quarta-feira, 16 de abril de 2025

Análise: A Trilogia Nikopol

A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir

A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir
A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal

Foi no mês passado que a editora Devir lançou a sua nova coleção dedicada a obras conceituadas da banda desenhada europeia que dá pelo nome de Coleção Angoulême. O primeiro dos volumes dessa coleção que, para já, tem oito obras anunciadas, é A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal.

Trata-se de um verdadeiro clássico da banda desenhada mundial, com muitos fãs, sendo uma das obras mais emblemáticas da banda desenhada europeia e composta por três álbuns: A Feira dos Imortais (originalmente editado em 1980), A Mulher Armadilha (1986) e Frio Equador (1992). 

Situada num futuro distópico, a trilogia acompanha a figura de Alcide Nikopol, um homem que regressa à Terra, após ter passado duas décadas congelado, e se vê a braços com um mundo devastado por regimes autoritários, guerras e influências divinas vindas do Antigo Egito. O surrealismo da narrativa é intensificado pela presença de deuses como Hórus, que interagem diretamente com os humanos, misturando mitologia com crítica política e social.

A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir
Desde o seu lançamento, a trilogia marcou um ponto de viragem na banda desenhada europeia, devido à capacidade notável de Bilal em introduzir uma estética visual profundamente singular, aliada a uma narrativa que se distancia do convencional, optando por uma abordagem mais filosófica, onírica e muitas vezes hermética. Essa fusão entre arte e literatura, entre imagem e reflexão, confere à obra uma densidade rara no meio, inspirando gerações de autores e leitores em todo o mundo.

E que bem que começa esta obra com o tomo A Feira dos Imortais que se assume como o ponto de partida mais coeso da trilogia. Aqui, o enredo é bem delineado, com personagens claras, um ritmo narrativo equilibrado e uma crítica mordaz ao totalitarismo, à decadência das sociedades modernas e à manipulação mediática. Apesar do traço de Bilal ainda não estar no auge da maturidade técnica que viria a alcançar mais tarde, a força da história sustenta o álbum de forma impressionante. Há uma urgência narrativa, um pulsar constante que cativa o leitor até à última página.

A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir
Por outro lado, nos volumes seguintes – A Mulher Armadilha e Frio Equador – nota-se uma mudança significativa na estrutura narrativa. A história torna-se mais fragmentada, mais contemplativa e menos centrada num fio condutor coeso. A densidade simbólica cresce, assim como a presença de figuras enigmáticas, identidades fluidas e espaços labirínticos. Bilal mergulha num universo mais introspectivo e alegórico, o que pode afastar parte dos leitores que, tal como eu, esperavam a continuidade do tom do primeiro volume.

Por outro lado, a evolução gráfica é notória a partir do segundo volume da série. Bilal atinge aqui um domínio técnico inquestionável: as cores sombrias, os rostos marcados pela dor e pelo tempo, os cenários opressivos e desumanizados – tudo contribui para uma atmosfera única, onde o visual se torna parte integrante da narrativa. É como se, nas últimas duas partes, o desenho começasse a falar mais alto do que o próprio texto, assumindo um papel quase de protagonista no desenrolar dos acontecimentos.

Essa dicotomia entre narrativa e estética, entre a força do enredo do primeiro álbum e o esplendor visual dos seguintes, é talvez o aspeto mais intrigante da trilogia e que me faz ter sentimentos mistos e considerá-la algo titubeante. Por um lado, temos no primeiro volume uma história envolvente e bem estruturada que padece de um estilo gráfico ainda em formação. Por outro lado, temos nos segundo e terceiro volumes dois tomos visualmente deslumbrantes, mas com uma narrativa mais difusa e excessivamente ambígua. Este contraste provoca-me um misto de admiração e frustração – como se a obra nunca conseguisse ter o melhor dos dois mundos ao mesmo tempo.

A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir
É legítimo considerar que essa mudança de tom nos capítulos seguintes possa refletir também a evolução pessoal e artística do autor. Bilal, ao longo dos anos, foi-se afastando da banda desenhada tradicional e aproximando-se das artes plásticas e do cinema. Essa metamorfose sente-se em A Mulher Armadilha e Frio Equador, onde há uma procura mais evidente pela experimentação formal e pelo discurso visual em detrimento da linearidade narrativa.

Mesmo assim, e apesar das suas imperfeições e desequilíbrios internos, A Trilogia Nikopol é uma obra maior. Revolucionou a forma como se concebe a banda desenhada, elevando-a a um patamar artístico que rivaliza com outras formas de expressão cultural, como o cinema ou a literatura. Bilal não só abriu portas para novos criadores, como redefiniu os limites do que a BD pode ser – política, filosófica, estética e provocadora.

A edição da editora Devir é, conforme já percecionado, integral, reunindo os três volumes que compõem esta minissérie. O livro é editado em capa dura, baça e bom papel baço no seu interior, apresentando um bom trabalho de impressão e encadernação. Mas é no seu formato contido, de apenas 17 por 24 cms, que tenho visto surgir o maior número de críticas, pois a obra foi originalmente editada em grande formato, sendo substancialmente maior do que a versão que agora nos chega pelas mãos da Devir. 

