terça-feira, 15 de julho de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Maio de 2025 para o Vinheta 2020?


Tentando recuperar o meu atraso na nomeação dos melhores livros de cada mês de 2025, hoje trago-vos a melhor banda desenhada lançada em Portugal durante o mês de Maio.

Relembro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

Quanto a mim, é este a BD mais obrigatória deste mês.

Eis, pois, o Livro do Mês de Maio de 2025:

Análise: O Desassossegado Senhor Pessoa

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral

A editora Levoir lançou recentemente um dos seus livros agendados para este ano que eu mais queria ler! Falo-vos de O Desassossegado Senhor Pessoa, do francês Nicolas Barral, do qual a mesma editora já havia publicado, em 2020, o belíssimo Ao Som do Fado. Talvez por ter gostado tanto desse livro, talvez por gostar tanto de Fernando Pessoa ou talvez por este O Desassossegado Senhor Pessoa ter sido um livro bastante aclamado pela crítica internacional, estava, pois, muito curioso e empolgado para mergulhar nesta leitura.

E posso dizer-vos que Nicolas Barral não desilude e volta a dar-nos um belo e profundo livro de banda desenhada que, sinceramente, tomo como um privilégio e uma honra para os portugueses. O Desassossegado Senhor Pessoa é uma obra carregada de lirismo, imaginação e profunda portugalidade. Trata-se de um retrato comovente dos últimos dias de Fernando Pessoa, figura mais que central da literatura portuguesa, cuja complexidade interior é aqui explorada de forma credível, delicada e respeitosa. Barral volta a mergulhar na história e cultura da alma portuguesa, compondo uma verdadeira eulogia gráfica ao maior poeta do nosso país.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
A narrativa, bem construída, acontece em 1935 e centra-se em Simão Cerdeira, um jovem jornalista do Diário de Lisboa, incumbido de escrever o obituário de Fernando Pessoa quando surgem rumores a ameaçar que a morte do poeta está iminente. Este ponto de partida permite ao autor guiar-nos por uma Lisboa dos anos 30, ao mesmo tempo que nos oferece uma investigação jornalística sobre Pessoa que não é mais do que uma (bem-vinda) forma de nos apresentar, de um modo leve, o mistério e a aura quase metafísica de Fernando Pessoa. O dispositivo narrativo - a busca de Cerdeira pelo homem por detrás do mito - acaba por ser uma metáfora para a própria leitura da obra de Pessoa: um labirinto de vozes, vidas e máscaras que, sendo díspares, têm enquanto denominador comum a mente genial de Fernando Pessoa.

Um dos méritos desta abordagem adotada por Barral é que a mesma não se torna demasiado explicativa ou académica. Ao invés, o autor francês opta por uma construção mais sensorial e poética, que respeita a ambiguidade do poeta e não tenta aprisioná-lo numa explicação racional. Os heterónimos, em particular Bernardo Soares ou Álvaro de Campos, aparecem de forma orgânica, pontuando a história sem a dominarem, como se continuassem a visitar o mundo através do corpo do seu criador.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
A história, embora situada num momento terminal da vida de Pessoa, não se afunda em tristeza. Há nela um tom contemplativo, por vezes melancólico, mas nunca pesado. Barral escreve (e desenha) com reverência, mas também com liberdade, fazendo da obra quase uma extensão gráfica do Livro do Desassossego. É uma homenagem viva, por vezes poética, ao espírito inquieto de Pessoa e à pluralidade que o define.

A estrutura do livro alterna habilmente entre o presente da investigação de Simão Cerdeira e os ecos da vida interior de Pessoa, fundindo biografia e ficção com um equilíbrio raro. Nicolas Barral não tenta fazer de Pessoa uma personagem "normal", mas tampouco transforma o poeta português num mito inalcançável - prefere deixá-lo viver entre sombras e interrogações, tal como ele mesmo desejava.

A inserção de frases e reflexões inspiradas no universo pessoano, muitas vezes evocando trechos do Livro do Desassossego, reforça a dimensão poética do livro. São intervenções subtis que conferem à narrativa uma espessura literária, sem jamais quebrar o ritmo da leitura ou tornar o tema "forçado". A obra, neste sentido, posiciona-se entre a banda desenhada e a literatura, sendo ao mesmo tempo acessível e profunda, o que, como bem sabemos, é um equilíbrio que nem sempre é alcançável por grande parte dos autores.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
Visualmente, O Desassossegado Senhor Pessoa é um livro belíssimo. Para além de Fernando Pessoa, também Lisboa protagoniza a história, surgindo retratada com uma paleta de cores quentes e nostálgicas, onde o azul do Tejo, os ocres das fachadas e a luz própria lisboeta ajudam a construir uma atmosfera evocativa e encantadora. As vinhetas, muitas vezes silenciosas, respiram como poesia visual, permitindo ao leitor mergulhar lentamente no mundo do poeta. O jornalista Simão Cerdeira tem uma fisionomia claramente inspirada no ator Adrien Brody que, entre outros filmes, protagonizou o célebre O Pianista. Relembro que já em Ao Som do Fado, o protagonista era inspirado no ator Benicio del Toro, o que revela uma inclinação de Barral para utilizar atores de características faciais originais, para retratar as suas personagens.

