uma mera exposição de factos. O relato de Delisle não tem, por um lado, a força de um Joe Sacco que nos tira o chão perante aquilo que nos é relevado, nem, por outro lado, o humor ácido de um Zerocalcare que mesmo abordando coisas tristes, consegue fazer-nos gargalhar página sim, página não. Quanto a mim, Delisle acaba por se revelar algo "sem sal", demasiado morno. Mas, lá está, isto é apenas uma opinião muito pessoal. Reitero que os livros do autor são bons, originais e que saímos deles mais ricos... simplesmente, pelos motivos que aponto acima, o impacto não é tão grande como poderia ser, pois a a tentativa de Delisle em manter um tom neutro e despretensioso acaba por revelar uma certa apatia narrativa.
A arte de Delisle é simples, mas bastante funcional e eficiente, capturando tanto a grandiosidade dos monumentos históricos, como os detalhes da vida quotidiana. Neste Crónicas de Jerusalém o autor utiliza mais cores do que o habitual noutras obras já por mim referidas, em que se manteve mais fiel a uma paleta de cores. E isso é uma mais valia neste livro e dá-lhe mais dinâmica visual. Não é um livro que procure ser belo do ponto de vista gráfico, mas acho que, mesmo assim, e especialmente na ilustração das paisagens locais ou dos monumentos mais emblemáticos da cidade, o autor faz um trabalho bastante convincente.
A edição da Devir é em capa dura baça, com bom papel baço no interior e uma boa encadernação e impressão. Acima de tudo, fico satisfeito por verificar que a editora manteve o seu compromisso para com a obra do autor, e seus fãs, lançando mais um livro do mesmo, já depois dos previamente editados Crónicas da Birmânia, Shenzhen - Uma Viagem à China e Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte! Futuramente, espero que a editora nos possa continuar a dar mais obras do autor como Chroniques de Jeunesse ou S'enfuir - récit d'un otage.
Em suma, Crónicas de Jerusalém é mais do que um simples relato de viagem; é um convite a um olhar atento a Jerusalém e às suas contradições sob uma nova perspectiva ocidental. Guy Delisle mantém-se fiel a si mesmo e, por esse motivo, decerto agradará a todos aqueles que já apreciaram as restantes obras do autor.
NOTA FINAL (1/10):
8.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Crónicas de Jerusalém
Autor: Guy Delisle
Editora: Devir
Páginas: 336, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2024
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