A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir
Ora, se compreendo que, especialmente tendo em conta a obra em questão, que tem muitas informações, de texto e detalhes no desenho que merecem ser observados com facilidade, este é um formato que não faz total justiça à obra, também tenho que relembrar uma coisa que talvez as inúmeras críticas que se têm levantado a esta edição não têm lembrado: é que esta é uma obra inserida numa coleção muito especial que, ao invés de se direcionar para o público mais habitual da banda desenhada, procura levar obras emblemáticas da banda desenhada a um público menos conhecedor. E fá-lo num formato homogéneo (todos os livros da coleção terão as mesmas dimensões), mais portátil e a um preço (mais) convidativo. Relembro ainda que não foi a Devir que imaginou esta coleção. Esta coleção, praticamente no mesmo formato, já existe em França e serve os mesmos propósitos que acabo de referir. E, aliás, se vamos comparar a edição portuguesa com a edição original francesa desta coleção, os leitores portugueses até saem beneficiados pelo simples facto da coleção portuguesa ser em capa dura e a coleção original ser em capa mole, ainda que uns milímetros maior. 

Claro que também é legítimo afirmar que a dimensão do mercado franco-belga possibilita este tipo de coleções de entrada na banda desenhada, assegurando, ao mesmo tempo, as edições em formato original para o público mais conhecedor de banda desenhada. E Portugal não tem essa dimensão. E tendo em conta que já é muito impossível de encontrar as edições que a Meribérica e a ASA fizeram desta obra, em formato substancialmente maior, é questionável a proposta da Devir.

Assim, bem vistas as coisas, percebo que os leitores habituais de banda desenhada se sintam desagradados com esta opção de formato diminuto para lançar esta obra, mas também não posso deixar de sublinhar que como a coleção não é especialmente pensada para esses mesmos "leitores habituais", talvez até faça bastante sentido o formato escolhido. A ver vamos com se comporta esta coleção em termos comerciais.

Em suma, A Trilogia Nikopol é uma obra que desafia e fascina. A sua dualidade entre forma e conteúdo, entre o início promissor da narrativa e a maturação estética posterior, provoca no leitor uma experiência rica, ainda que por vezes desconcertante. É precisamente essa complexidade, essa recusa em ser facilmente categorizada, que lhe assegura o seu lugar entre os grandes clássicos da banda desenhada.


NOTA FINAL (1/10):
9.2


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal - Devir

Ficha técnica
A Trilogia Nikopol
Autor: Enki Bilal
Editora: Devir
Páginas: 180, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cms
Lançamento: Março de 2025

Há uma exposição em Lisboa com desenhos dos animais que inspiraram as mais célebres personagens de BD!



Está patente na livraria Cult., até ao final do mês de maio, a exposição Que bicho é?, de Lúcia Antunes, que nos dá uma representação muito bela, original e bem-vinda dos animais que inspiraram icónicas personagens da banda desenhada como Milou, Rantanplan, Ideiafix, Marsupilami, Snoopy, entre muitas outros, ao retratá-los através do realismo do desenho científico. 

Posso dizer-vos que já tive a oportunidade de apreciar os desenhos, de cariz científico, de Lúcia Antunes e fiquei embasbacado com o minucioso talento da autora.

É uma exposição que vos aconselho a visitar, até porque com ela está incluída a sempre muito aconselhável visita à livraria Cult. que tem uma seleção muito boa de edições portuguesas e espanholas de banda desenhada.

Abaixo, deixo-vos com a nota informativa da exposição.


Exposição “Que bicho é? // 

A Maria João e o Manuel Jesus da Livraria Cult. desafiaram a ilustradora científica Lúcia Antunes para criar uma série de peças para fazer parte do ciclo de exposições relacionada com Banda Desenhada que têm vindo a promover.

“Que bicho é?” parte de 26 personagens animais do universo da Banda Desenhada (e outros personagens que não são bem Banda Desenhada… mas estão bem presentes na cultura popular) e aborda-as com uma perspetiva naturalista, em que se representam os animais que eventualmente as inspiraram.

Está patente na Livraria Cult. até ao final de maio e pode ser visitada durante o horário de funcionamento da livraria.







Análise: O Homem Que Queria Ser Howard Carter

O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa - Edição de Autor

O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa - Edição de Autor
O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa

Não é todos os dias que vemos bandas desenhadas a serem lançadas de modo independente, especialmente quando são trabalhos de grande fôlego e editados com um aspeto profissional. Mas foi isso que aconteceu quando, bem recentemente, este O Homem Que Queria Ser Howard Carter, do autor Rui Sousa, foi editado.

Começo até por dizer a todos os que, depois desta minha análise, tiverem interesse em adquirir este interessante livro, que o devem fazer contactando diretamente o autor através do seguinte email: ruis70@gmail.com

Rui Sousa não é propriamente inexperiente em banda desenhada, tendo lançado, no ano 2000, e ainda pela extinta editora Meribérica, o livro Pêro da Covilhã – Viagens.

O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa - Edição de Autor
O Homem que Queria Ser Howard Carter – Diário do Egito
é uma obra muito pessoal, que é fruto do amor do autor pelo Egito e que nos conduz não apenas numa viagem física ao Egito contemporâneo, mas sobretudo numa expedição introspectiva ao âmago do próprio Rui Sousa. O autor português, movido por uma paixão antiga pelas terras dos faraós, parte em busca das areias e da luz do Egito, mas rapidamente o leitor se apercebe de que essa jornada se transforma num percurso interior carregado de simbolismo, memória e reflexão.