Um único e pequeno reparo que posso fazer ao desenho de Barral é que, por vezes, o autor adota uma linha demasiado grossa, destoando um pouco da delicadeza de outras sequências desenhadas com mais elegância e subtileza. Esse contraste não parece advir de uma opção narrativa ou conceptual, mas acontece várias vezes e, pelo menos a mim, provoca uma certa estranheza, ainda que nunca comprometa (muito negativamente) a qualidade geral da obra, concedo. Trata-se de um detalhe estético menor, mas ainda assim perceptível.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
Em termo de edição, o livro apresenta as características naturais a que a editora Levoir já nos habituou na sua Coleção de Novelas Gráficas, embora, neste caso, a lombada seja branca e este livro tenha sido lançado, de forma independente, fora da referida coleção que, ao que tudo indica, este ano não deverá ser lançada. De resto, o livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior e uma boa encadernação e impressão. Uma ou outra página pareceu-me desfocada. Não consegui averiguar se se trata de um problema da edição portuguesa ou se tal já havia acontecido na edição original. Mas fica a nota. 

O livro inclui ainda um posfácio de Ricardo Belo de Morais, escritor e investigador da Casa Fernando Pessoa, que também traduziu o livro que lhe deu um título que, a meu ver, consegue ser melhor do que o original. Nota ainda para o facto desta obra ter uma capa alternativa, limitada às lojas FNAC, em que o fundo é amarelo, em vez de ser azul.

Em suma, O Desassossegado Senhor Pessoa é mais do que uma simples biografia ilustrada. É uma meditação que respeita a memória de Pessoa sem a enclausurar. Nicolas Barral, com sensibilidade e mestria, oferece-nos uma história que não pretende decifrar o poeta, mas acompanhá-lo nos seus últimos passos, através de uma carta de amor à Lisboa dos anos 30, ao mistério da criação artística, e ao homem que, do seu baú, deu voz a muitos outros homens e que continua, desassossegadamente, a falar connosco. Saibamos nós ouvi-lo.


NOTA FINAL (1/10):
9.5


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O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir

Ficha técnica
O Desassossegado Senhor Pessoa
Autor: Nicolas Barral
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

Análise: Dom Quixote de La Mancha

Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor

Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor
Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi

Depois do fantástico O Inferno de Dante, dos irmãos Brizzi, confesso que estava especialmente curioso para mergulhar neste Dom Quixote de La Mancha, dos mesmos autores, recentemente editado pelo esforço conjunto das editoras A Seita e Arte de Autor. E, digo-vos desde já, essa espera foi largamente recompensada!

Sou um grande adepto da obra original de Miguel de Cervantes - ou não se chamasse o meu cão Quixote! - e saber que a mesma era adaptada para banda desenhada pelo singular talento de Paul e Gaëtan Brizzi, deixou-me esperançoso que estivéssemos perante uma merecida adaptação daquele que, exceptuando a Bíblia Sagrada, é o livro mais vendido no mundo.

Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor
Sem surpresas, esta adaptação dos irmãos Brizzi parte do clássico imortal de Miguel de Cervantes para construir uma obra visualmente deslumbrante e fiel ao espírito do original. Mesmo sendo verdade que os autores tomam as suas próprias liberdades criativas, a história base mantém-se: um fidalgo castelhano enlouquece de tanto ler romances de cavalaria e decide tornar-se, ele próprio, cavaleiro andante, assumindo o nome de Dom Quixote. Acompanhado do fiel escudeiro Sancho Pança, parte em aventuras tão absurdas quanto tocantes, onde confunde a realidade com as fantasias da sua imaginação fervorosa.

Desde o primeiro olhar, desde a primeira prancha, desde a primeira vinheta, é impossível não se deixar seduzir pela arte absolutamente incrível que compõe esta adaptação. Os desenhos dos Brizzi são expressivos de uma forma profunda e comovente. As personagens transbordam emoção, bastando um olhar, uma expressão facial ou um posicionamento corporal para percebermos o que as mesmas sentem. E a dicotomia que existe entre o detalhado e realista desenho e a expressividade caricatural das personagens, oferece ao todo uma singularidade impressionante. Mesmo com um traço que, por vezes, se aproxima da caricatura, é espantoso verificar que as personagens nunca perdem o realismo emocional, criando uma mistura que funciona em pleno e que se adapta perfeitamente ao tom tragicómico da narrativa.

Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor
Se os desenhos são lindos e com uma técnica aprimorada, há outra coisa neste livro que merece destaque - e que engrandece a própria obra - que reside na forma como os autores reinterpretaram visualmente as descrições de Cervantes. Um exemplo paradigmático disso são os célebres moinhos de vento, que Dom Quixote toma por gigantes. A visão dos Brizzi sobre esta cena é verdadeiramente deliciosa: os moinhos ganham uma aura mítica e ameaçadora, num jogo entre o grotesco e o fantástico, que traduz com fidelidade o olhar distorcido, mas poético, do cavaleiro. E para incrementar ainda mais a força visual destes momentos imaginados(?) por Dom Quixote, os autores utilizam a cor, em vez do preto e branco das restantes cenas, conseguindo deste modo diferenciar os diferentes momentos. 

Este jogo de luz e cor é tão bem-vindo que até me leva a lamentar que não seja sempre respeitado pelos autores. Quando, por exemplo, Dom Quixote observa Dulcineia (da forma que só ele a consegue observar), não se compreende o porquê dos autores nos oferecerem uma imagem a preto e branco da visão de Dom Quixote. Não é que essa ilustração não seja excecional, porque o é, mas lamenta-se que não seja a cores por uma questão de coerência narrativa.

Mas, enfim, isto será um detalhe ou um capricho de alguém que muito aprecia a obra original - bem como esta adaptação que quase é perfeita.

Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor
Note-se também que, apesar do formato mais condensado da banda desenhada, os Brizzi conseguem não cair na armadilha da simplificação excessiva. A obra permanece rica, com diálogos que mantêm o tom e o humor tão característicos de Cervantes, e com uma estrutura narrativa que respeita a essência do original. É uma adaptação que não infantiliza, nem desrespeita a complexidade da obra-mãe, tornando-a, ao mesmo tempo, mais acessível a novos públicos.

É inegável que, tratando-se de uma versão mais curta de um livro que é imenso e labiríntico, muitos episódios e personagens ficaram de fora. No entanto, o que realmente importa – o espírito indomável, a melancolia heroica, a crítica social e a ternura pelos que sonham alto – está todo lá. Esta fidelidade emocional talvez seja o maior triunfo da banda desenhada dos Brizzi.

Mas, obviamente, o trabalho gráfico também contribui para essa fidelidade: a paleta de cores (quando utilizadas); as sombras; os desenhos  - que ora parecem esboços rápidos, ora apresentam detalhes ultra pormenorizados; ou os enquadramentos arejados em ilustrações de página inteira que conseguem transmitir uma atmosfera que oscila entre o onírico e o trágico. O mundo de Dom Quixote parece ora um palco de teatro, ora um pesadelo fantástico. Essa ambiguidade é precisamente o que define a obra de Cervantes e aqui é captada com uma mestria que impressiona.

Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor
Outro ponto que merece aplauso é a caracterização das personagens. Dom Quixote surge como uma figura ao mesmo tempo ridícula e nobre, louca e profundamente humana. Já Sancho Pança, apesar do seu papel cómico, é retratado com uma sensibilidade surpreendente. Ambos os protagonistas ganham camadas e humanidade, o que torna a leitura não apenas divertida, mas também comovente.

Se O Inferno de Dante já se revelou espetacular, este Dom Quixote de La Mancha consegue ultrapassar essas boas expectativas que eu já tinha. Em termos de ilustrações, ambas as obras caminham lado a lado, mas em termos de narrativa, e da forma como a história original é adaptada, Dom Quixote é superior, pois a profundidade emocional é ainda mais notória nesta nova proposta. Fico com esperança que a obra seguinte dos irmãos Brizzi, O Fantasma da Ópera, editado este ano em França, também venha a merecer publicação por cá.

A edição das editoras A Seita e Arte de Autor, merece ser digna de nota, também! O livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz, e é-nos dado no grande formato que a edição de O Inferno de Dante já havia adotado, e que, claro está, beneficia em muito a leitura da obra. No interior, o papel utilizado é de excelente qualidade e o trabalho de encadernação e impressão é impecável. Se juntarmos a isto, o generoso caderno de extras de 12 páginas carregadas de esboços ou a capa alternativa exclusiva da Wook, bem como a a inclusão de um ex-libris assinado pelos autores (embora sujeito a algumas unidades apenas), estamos perante uma séria candidata a melhor edição do ano.

Em suma, esta adaptação de Dom Quixote de La Mancha não é apenas um reencontro com um clássico; é uma celebração do mesmo. Consegue tornar a obra mais acessível para os leitores contemporâneos, nunca abdicando da sua densidade simbólica, nem do seu humor, nem da sua poesia. Para quem já conhece o original, é (mais) uma nova forma de o amar; para quem nunca o leu, é uma majestosa porta de entrada. Os irmãos Brizzi conseguem dar nova vida à história de Dom Quixote sem a desvirtuar. Quase apetece dizer que Cervantes, se pudesse ler esta adaptação, teria dado a sua bênção sem pestanejar. Há aqui uma compreensão sincera do que significa sonhar contra o mundo... e falhar. E, mesmo assim, continuar a sonhar. E essa é a primordial lição que Dom Quixote continua a ensinar-nos! Imperdível!


NOTA FINAL (1/10):
9.7


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Dom Quixote de La Mancha, de Paul e Gaëtan Brizzi - A Seita e Arte de Autor

Ficha técnica
Dom Quixote de la Mancha
Autores: Paul e Gaëtan Brizzi
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 208, a cores e a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 246 x 341 mm
Lançamento: Maio de 2025 


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Abril de 2025 para o Vinheta 2020?


Hoje venho falar-vos daquele que considero ter sido o melhor livro de banda desenhada do passado mês de Abril.

Relembro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

Neste mês, aconteceu a particularidade de uma obra nacional ocupar a categoria de melhor livro do mês, coisa que nunca tinha acontecido.

Portanto, sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Abril de 2025:

Análise: A Mais Breve História da Rússia (em BD)

A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa

A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa
A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso

Foi recentemente que a editora ASA, certamente aproveitando a atualidade, lançou o livro de banda desenhada A Mais Breve História da Rússia (em BD), que conta com ilustrações de Joana Afonso e argumento de Dulce Garcia. Este livro é adaptado por Dulce Garcia a partir do livro original do jornalista e comentador político José Milhazes, intitulado A Mais Breve História da Rússia, que, aliás, durante o ano 2022, foi o livro mais vendido na categoria de não ficção em Portugal.

Diria que é uma ambiciosa transposição de um texto informativo para o formato de banda desenhada e que procura manter a essência da obra original, mas oferecendo, ao mesmo tempo, uma experiência visual envolvente, acessível e bastante pedagógica. É um livro que procura chegar ao maior número possível de leitores. E tem potencial para conseguir tal feito.