Desde os primeiros momentos do livro, fica claro que esta não é, pois, uma narrativa de viagem tradicional. As fronteiras entre o sonho e a realidade diluem-se, criando uma atmosfera onírica onde a paisagem egípcia se funde com os estados emocionais do protagonista Horácio. O deserto, os templos, o Nilo... tudo se transforma em metáforas visuais e narrativas de um mergulho pessoal, onde até há espaço para que figuras históricas e/ou mitológicas do Egito, como Anúbis, o rei Farouk, o sultão Saladino ou o escritor Naguib Mahfouz, aqui apareçam para dialogar com o protagonista, ao longo da sua estadia. 

O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa - Edição de Autor
A escrita de Rui Sousa é um dos trunfos do livro. Trata-se de um texto maduro, poeticamente trabalhado, com frases que têm o dom de se entranhar na memória do leitor — verdadeiramente "quotable", portanto. 

Mesmo assim, e apesar das qualidades do texto introspetivo, é justo apontar um aspeto que poderia ter sido mais bem desenvolvido: o fio condutor da narrativa. Por vezes, a sucessão de episódios e reflexões parece excessivamente solta, o que pode dificultar a orientação do leitor ao longo da viagem. Uma estrutura mais clara teria beneficiado a compreensão global do percurso narrativo e temático.

Quanto às ilustrações da obra, devo dizer que me deixaram bastante agradado. Com um traço rápido e grosso, quase gestual, e com um estilo moderno na execução, as imagens captam a energia e o calor do Egito com impressionante vivacidade. A paleta de cores escolhida é rica e luminosa, com tons quentes que evocam o sol egípcio. É uma componente visual leve que acaba por criar facilmente empatia, não servindo apenas de apoio, mas dialogando ativamente com o texto.

O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa - Edição de Autor
Não obstante, e avaliando o livro do ponto de vista de objeto de arte sequencial, devo dizer que a muito constante escolha de apenas duas vinhetas por página, embora executada com competência e domínio, limita um pouco o dinamismo visual da obra, causando uma certa monotonia gráfica. Creio que uma maior diversidade na composição dos tamanhos e formas das vinhetas teria trazido um ritmo mais envolvente, favorecendo a leitura e a imersão no universo criado.

Ainda assim, não se pode negar que Rui Sousa se mostra à vontade com essa estrutura de grandes vinhetas, sabendo aproveitar o espaço de forma expressiva e explorando silêncios e atmosferas com grande eficácia. 

Outro aspeto digno de grande destaque é a qualidade da edição, que surpreende positivamente por se tratar de um projeto independente. O livro apresenta-se em capa dura baça, com um miolo impresso em papel brilhante de excelente qualidade, e uma encadernação sólida e cuidada. 

Em suma, O Homem que Queria Ser Howard Carter – Diário do Egito é uma obra singular e profundamente pessoal, que conjuga o fascínio pelo Egito antigo com uma exploração honesta e poética da identidade. Rui Sousa oferece-nos uma viagem rara, em que a paisagem e o mito se entrelaçam com as inquietações humanas mais intemporais. Tudo isto servido numa edição de autor muito competente. 


NOTA FINAL (1/10):
7.2


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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O Homem Que Queria Ser Howard Carter, de Rui Sousa - Edição de Autor

Ficha técnica
O Homem Que Queria Ser Howard Carter
Autor: Rui Sousa
Edição de Autor
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 25 x 17 cm
Lançamento: Março de 2025

Está a chegar o Coimbra BD 2025 que conta com mais de 50 autores!


Falta pouco mais de uma semana para que comece o Coimbra BD 2025, que este ano procura crescer e incrementar a sua relevância no sentido de ser um dos principais eventos de banda desenhada em Portugal!

Localizado naquelas que são - sem dúvida! - as melhores instalações para acolher um evento dedicado à banda desenhada em Portugal, posso dizer-vos que tive a oportunidade de visitar o evento no ano passado e que gostei muito do que por lá vi.

Para este ano, a Organização já fez saber quais serão as novidades para esta edição, que poderão encontrar mais abaixo, na nota de imprensa partilhada.

Destaque especial para a presença dos autores internacionais Arno Monin (co-autor de A Adopção), Gigi Cavenago (autor de Batman/Dylan Dog - A Sombra do Morcego, que a editora A Seita se prepara para lançar) e Eddy Barros (ilustrador brasileiro da DC Comics).

Dentro de outras novidades a lançar, destaco ainda o novo livro de Luís Louro, Os Filhos de Baba Yaga

As novidades El Gaucho (Hugo Pratt e Milo Manara), Blacksad #3 (Díaz Canales e Guarnido), A Sombra das Luzes #1 (Alain Ayroles e Richard Guérineau), 1629 - … ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha (Xavier Dorison e Thimothée Montaigne), Brigantus #2 - O Picto (Hermann & Yves H.), A Bela Casa do Lago #1 (James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno), Corpos (Si Spencer), Alack Sinner: Bófia ou Detetive (Muñoz e Sampayo), Menina e Moça (Carina Correia e Rita Alfaiate), Airborne 44 - Wild Men (Philippe Jarbinet), Homem de Neandertal (André Diniz), O Ditador e o Dragão de Musgo (Fabien Tillon e Fréwé), e Alguém Com Quem Falar (Grégory Panaccione) também deverão estar disponíveis para aquisição no evento.

Destaque à belíssima ilustração, de Daniel Henriques, que compõe o cartaz!

Deixo-vos ainda com as exposições que estarão patentes no Coimbra BD deste ano:


EXPOSIÇÕES



GIGI CAVENAGO: DE DYLAN DOG A BATMAN
Responsável pelas capas de diferentes séries de Dylan Dog durante sete anos, o italiano Gigi Cavenago é também o ilustrador do primeiro encontro entre Batman e o popular personagem italiano. Para além das pranchas da história que reúne o popular super-herói da DC com o mais carismático herói da BD italiana, esta exposição destaca também o trabalho de Cavenago na série Dylan Dog, como capista e como ilustrador de Mater Dolorosa, história que ocupou o mítico nº 300 da revista mensal do Detective do Pesadelo.



PATRÍCIA COSTA: CRÓNICAS DE ENERELIS
Arquitecta de formação, mas ilustradora por vocação, Patrícia Costa é a autora das Crónicas de Enerelis, uma série de mangá português de fantasia épica, prevista para doze volumes, que conta já com seis volumes publicados até à data. Verdadeiro fenómeno da auto-edição, as Crónicas de Enerelis têm com esta exposição, que assinala a estreia da sua autora no evento, o merecido destaque no Coimbra BD.



LUÍS LOURO: OS FILHOS DE BABA YAGA
Presença regular no Coimbra BD, Luís Louro regressa, no ano em que completa 40 anjos de carreira, com uma exposição dedicada ao seu mais recente trabalho, lançado no evento. Considerado por quem já o leu como o melhor trabalho de sempre de Luís Louro, Os Filhos de Baba Yaga é uma dura viagem ao coração das trevas, centrada num grupo de crianças órfãs que procuram sobreviver a qualquer preço na frente russa durante a Segunda Guerra Mundial.



OSVALDO MEDINA: FOJO
Prolífico ilustrador e animador português, Osvaldo Medina tem em Fojo aquele que é o seu mais importante trabalho a solo. Uma história de acção e mistério ambiente em Trás-os-Montes nos anos 40 do Século XX, em que uma aldeia isolada pela neve procura sobreviver à ameaça de um misterioso Serial Killer. Um drama a preto e branco cortado pelo vermelho do sangue.



ANDRÉ MATEUS E FILIPE DUARTE: E DEPOIS DE ABRIL
Esta é uma exposição que comemora a Revolução dos Cravos. Uma ficção histórica em banda desenhada colorida predominantemente e simbolicamente a preto e vermelho. Retrata um Portugal alternativo em que a revolução de 25 de Abril de 1974 falhou e a ditadura permanece até aos dias de hoje. O que se segue é uma luta feroz pela liberdade.



ARNO MONIN: A ADOPÇÃO
Desenhador francês conhecido em Portugal através da sua colaboração com o prolífico argumentista belga Zidrou, Arno Monin, cuja presença no Coimbra BD resulta de um convite conjunto da organização e da editora Ala dos Livros, mostra-nos nesta exposição o seu trabalho na série, com cores que dialogam com as histórias sensíveis e profundamente humanas de Zidrou.



ESCRITOS EM COIMBRA: OS CLÁSSICOS DA LITERATURA PORTUGUESA REVISITADOS EM BD
O que une o Amor de Perdição e Maria Moisés, de Camilo Castelo Branco, o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, a Crónica de Dom João I, de Fernão Lopes e Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro? É que todos esses clássicos da nossa literatura foram adaptados à BD por argumentistas de Coimbra para coleções da Levoir e da RTP. Esta exposição coletiva reúne as ilustrações de Miguel Jorge, Joana Afonso, Filipe Abranches e Rita Alfaiate, para as adaptações de Carina Correia, João Miguel Lameiras e João Ramalho-Santos.



DANIEL HENRIQUES: SHERLEE JOHNSON E O UNIVERSO SPAWN
Depois de décadas a trabalhar como arte-finalista para o mercado americano, Daniel Henriques afirma-se também como argumentista com The Curse of Sherlee Johnson, série ambientada no universo Spawn. Para além de Sherlee Johnson, que protagoniza o cartaz desta edição do Coimbra BD, esta exposição mostra outros momentos da colaboração de Daniel Henriques com grandes nomes dos comics, como Todd McFarlane e Frank Miller, com quem Daniel trabalhou em Ronin Rising, a inesperada sequela ao mítico Ronin.



ARCADIAN DEVILS
Desde que a magia se extinguiu, duas facções lutam para a reavivar e na floresta de Evenling nasce uma criança que pode alterar o equilíbrio do universo. Mergulha na lenda e percorre este mundo de demónios, titãs e poderosos feiticeiros.



MONSTROS DE ESTIMAÇÃO
”Solta o monstro que há em ti” foi o apelo feito, em outubro de 2024, via facebook e instagram, ao mundo da caricatura, ilustração e BD. Esta exposição é o resultado desse apelo, vários autores aceitaram o desafio e monstros. Nesta 1.ª edição dos “Monstros de Estimação - Dear Monsters”, recebemos um total de 181 inscrições de variadíssimas proveniências. O júri reuniu e escolheu os seus preferidos. Esperamos que gostem destes monstros que aqui vos apresentamos.