A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa
A obra propõe uma viagem cronológica pela história da Rússia, desde as suas raízes, com os povos eslavos, até à atualidade, atravessando momentos determinantes como o czarismo, a Revolução de 1917, o estalinismo, o colapso da URSS e a era Putin. Uma verdadeira aula de história, portanto. E que procura ser o mais atual possível, incluindo a presença de figuras contemporâneas de relevância mundial como Zelensky, Trump, Navalny ou António Guterres. O  último capítulo do livro até é focado no passado mais recente, centrando-se na invasão da Ucrânia por parte do regime de Putin, que começou no fatídico dia 24 de fevereiro de 2022. Há, pois, um equilíbrio entre o passado e o presente da Rússia e isso é uma das forças da obra.

E para que este livro navegue até bom porto, também conta o bom trabalho das autoras portuguesas responsáveis por esta empreitada.

Dulce Garcia, pelo seu lado, consegue transformar a densa e muitas vezes árida matéria histórica num guião acessível e bem ritmado. Há uma clara intenção de tornar a informação "digerível" sem a simplificar em demasia, respeitando o leitor e confiando na sua curiosidade. Cada um dos períodos históricos está segmentado em capítulos, facilitando a assimilação dos temas abordados, tal como num manual escolar. Ainda assim, apreciei especialmente o facto de a obra atingir um certo equilíbrio entre não ser densa e pesada em demasia, mas, ao mesmo tempo, levando-se a sério e sendo coerente. 

A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa
Deste modo, o livro consegue ser educativo sem se tornar maçador e, também por isso, é uma leitura que tanto pode ser aproveitada por um público mais jovem, que tenha interesse inicial pelo tema, como por adultos que procuram uma introdução concisa e bem construída à história da Rússia. A banda desenhada cumpre aqui um papel de mediação cultural e histórica, descomplicando sem infantilizar.

No plano visual, há que dizer que o trabalho de Joana Afonso é absolutamente fundamental para o sucesso do livro. Mantendo-se fiel ao seu traço expressivo e detalhado, Joana Afonso consegue imprimir dinamismo a uma narrativa que, à partida, poderia parecer demasiado expositiva. A forma como gere os enquadramentos, o ritmo das vinhetas e a composição das páginas revela uma maturidade artística notável e confirma porque é que a autora é muitas vezes - e justamente! - considerada como uma das autoras mais interessantes da banda desenhada portuguesa contemporânea.

A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa
Tendo em conta a obra que temos em mãos, o mais notável no trabalho de Joana Afonso é que, mesmo perante um tema tão denso e exigente, consiga evitar a armadilha da monotonia visual. Assim, cada página oferece estímulos variados, seja através da expressividade dos rostos, da reconstituição histórica de ambientes, de alguns momentos de humor ou de uma bela diversidade na planificação que nos oferece ilustrações grandes e pequenas. É um trabalho gráfico que respeita o texto, mas também o enriquece, oferecendo ao leitor pistas visuais que ampliam a compreensão da narrativa. Mesmo os momentos mais sangrentos da história russa são-nos dados de uma maneira mais ligeira, mas sem os desdramatizar. "Equilíbrio" parece, portanto, ser a palavra de ordem neste trabalho. A paleta de cores onde imperam os tons a azul ou a vermelho, também dá uma certa personalidade demarcada à obra, que é bem-vinda.

Claro que podemos afirmar que, por vezes, o livro parece ser um livro ilustrado em detrimento de um livro de banda desenhada, já que, em vários casos, tem algum texto expositivo em que eventos referidos não são desenhados. É verdade, mas diria que também é frequente que em banda desenhada de cariz mais didático, a sequência narrativa não tenha uma ligação tão óbvia entre texto e desenho, servindo este último mais para adornar e esquematizar a informação do que, propriamente, para retratar as palavras de um modo mais literal. Mesmo assim, considero que Joana Afonso consegue camuflar bem essa suposta fragilidade através de todo o seu manancial de opções gráficas que tornam a experiência de leitura dinâmica e nunca enfadonha.

A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa
É impossível não referir também a atualidade pungente do tema abordado. Num momento em que a Rússia ocupa o centro das atenções mediáticas devido à invasão da Ucrânia, esta obra oferece contexto e profundidade a todos os interessados. Permite compreender como eventos do passado moldaram a mentalidade estratégica e autoritária do atual regime russo, oferecendo uma base mais sólida para interpretar os acontecimentos do presente. Obviamente, talvez seja uma obra algo histórico-política em demasia para muitos, mas isso não lhe tira mérito e revela que, sim, cada vez mais, o mercado nacional de banda desenhada dá passos no sentido certo, incrementando a diversidade da sua própria oferta.

Nota ainda para algo que apreciei no livro, que foi o facto de o mesmo ter a virtude de não ser panfletário. A complexidade da história russa é respeitada, sem desresponsabilizar os seus protagonistas. Figuras como Lenine, Estaline ou Putin são apresentadas com o devido peso histórico, mas também com a necessária contextualização, o que permite ao leitor formar um juízo mais informado e crítico. Ponto a favor, portanto.

A edição da ASA é em capa dura baça, com bom papel baço e boa encadernação e impressão. Não existem extras e parece-me que se perdeu a oportunidade de ter um prefácio do próprio José Milhazes que pudesse fazer uma introdução a como surgiu a ideia de adaptar para banda desenhada o seu A Mais Breve História da Rússia. Uma nota ainda, de louvor, para a belíssima ilustração da capa deste livro. Se há capas que ajudam a vender o livro, esta é uma delas.

Em suma, este livro é uma leitura recomendável para todos os que procuram compreender melhor a história da Rússia, as suas tensões internas, os seus traumas e as suas aspirações imperiais. Dulce Garcia e Joana Afonso conseguem o feito de transformar uma lição de história numa banda desenhada equilibrada, tendo uma boa informação que não é demasiadamente maçuda nem simplória e, ao mesmo tempo, sendo brilhantemente ilustrada por Joana Afonso que, aparentemente, não sabe fazer maus livros. É uma obra que educa, esclarece e estimula, como deve ser qualquer boa banda desenhada de não ficção.