Coimbra BD regressa com mais de 50 autores e muitas novidades no Convento São Francisco

O Festival Coimbra BD 2025 está de regresso ao Convento São Francisco, entre os dias 25 e 27 de abril, com entrada livre e um programa com muitas novidades. Organizado pela Câmara Municipal (CM) de Coimbra, o evento vai reunir mais de 50 autores e ilustradores nacionais e internacionais, e contar com exposições, lançamentos exclusivos, workshops, sessões de cinema, jogos e muito mais. A iniciativa foi apresentada em conferência de imprensa pelo presidente da Câmara, José Manuel Silva, pelo vereador das Bibliotecas e Arquivos, Francisco Queirós, pela diretora do Departamento de Cultura e Turismo, Maria Carlos Pêgo, e pelo representante da GuessTheChoice (responsável pela produção e programação do evento), Pedro Cardoso.

Entre os nomes confirmados na edição deste ano destacam-se artistas como Daniel Henriques (autor do cartaz oficial), Luís Louro, Jorge Coelho, Pedro Chagas Freitas, Derradé, André Carrilho, Osvaldo Medina, Patrícia Costa, Margarida Madeira, Daniel Maia, Inês Fetchónaz, Ricardo Cabral, Francisco Ucha, Gigi Cavenago, Arno Monin, Eddy Barrows, entre muitos outros.

O evento vai incluir, ainda, várias exposições: “A Adopção” de Arno Monin; “De Dylan Dog a Batman” de Gigi Cavenago; “Os Filhos de Baba Yaga” de Luís Louro; “Crónicas de Enerelis” de Patrícia Costa; “Escritos em Coimbra: Os Clássicos da Literatura Revisitados em BD” de vários autores como Joana Afonso, Rita Alfaiate, Carina Correia, Filipe Abranches, Miguel Jorge, João Miguel Lameiras e João Ramalho-Santos; "E Depois do Abril" de Filipe Duarte e André Mateus; “Fojo” de Osvaldo Medina; “Sherlee Jackson e o Universo Spawn” de Daniel Henriques; “Arcadian Devils” de Fábio Powers e Jules Spaniard; e “A Banda (Desenhada) Está Passando por Aqui!”, esta última patente na Biblioteca Municipal de Coimbra.

A edição deste ano inclui uma área Artists’ Alley com mais de 60 artistas, lançamentos editoriais, sessões de autógrafos, bem como a participação de editoras como Dr. Kartoon, Ala dos Livros, A Seita, Arte de Autor, Penguin Random House, GFloy, Levoir, Asa, Bertrand, Europrice, Convergência, Presença, Devir, Sendai, Prime Books, entre outras.

O Cosplay será novamente uma das áreas em destaque, com um Concurso de Cosplay, workshops, painéis temáticos com cosplayers embaixadores e uma exposição de trajes competitivos.

O evento vai ter também uma área dedicada aos Card e Board Games, com atividades que prometem animar os visitantes, com especial destaque para a presença dos Bardos do Mondego, com demonstrações de Dungeons and Dragons e torneios de puzzles, bem como demonstrações de jogos de tabuleiro como “Azul Duel”, “Love Letter”, “MicroMacro: Crime City 3- All In”, “That’s Not a Hat 1, 2 e 3” ou “Oh My Pigeons!” trazidas pela Diver.

Na área Kids & Family não vai faltar animação com várias oficinas dedicadas aos mais novos promovidas pela Divisão de Bibliotecas e Arquivo Histórico da CM de Coimbra, lançamentos de obras infantis, pinturas e desenho e workshops. O melhor do cinema da animação também vai chegar ao festival com sessões Monstra e Monstrinha, durante o fim de semana, proporcionadas pelo conceituado Festival de Animação de Lisboa, MONSTRA, com títulos como a longa-metragem “Selvagens” ou as curtas “O Túnel da Noite”, “A Menina com os Olhos Ocupados”, “Cascos Sobre Patins”, “Para Sempre Sete”, “Ummi e Zaki” e “TPC – Trabalho de Casa”, entre outros momentos de destaque que prometem muita diversão.

O Coimbra BD 2025 vai contar, também, com uma área de Gaming com vários equipamentos que vão permitir a todos os visitantes experimentar e jogar os videojogos de maior sucesso da indústria, PC gaming, consolas e retrogaming, com os títulos mais icónicos para várias gerações e uma área dedicada ao Merchandising com produtos para todos os fãs de cultura pop.

O Coimbra BD 2025 decorre no Convento São Francisco, das 10h00 às 20h00 na sexta-feira e sábado, e das 10h00 às 18h00 no domingo. A entrada é gratuita todos os dias. A programação e produção do festival é da responsabilidade da GuessTheChoice e a organização da CM de Coimbra.

Mais informações em: instagram.com/coimbrabd

terça-feira, 15 de abril de 2025

Análise: Alguém Com Quem Falar

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione

Ainda não chegou às livrarias portuguesas - embora já se encontre em pré-venda no site da editora ASA há alguns dias -, mas já tive a oportunidade de lê-lo! Falo de Alguém com Quem Falar, do autor francês Grégory Panaccione, o mesmo ilustrador do indispensável Um Oceano de Amor, também publicado este ano pela editora ASA.

Desta feita, temos uma obra que adapta para banda desenhada o romance original homónimo de Cyril Massarotto e que tem como protagonista a personagem de Samuel, um homem de meia idade que vive a sua vida de forma solitária, tendo um emprego de que não gosta, um patrão que não suporta e apenas um casal de idosos vizinhos como os seus únicos amigos.

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Por alturas de mais um aniversário passado em solidão, Samuel embebeda-se de forma a encarar o tédio e a carência afetiva que o habita, e decide ligar para o único número de telefone que ainda retém na sua memória: o da casa onde passou a sua infância. Para seu espanto, quem lhe atende a chamada é um jovem rapaz de 10 anos, com o mesmo nome. A conversa vai fluindo até que Samuel se dá conta que o rapaz com quem está a falar é, na verdade, ele mesmo quando tinha 10 anos. Primeiramente, o protagonista revela-se perplexo mas, paulatinamente, vai sentindo uma necessidade constante de falar consigo mesmo, numa versão mais jovem.

Dito assim, pode parecer um artifício narrativo algo rebuscado e dado à fantasia, mas na verdade, é uma forma de, em sentido figurado, claro, colocar a personagem a falar com o seu eu jovem, o seu eu propenso a sonhos, a vontades e a positividade. O exato oposto do que se tornou a vida de Samuel. E o que é mais interessante é que o "Samuel criança" revela-se profundamente desiludido com o "Samuel adulto", pois, com a passagem dos anos, este tornou-se num homem solitário, sem ninguém com quem partilhar a vida, que mal tentou seguir os seus sonhos, como jogar futebol ou escrever um livro, e, por oposição, se arrasta num emprego que o deixa infeliz e sem qualquer autoestima.

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Será que todos nós, pelo menos em algum momento das nossas vidas, não desejámos falar com o nosso eu criança? Perguntar-lhe se ele estava satisfeito com a pessoa em que nos havíamos tornado? Será que nunca achámos que a nossa vida derivou muito dos sonhos ingénuos e imberbes que tínhamos durante os tempos da nossa infância?

Esta é uma obra que surpreende pelo equilíbrio delicado entre a profundidade emocional dos temas que aborda e a leveza narrativa. Desde as primeiras páginas, sentimos que estamos diante de algo especial: uma história simples à primeira vista, mas que ressoa com uma força inesperada. 

Um dos grandes méritos da obra é a forma como trata um tema tão denso - o vazio existencial, a solidão, a perda dos sonhos de juventude - com um tom que nunca se torna pesado. Pelo contrário, há sempre uma ponta de humor, de ironia leve, que torna a leitura fluída e até prazerosa, mesmo nos momentos mais melancólicos. Isso contribui para tornar o livro uma excelente porta de entrada para quem quer começar a ler banda desenhada, sem se sentir sobrecarregado.

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
O humor subtil que permeia a narrativa é, portanto, outro dos trunfos de Alguém com Quem Falar. Surge nos momentos certos, como uma válvula de escape, como um lembrete de que a vida, apesar de tudo, continua a ter graça. Esse equilíbrio entre drama e leveza é difícil de alcançar, mas Panaccione fá-lo com uma naturalidade impressionante.

Ao longo da leitura, é natural sentirmos empatia pelas personagens. Não apenas por Samuel na sua versão adulta, mas também pelos amigos idosos do protagonista, pelo Samuel jovem e, claro, pela bela Li-Na, a rapariga nova do escritório que vai mudar a vida de Samuel. 

A forma como a história é contada permite ao leitor refletir sobre si mesmo. Não há aqui grandes reviravoltas - bem, talvez haja uma reviravolta que poderá surpreender alguns leitores mais incautos - nem eventos extraordinários. O que há é "a vida", com as suas rotinas, desilusões e pequenos gestos de reconciliação com o próprio e com os outros. É uma história que nos obriga a parar e a pensar no que deixámos para trás, nos sonhos que enterrámos com o tempo. Será altura de os resgatarmos enquanto é tempo?

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Admito que havia um vasto potencial de opções narrativas com a possibilidade de colocar em contacto direto o "Samuel adulto" com o "Samuel criança" e que o autor - possivelmente em consonância com a obra original - optou por não aproveitar. Especialmente ao nível de como poderia o "Samuel adulto" ajudar o "Samuel criança" a lidar com os problemas inerentes à sua idade e ao seu crescimento, tendo em conta que já os tinha superado. Não obstante, é válido e bem conseguido o caminho narrativo escolhido pelo autor e estas questões que levanto talvez tornassem a obra densa de mais ou menos focada na ideia principal.

Em termos de desenho, Panaccione oferece-nos mais uma obra bastante bela. Não me conquistou tanto como em Um Oceano de Amor, mas, ainda assim, conquistou-me. O seu traço é simples, mas notavelmente expressivo. As expressões faciais exageradas, quase "cartoonescas" por vezes, ajudam a amplificar os sentimentos das personagens de maneira imediata. Esta abordagem especialmente expressiva, por vezes exacerbada num tom quase caricatural, não é um mero capricho estético - é um recurso narrativo inteligente, que dá voz às emoções das personagens de forma imediata e acessível. Cada rosto, cada gesto carrega uma intenção clara, uma emoção palpável. O que é impressionante!

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Os desenhos brilham especialmente nos momentos em que os dois "Samuéis" se cruzam em diálogos que ocorrem em verdejantes paisagens. Há um ritmo visual muito bem conseguido, com o uso eficaz de silêncios, planos largos e enquadramentos que contam mais do que aquilo que as palavras poderiam dizer. É (mais) um exemplo de como a linguagem da banda desenhada pode ser tão ou mais rica do que a prosa tradicional!

A edição da ASA é em capa mole com badanas e com o miolo a apresentar bom papel baço e um bom trabalho a nível de impressão e encadernação. Mais uma vez, refiro que, tal como em Um Oceano de Amor, considero que se justificava uma edição em capa dura. Mesmo assim, tenho que admitir que é uma opinião muito pessoal - também há argumentos válidos para a opção pela capa mole - e que, apesar de tudo, estamos perante uma edição decente que não faz desmerecer a obra pela opção tomada.