NOTA FINAL (1/10):
8.4


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A Mais Breve História da Rússia (em BD), de Dulce Garcia e Joana Afonso - ASA - LeYa

Ficha técnica
A Mais Breve História da Rússia (em BD)
Autoras: Dulce Garcia e Joana Afonso
Adaptação a partir da obra original de: José Milhazes
Editora: ASA
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 206 mm
Lançamento: Maio de 2025

Análise: CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2

CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina - Ala dos Livros

CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina - Ala dos Livros
CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina

Se há série de banda desenhada que tem um valor histórico mais do que pertinente, por nos dar um vislumbre do passado recente bélico nacional, essa série dá pelo nome de CoBrA. Recentemente, o terceiro livro da mesma, extraído da mente de Marco Calhorda, argumentista e mentor da franquia, foi editado pela Ala dos Livros. E novamente temos um novo ilustrador para a história. Depois de Daniel Maia e Zoran Jovici, que ilustraram, respetivamente, Operação Goa e o primeiro tomo de Operação Conacri, é a vez de Osvaldo Medina, uma referência na banda desenhada nacional, se juntar à série.

Este Cobra - Operação Conacri - Tomo 2, tal como o nome assim revela, é pois a segunda e última parte do segundo arco narrativo da série.

CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina - Ala dos Livros
Dando continuidade ao trabalho iniciado por Marco Calhorda e Zoran Jovicic no primeiro tomo de Operação Conacri, este volume mergulha o leitor numa das operações militares mais secretas e controversas da história recente de Portugal: a tentativa de derrube do regime guineense aliado do PAIGC, numa manobra conhecida como Operação Mar Verde, que foi levada a cabo já durante os últimos anos do Estado Novo. Este episódio, largamente esquecido ou silenciado nas narrativas oficiais, é recuperado aqui com um impressionante sentido de rigor e coragem, por parte de Marco Calhorda, ainda que, e felizmente, esta seja uma história de ficção. Com um pé no rigor histórico e outro no entretenimento. E esse pode muito bem ser o seu principal trunfo.

A série CoBrA tem-se afirmado ao longo dos seus vários tomos, aliás, como uma proposta narrativa e historicamente pertinente, pois não só oferece um mergulho nas missões secretas do exército português, como também aborda as ramificações políticas e geoestratégicas dessas ações, muitas vezes orquestradas à margem das instituições formais. E este novo volume da série volta a ser exemplar nesse sentido, destacando, também, o papel de Jorge Jardim, figura influente nas sombras do colonialismo tardio, cuja atividade junto de redes internacionais e mercenárias o tornaram num dos principais mentores destas operações encobertas. Ainda que, no caso concreto, Jorge Jardim até não tenha, desta vez, um papel tão ativo como nos dois livros anteriores.

Neste segundo tomo de Operação Conacri, acompanhamos a necessidade de reação por parte do governo português face ao massacre dos majores e à situação independentista na Guiné que, no início dos anos 70, se começava a agravar cada vez mais. Foi neste cenário que Marcelo Caetano aprovou uma missão militar sem precedentes para o exército português e onde, mais uma vez, a agência CoBrA foi figura central. Esta foi, aliás, a maior operação clandestina realizada pelas forças militares portuguesas.

CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina - Ala dos Livros
Em termos históricos, o valor documental de Operação Conacri - Tomo 2 é inegável. Ao retratar a Operação Mar Verde, ainda que de uma forma ficcionada, o livro levanta o véu sobre uma faceta menos explorada da Guerra Colonial, revelando-nos uma guerra obscura, onde a espionagem, os golpes falhados e as redes internacionais de interesses assumiram um protagonismo letal. 

A série CoBrA tem sido exemplar ao abordar episódios pouco conhecidos da história portuguesa, dando-lhes corpo através da banda desenhada e assumindo-se numa "espionagem à portuguesa". Em vez de perpetuar mitos ou versões simplificadas, vê-se que há um esforço dos autores em alicerçar a narrativa em factos e documentos reais. E isso merece os meus louvores. 

Neste tomo, Marco Calhorda continua a aperfeiçoar o seu trabalho de escrita. Nota-se uma evolução clara na estrutura narrativa, tornando-a menos confusa e isso é especialmente visível na forma como as legendas são trabalhadas e otimizadas. Há um maior cuidado em contextualizar o leitor, explicando onde e quando se passam os eventos, o que permite um acompanhamento mais fluído da história. Pode parecer um detalhe menor, mas é precisamente esse tipo de escolhas que demonstra maturidade autoral e que proporciona uma leitura mais imersiva e acessível, especialmente para os leitores menos familiarizados com os eventos retratados.

O trabalho de Osvaldo Medina é outro dos pontos fortes desta edição. Com um traço limpo, expressivo e um belo uso do preto e branco puro, o autor confere ao livro uma intensidade gráfica que casa bem com a tensão da narrativa. O seu domínio do claro-escuro reforça a atmosfera de clandestinidade e perigo que atravessa a história. Enquanto admirador do seu trabalho noutras obras, não posso deixar de sublinhar que, também aqui, Osvaldo Medina não desilude e continua a afirmar-se como um dos grandes talentos da banda desenhada nacional.

CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina - Ala dos Livros
No entanto, essa opção estética de ter um desenho mais "cartoonesco" do que nos dois álbuns anteriores da série, acaba por criar uma fratura visual dentro da própria franquia CoBrA. O contraste com o estilo mais realista de Daniel Maia e de Zoran Jovicic é inevitável. Para leitores que seguem a série desde o início, essa dissonância pode criar um certo estranhamento, comprometendo parcialmente a continuidade visual da obra. Note-se que esta diferença não diz respeito à qualidade do trabalho, mas sim à coerência gráfica entre os volumes. 

O trabalho de Osvaldo Medina não é melhor, nem pior do que o de Daniel Maia ou Zoran Jovicic... é diferente. E talvez esta questão se dissipasse caso Osvaldo Medina tivesse sido responsável por um tomo independente, com uma história auto-conclusiva dentro do universo de CoBrA. Aí, o seu estilo distinto poderia brilhar com maior autonomia, sem provocar o tipo de ruturas visuais que se sentem ao mudar de artista a meio de um arco narrativo. Mas como o autor desenhou a segunda parte de um arco narrativo, parece-me que talvez devesse ter havido um menor corte em termos visuais, mesmo admitindo que, não obstante, o contributo artístico de Osvaldo Medina enriqueça o livro e lhe traga um vigor gráfico notável.

Abordando a edição da Ala dos Livros, estamos perante um bom trabalho. O livro apresenta capa dura com revestimento em tecido e uma sobrecapa. No interior, o papel utilizado é brilhante e de boa qualidade e o trabalho de encadernação e impressão é bom. Há um prefácio assinado por Abílio Pires Lousada, Militar Historiador, e, no final do livro, há documentos (com QR Code) que permitem que o leitor possa fazer a ponte para a base verídica e histórica dos eventos retratados no livro. Há ainda um conjunto de fotografias de época e o esboço de duas páginas para Operação Porto, que deverá ser o quarto e último volume da série CoBrA.

Em suma, este novo tomo consolida a importância de CoBrA enquanto projeto editorial de BD que não teme mergulhar nos episódios mais obscuros da nossa história militar contemporânea. Apesar da diferença de estilos entre Osvaldo Medina e os ilustradores dos dois volumes anteriores da série, a obra mantém-se sólida e envolvente, cumprindo o duplo propósito de entreter e informar. O leitor sai da leitura não apenas com uma história tensa e bem construída, mas também com um entendimento mais complexo da realidade portuguesa no final do Estado Novo.


NOTA FINAL (1/10):
8.9



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CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2, de Marco Calhorda e Osvaldo Medina - Ala dos Livros

Ficha técnica
CoBrA - Operação Conacri – Tomo 2
Autores: Marco Calhorda e Osvaldo Medina
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Março de 2025 para o Vinheta 2020?


Continuando o meu atraso na nomeação do Livro do Mês, para cada um dos meses de 2025 que já findaram, hoje trago-vos aquela que, a meu ver, foi a melhor BD do mês de Março editada em Portugal.

Relembro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

É, na minha opinião, a obra que vos apresento mais abaixo.

Sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Março de 2025:

Análise: O Vento nas Areias - Edição Integral

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix

A editora Arte de Autor lançou recentemente uma edição integral da série O Vento nas Areias, de Michel Plessix. Este lançamento segue no seguimento do livro O Vento nos Salgueiros que a mesma editora chegou a editar no ano passado e que acabou até por vencer o VINHETA D'OURO 2024 para Melhor Obra Infanto-Juvenil. Se O Vento nos Salgueiros é uma obra constituída por 4 tomos e que adapta para banda desenhada a obra homónima de Kenneth Grahame, este O Vento nas Areias, reúne os 5 tomos da edição original e é uma continuação da primeira história.

Continuação essa que é verdadeiramente encantadora e que, desta vez, é guiada unicamente pela própria imaginação de Michel Plessix, embora se mantenha fiel ao espírito de Kenneth Grahame. É, pois, um livro que consegue manter o charme, humor e a inocência da obra original, ao mesmo tempo que apresenta uma nova e exótica paisagem narrativa: o Magrebe que, com a sua luz quente e os mercados coloridos, surge como palco de uma viagem inesperada e transformadora para as personagens que conhecemos tão bem.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
O trio protagonista - o impulsivo Sapo, o ponderado Rato e a amável e comilona Toupeira - continua a apresentar a mesma dinâmica afetiva e cativante. Plessix não tenta reinventar estas figuras, mas antes colocá-las em novos desafios, respeitando os seus traços essenciais. Assim, o Sapo continua a ser a figura caprichosa do entusiasmo irrefletido e motor da aventura que nos faz (sor)rir várias vezes; enquanto o Rato e a Toupeira representam o bom senso e a amizade leal. E ainda há espaço para o aparecimento de novas personagens carismáticas, em particular a de Corto Maltese sob a forma de um rato. A deslocação para o Oriente funciona como uma metáfora do crescimento, da descoberta e do confronto com o inesperado. Se os mais céticos poderiam torcer o nariz a esta ideia de transportar as personagens para um outro cenário, posso assegurar-vos que essa transição é fluida e refletida.