Em suma, Alguém Com Quem Falar é uma celebração da humanidade falível, com todas as suas dúvidas e redescobertas. É uma obra que reúne qualidades narrativas, visuais e emocionais que a tornam acessível, profunda e inesquecível. É o tipo de livro que não se lê apenas, mas que se vive — e que, por isso, recomendo vivamente a quem esteja a começar a explorar o mundo da BD, ou a qualquer leitor que valorize histórias humanas contadas com sensibilidade e inteligência. Talvez porque, no fundo, todos procuramos "alguém com quem falar", alguém que nos ouça sem julgar, que nos ajude a ver com outros olhos aquilo que nos parece ser um caminho sem saída. E essa mensagem é passada neste Alguém Com Quem Falar com uma candura que fica connosco muito depois de fecharmos o livro.


NOTA FINAL (1/10):
9.6




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA

Ficha técnica
Alguém Com Quem Falar
Autor: Grégory Panaccione
Editora: ASA
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 268 x 205 mm
Lançamento: Abril de 2025

"Os Filhos de Baba Yaga", o novo livro de Luís Louro, está quase a chegar!


A espera está a chegar, finalmente, ao fim! A Seita e a Arte de Autor preparam-se para lançar o novo livro de Luís Louro!

Intitula-se Os Filhos de Baba Yaga e é um dos lançamentos do ano, estou certo! Posso, aliás, dizer-vos que já tive oportunidade de ver todas as páginas deste novo livro do autor nacional e que fiquei embasbacado perante a qualidade do seu trabalho.

A história, ambientada durante a Segunda Guerra Mundial, promete ser dura e impactante, com um conjunto de personagens que vão deixar marca nos leitores.

O livro terá lançamento no festival de banda desenhada Coimbra BD, no próximo dia 26 de abril, pelas 15h30, pelas mãos das editoras A Seita e Arte de Autor, que juntam esforços para lançar o álbum. 

Nota para o facto do autor justificar a criação de uma chancela que lhe é exclusivamente dedicada, denominada Folha de Louro, o que pode significar o lançamento de mais álbuns da sua autoria. Para além, claro, da série O Corvinho.

Chamo ainda a vossa atenção para a existência de uma edição exclusiva da loja Wook, que contém uma capa alternativa e que vem acompanhado por um ex-libris autografado pelo autor. 

O livro já se encontra em pré-venda nos respetivos sites das editoras A Seita e Arte de Autor.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.
Os Filhos de Baba Yaga, de Luís Louro

Até onde podemos ir, quando a nossa sobrevivência está em causa?

Estamos na Segunda Guerra Mundial, algures na frente russa, no meio das florestas percorridas por tropas alemãs e soviéticas e marteladas pelo estrondo constante da artilharia e o roncar dos motores dos tanques... onze crianças órfãs juntam-se por necessidade, empurradas pelas circunstâncias, e terão de fazer tudo para sobreviver à guerra, às rivalidades e traições, e ao General Inverno.

Até onde poderemos ir quando temos fome?

Uma novela gráfica muito dura, de grande fôlego, que mostra como a fome consegue quebrar as fronteiras morais, mesmo entre crianças.

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Ficha técnica
Os Filhos de Baba Yaga
Autor: Luís Louro
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 132, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 230 x 310 mm
PVP: 32,00€

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Análise: Ar-Men - O Inferno dos Infernos

Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros

Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros
Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage

Ar-Men – O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage, é a segunda obra que a Ala dos Livros edita em 2025. Depois do magnífico O Fogo, de David Rubín, a editora estreia-se na edição do trabalho de Emmanuel Lepage, um nome muito respeitado da banda desenhada europeia, de quem a ASA havia lançado, em 2006, o díptico Muchacho.

E depois de finalizada a leitura deste Ar-Men, uma coisa se torna por demais evidente: eis-nos perante uma obra gráfica de rara beleza, onde a força narrativa se funde com um trabalho visual deslumbrante. A característica mais impressionante deste livro é, pois, e sem dúvida, a qualidade fantástica das ilustrações, que ultrapassam a simples função de acompanhar o texto e se impõem como verdadeiras obras de arte. As páginas parecem frescos pintados com esmero, onde cada detalhe convida o leitor a deter-se, a observar lentamente as texturas, os jogos de luz e sombra, e a expressividade quase tátil das cenas.

Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros
As ilustrações não são meramente descritivas, mas carregadas de simbolismo, emoção e atmosfera. Lepage trabalha com uma paleta cromática rica, onde o cinzento das tempestades, o azul profundo do oceano e os tons quentes dos momentos interiores se entrelaçam para criar uma ambiência poderosa. O mar, personagem silencioso mas constante, é retratado com tal intensidade que quase se sente o salpicar da água e o rugir do vento nestes maravilhosos desenhos. E o farol, centro físico e metafórico da narrativa, é ilustrado com uma imponência que impõe respeito, como uma entidade viva. Tudo é belo neste livro. Mesmo que não houvesse história, que não houvesse qualquer texto, este já seria um livro apetecível para observar!

Mas, claro, há história. E a mesma é sobre o farol Ar-Men, um dos mais famosos do mundo devido a ser dos mais expostos e de mais difícil acesso, não só da Bretanha, como de todo o mundo. Aqui o mar não faz concessões de tempo ameno e a bonança parece sempre chegar tarde. Por esse motivo, a  funcionalidade deste farol, a de guiar os inúmeros barcos que por ali passam, também é de extrema relevância.

Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros
A obra mergulha na personagem de Germain, um dos faroleiros que assegura o normal funcionamento do farol. É uma história de retalhos, de vislumbre, com vários elementos oníricos, e especialmente contemplativa. Mas não é este o único fio narrativo da obra. Na verdade, estamos perante três narrativas que se encaixam - não de uma forma tão airosa assim, lamento referir, mas já lá irei - umas nas outras: 1) a narrativa principal, já referida, da vida de Germain; 2) a narrativa que nos leva ao passado, quando, através da personagem de Moizez, acompanhamos o longo e penoso processo de construção do farol; e 3) uma terceira narrativa que é uma história dentro de outra história, que Germain conta à sua filha e que nos leva até à mitologia da cidade lendária de Ys. 

Voltando à primeira linha narrativa, a de Germain, acompanhamos o isolamento e os desafios do quotidiano que implica ser faroleiro em Ar-Men. A personagem acaba por se sentir num misto de prisão física e mental, que a leva a congeminar ideias com o passado e a mergulhar num sentimento de perda que habita a sua existência. É um bom tema que talvez até merecesse ser mais desenvolvido pelo autor.

Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros
A segunda vertente da narrativa é histórica e mais informativa, surgindo na forma de flashbacks que contam a construção do farol e os sacrifícios feitos por aqueles que ousaram desafiar o mar para erguer esta sentinela de pedra. A dureza da vida dos construtores, a violência das tempestades e os muitos naufrágios que ali aconteceram conferem um peso trágico à história do lugar. Lepage mostra-nos como Ar-Men é mais do que um ponto geográfico: é um monumento à resistência humana face às forças incontroláveis da natureza. Apreciei especialmente esta segunda vertente da história.

A terceira dimensão é quase mitológica e simbólica, e diz respeito às lendas, com base na história da cidade de Ys, do rei Gradlon e da princesa Dahut. Há um lado onírico e introspectivo nesta camada narrativa, onde se cruzam os fantasmas do passado do protagonista e as histórias contadas por marinheiros. Esta valência procura dar à narrativa (mais) um tom poético e filosófico, mas que era totalmente dispensável. Sou-vos sincero: se o livro não é mais impactante do que aquilo que é, isso deve-se a esta certa "esquizofrenia" no argumento que torna o livro menos coeso do que aquilo que poderia ser. A questão da lenda da cidade de Ys não é mais do que um engodo rebuscado para que o autor nos dê um outro tipo de ilustrações (que também são belas, lá isso é verdade) face às constantes nas outras duas narrativas. E é certo que o autor tenta justificar este "stunt" narrativo, à boa maneira do filme Inception, de Chris Nolan, com o facto de ser uma história dentro de uma história. Mas, pelo menos quanto a mim, não funcionou propriamente bem. Valia mais que o autor se ficasse pelas duas histórias passadas no farol, que dariam uma perspetiva de presente e passado. Digo eu. Dei por mim a desejar que esta parte dedicada à cidade de Ys terminasse depressa aquando da minha leitura. O que é raro acontecer-me enquanto leitor.

Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros
E é pena porque, tal como já disse, estávamos a caminhar para que se reunissem as condições de estarmos perante um livro perfeito na conceção, que se poderia ler tanto com os olhos como com a alma. 

Mesmo assim, reitero que há tanta coisa bela neste livro! O texto, embora contido, é denso de significado e pontuado por momentos de silêncio visual que dizem tanto quanto as palavras. Há passagens inteiras onde as imagens bastam, e onde o leitor é levado a mergulhar no ritmo próprio das ondas e dos pensamentos.

Apesar da densidade das temáticas — a morte, o isolamento, o confronto com a natureza, a loucura, a perda —, há uma beleza serena na forma como Lepage conduz a narrativa. A compaixão pelo ser humano, a admiração pela força da natureza e o fascínio pela história estão presentes em cada traço. É uma leitura que convida à contemplação e que ressoa emocionalmente muito depois da última página.

A edição da Ala dos Livros é belíssima, mais uma vez. Com um formato bem grande - semelhante ao de O Burlão nas Índias, Pocahontas ou O Inferno de Dante - este é um livro de grandes dimensões, que nos enche os braços... e os olhos. E por tudo o que já referi sobre a beleza contemplativa encontrada nos desenhos do autor, parece-me que a opção por este grande formato em Ar-Men é mais do que bem-vinda. O livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz e uma bela lombada em tecido que aumentam ainda mais o requinte da edição. No miolo, o papel é brilhante e de excelente qualidade, enquanto a impressão e encadernação também são muito boas.

Em suma, Ar-Men não sendo perfeito devido àquilo que aparenta ser um capricho narrativo do autor, é um daqueles livros que além de ser lido, também deve ser observado, sentido e, acima de tudo, contemplado. As suas imagens têm o poder de ficar na memória como as grandes pinturas, aquelas que nos comovem sem necessidade de palavras. É uma obra para se voltar a ela, como se volta a um farol na escuridão.


NOTA FINAL (1/10):
8.8



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ar-Men - O Inferno dos Infernos, de Emmanuel Lepage - Ala dos Livros

Ficha técnica
Ar-Men - O Inferno dos Infernos
Autor: Emmanuel Lepage
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 250 x 340 mm
PVP: 27,50€