A narrativa pode aparentar ser simples à superfície, como convém a um livro com raízes na literatura infantil, mas a verdade é que oculta uma grande densidade simbólica, possivelmente apenas apreendida por um público mais maduro. É para crianças, sim, mas os jovens e, especialmente, os adultos encontrão significados mais profundos nesta leitura, pois esta viagem não é apenas geográfica, mas interior: cada personagem confronta-se com os seus limites, as suas ilusões e as suas forças. É este aspeto que aproxima este O Vento nas Areias de obras como O Principezinho, de Antoine Saint-Exupéry, onde a aventura é simultaneamente lúdica e filosófica, acessível à infância e ressonante na maturidade. A leitura da obra em diferentes fases da vida traz, por isso, experiências distintas, e nisso reside grande parte da sua magia. Enquanto crianças, seguimos a aventura com entusiasmo e curiosidade; em adultos, revemos nessa mesma aventura reflexões sobre a amizade, a busca pelo sentido da vida e/ou o desejo por algo maior. Esta é, sem dúvida, uma das maiores virtudes do livro: a sua intemporalidade e capacidade de tocar leitores de todas as idades.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
A ligação emocional do leitor com a história é intensificada pelo tom nostálgico e sonhador da narrativa. Há algo de profundamente reconfortante em reencontrar estas personagens numa nova aventura, e, ao mesmo tempo, sentir que elas envelhecem connosco. O livro evoca essa infância idealizada em que os perigos eram enfrentados com coragem e as amizades eram inabaláveis. É um tributo à força do espírito aventureiro, mesmo na idade adulta.

Plessix demonstra também uma grande sensibilidade na forma como lida com a memória da obra original. Não se trata de uma continuação forçada ou de uma tentativa de capitalizar uma "marca" conhecida. Pelo contrário, O Vento nas Areias é uma carta de amor à literatura de Grahame, uma extensão natural e orgânica do seu universo, que preserva a sua alma e a enriquece com novas experiências. Sou-vos sincero: embora goste muito do primeiro livro de Plessix, ainda gostei mais deste! E ressalvo que as minhas expectativas até estavam altas - o que, por vezes, é um ponto contra e não um ponto a favor.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
Além disso, parece-me que a própria escolha do Magrebe como cenário que parece extraído das Mil e Uma Noites, não é aleatório, mas acaba por funcionar a favor das personagens. É que a mudança de cenário e de cultura consegue funcionar como estímulo à imaginação e à introspeção. O oriente é espaço de um certo maravilhamento para os ocidentais, mas também de algum "estranhamento", o que acaba por ser ideal para que os nossos heróis saiam da sua zona de conforto e se redescubram. 

Se a história é bonita e gratificante, os desenhos que compõem este livro são maravilhosos! E também eles cumprem bem a dupla função de, por um lado, serem convidativos para um público mais jovem e, por outro lado, serem perfeitos para fazer os adultos viajar à sua própria infância. 

O traço de Michel Plessix é, como já era na adaptação de O Vento nos Salgueiros, absolutamente magistral! Os detalhes minuciosos nas expressões das personagens conferem-lhes uma vivacidade rara. Mesmo tratando-se de animais antropomorfizados, sentimos neles uma humanidade plena. Além disso, os cenários do Magrebe são pintados com cores quentes e bastante luz, o que ajuda a transportar o leitor para ambientes cheios de vida, exotismo e poesia.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
Também a própria planificação da obra permite uma fluidez narrativa muito eficaz. As vinhetas são variadas em forma e dimensão, o que confere dinamismo às páginas e uma leitura visual muito rica. Não tenho dúvidas de que a composição de cada prancha foi trabalhada com um cuidado que revela o amor que o autor, infelizmente já falecido, tinha pela arte sequencial.

A edição da Arte de Autor é muito bela e bem conseguida, também. O livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz e com aquela textura aveludada, suave ao toque, com que a editora tem premiado outras das suas belas edições. Também capa é bem mais bonita e, acredito, consensual do que a de O Vento nos Salgueiros. Além disso, o papel utilizado, bem como a qualidade da impressão e da encadernação, é muito bom. Acaba por ser uma edição cheia de dignidade e apetecível para colecionadores de banda desenhada.

Em suma, O Vento nas Areias é uma homenagem sentida e sofisticada a um clássico intemporal, enriquecida pelo talento gráfico e narrativo de Michel Plessix. É uma obra que se recomenda não apenas como continuação, mas como uma obra autónoma. Um livro para ser relido, saboreado e guardado com carinho, como se guarda uma memória feliz da infância ou uma fotografia de um tempo mais leve e sonhador. Quer sejamos crianças a lembrar o dia de ontem ou adultos nostálgicos com uma infância feliz e distante que não deixámos morrer.


NOTA FINAL (1/10):
9.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor

Ficha técnica
O Vento nas Areias - Edição Integral
Autor: Michel Plessix
Editora: Arte de Autor
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 236 x 285 mm
Lançamento: Junho de 2025

Análise: Slava #1 - Depois da Queda

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont

O ano 2025 tem sido dos melhores anos da editora ASA no que à publicação de banda desenhada de qualidade superior diz respeito. São vários os bons exemplos que podemos encontrar no catálogo recente da editora portuguesa. Este Slava, da autoria de Pierre-Henry Gomont, é apenas mais um desses bons exemplos.

Slava é uma mini-série com três volumes, lançados no seu mercado nativo entre 2022 e 2024, que nos transporta para a Rússia da década de 1990, num período turbulento logo após o colapso da URSS. Foi uma época em que a utopia comunista, antes dominante, tinha-se então tornado mais num conceito teórico, alimentado por um canto débil propagandista, do que em algo que pudesse ter um real reflexo palpável na sociedade de então.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
E é com esta moldura histórico-política, que Pierre-Henry Gomont - de quem a G. Floy Studio já por cá havia editado o muito bom Afirma Pereira - nos apresenta personagens envoltas por um cenário de decadência e desilusão. O país encontra-se à deriva, tal como muitos dos seus cidadãos que não passam de sobreviventes de um império desfeito.

A história acompanha Slava, um jovem carismático, artista plástico por vocação, que tenta encontrar o seu lugar neste novo mundo que ainda não sabe como ressurgir. Ao seu lado está Dimitri Lavrine, um velho amigo com ambições duvidosas, traficante sem escrúpulos e oportunista nato. Juntos, envolvem-se numa atividade obscura: resgatar e vender velharias soviéticas a colecionadores ocidentais que veem na antiga URSS um exótico souvenir de um regime derrotado.

O contraste entre Slava e Dimitri é uma das forças do livro. Slava ainda acredita em algum tipo de idealismo perdido, enquanto Dimitri abraça o cinismo da nova ordem. Essa tensão entre passado e presente, utopia e capitalismo, nostalgia e sobrevivência, está no cerne da narrativa. E é precisamente essa dualidade que dá espessura ao enredo. Além destas duas personagens, junta-se ao enredo a personagem de Nina, uma bela mulher por quem Slava não consegue esconder uma forte atração. É, aliás, Nina quem salva Slava e Lavrine de uma morte certa, quando um dos seus negócios não corre da maneira desejada. E são esses negócios - ou a ideia de uma boa negociata - que fará com que a trama se vá adensando.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Tenho que dizer que, por vezes, o enredo me pareceu um pouco reticente, sem saber bem para onde ir, onde nos são dados alguns eventos avulsos, aparentemente pouco relevantes para a construção da narrativa principal ou das personagens. Ao contrário de certos livros que me fazem mergulhar neles até que termine a sua leitura, este Slava fez o oposto: por vezes vi-me forçado a fazer algumas pausas. Não pelo facto de o tema ser demasiadamente complexo ou desinteressante, mas porque a narrativa é algo caótica, com um ritmo um pouco ao sabor da corrente, que ora prende o leitor, ora o distrai.

Já o desenho de Gomont é um espetáculo à parte. Com um traço nervoso e rápido, mas incrivelmente elegante, remete, com as devidas distâncias, para o estilo de Christophe Blain, sobretudo na expressividade gestual e nas composições ligeiramente deformadas, que servem para acentuar o tom emocional das cenas. É um traço - nunca estático, sempre em movimento - que vibra com a energia das personagens e dos lugares.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Além disso, as cores representam aqui um papel fundamental, para que os desenhos da obra, incluindo os das suas belas capas, seja tão apelativo. É sobretudo o uso da cor que torna esta obra visualmente marcante. As tonalidades carregadas, os vermelhos ferrugem, os azuis baços e os amarelos secos conferem à narrativa uma densidade simbólica muito eficaz. As cores ajudam a situar-nos na decadência, na poeira dos tempos e no clima severo da gélida paisagem russa. Não são, por isso, cores meramente decorativas, acabando por ter uma função narrativa e reforçando emoções, atmosferas e contrastes ideológicos.

Apesar da qualidade geral da obra, mantenho alguma reserva em relação ao entusiasmo generalizado que tenho visto à sua volta. Sem dúvida, Slava #1 - Depois da Queda é bom e tem grande potencial, mas não creio que, por agora, se justifique qualquer histeria. Esta é apenas a primeira entrada de uma série de três volumes e, como tal, joga ainda com muitas cartas escondidas. Introduz personagens interessantes, sim, mas nem todas são bem desenvolvidas neste primeiro tomo. Surgem-nos várias pontas soltas que, bem tratadas, poderão fazer-nos estar diante de uma belíssima série. Mas, mal tratadas, poderão enfraquecer a obra.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Há, inclusive, certas cenas que parecem "fillers", isto é, momentos inseridos mais para dar cor ou densidade ao mundo do que para fazer a narrativa avançar de forma significativa. Isso não é necessariamente um problema, mas cria um ligeiro desequilíbrio estrutural, especialmente quando se nota que há muitos elementos deixados em suspenso.

Ainda assim, os temas lançados são promissores: o peso do passado, a crise identitária de uma geração que cresceu sob o comunismo e acordou num capitalismo selvagem, e a procura de algum sentido num mundo em ruínas. Slava é um protagonista suficientemente forte para conduzir estas questões, que podem ser muito bem exploradas nos próximos volumes.

A ambientação que nos é dada por Gomont, em que as cidades são cinzentas e plenas de ruínas monumentais e paisagens amplas, mas desoladas, reforça o sentimento constante de uma sociedade suspensa entre dois tempos. A Rússia retratada por Gomont surge-nos, pois, como um quase estado de espírito coletivo de luto, de adaptação forçada, de esperanças partidas. Nesse sentido, a obra é - ou poderá vir a ser, aguardemos pelo fim da mesma - mais do que uma simples narrativa pós-soviética, uma autêntica meditação sobre o fim de ciclos.

A edição da ASA é bem conseguida. O livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior - que casa perfeitamente com o tipo de desenho de Pierre-Henry Gomont - e boa encadernação e impressão. No início do livro, há um texto introdutório, muito interessante, do próprio autor.

Em suma, este primeiro volume do tríptico Slava é uma obra bastante apelativa em termos visuais, com uma história que começa bem, mas que ainda caminha sobre terreno instável. Pode tornar-se uma série memorável, caso os volumes seguintes desenvolvam o que aqui foi apenas sugerido. Por enquanto, é uma leitura forte e envolvente, com um pé no passado, outro no futuro e muitos dilemas no presente. Estou atento, e espero que Gomont cumpra os bons indícios que este primeiro volume acalenta.


NOTA FINAL (1/10):
8.6


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa

Ficha técnica
Slava #1 - Depois da Queda
Autor: Pierre-Henry Gomont
Editora: ASA
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 297 x 244 mm
Lançamento: Maio de 2025