Foi no mês passado que a editora Devir lançou a sua nova coleção dedicada a obras conceituadas da banda desenhada europeia que dá pelo nome de Coleção Angoulême. O primeiro dos volumes dessa coleção que, para já, tem oito obras anunciadas, é A Trilogia Nikopol, de Enki Bilal.
Trata-se de um verdadeiro clássico da banda desenhada mundial, com muitos fãs, sendo uma das obras mais emblemáticas da banda desenhada europeia e composta por três álbuns: A Feira dos Imortais (originalmente editado em 1980), A Mulher Armadilha (1986) e Frio Equador (1992).
Situada num futuro distópico, a trilogia acompanha a figura de Alcide Nikopol, um homem que regressa à Terra, após ter passado duas décadas congelado, e se vê a braços com um mundo devastado por regimes autoritários, guerras e influências divinas vindas do Antigo Egito. O surrealismo da narrativa é intensificado pela presença de deuses como Hórus, que interagem diretamente com os humanos, misturando mitologia com crítica política e social.
Desde o seu lançamento, a trilogia marcou um ponto de viragem na banda desenhada europeia, devido à capacidade notável de Bilal em introduzir uma estética visual profundamente singular, aliada a uma narrativa que se distancia do convencional, optando por uma abordagem mais filosófica, onírica e muitas vezes hermética. Essa fusão entre arte e literatura, entre imagem e reflexão, confere à obra uma densidade rara no meio, inspirando gerações de autores e leitores em todo o mundo.
E que bem que começa esta obra com o tomo A Feira dos Imortais que se assume como o ponto de partida mais coeso da trilogia. Aqui, o enredo é bem delineado, com personagens claras, um ritmo narrativo equilibrado e uma crítica mordaz ao totalitarismo, à decadência das sociedades modernas e à manipulação mediática. Apesar do traço de Bilal ainda não estar no auge da maturidade técnica que viria a alcançar mais tarde, a força da história sustenta o álbum de forma impressionante. Há uma urgência narrativa, um pulsar constante que cativa o leitor até à última página.
Por outro lado, nos volumes seguintes – A Mulher Armadilha e Frio Equador – nota-se uma mudança significativa na estrutura narrativa. A história torna-se mais fragmentada, mais contemplativa e menos centrada num fio condutor coeso. A densidade simbólica cresce, assim como a presença de figuras enigmáticas, identidades fluidas e espaços labirínticos. Bilal mergulha num universo mais introspectivo e alegórico, o que pode afastar parte dos leitores que, tal como eu, esperavam a continuidade do tom do primeiro volume.
Por outro lado, a evolução gráfica é notória a partir do segundo volume da série. Bilal atinge aqui um domínio técnico inquestionável: as cores sombrias, os rostos marcados pela dor e pelo tempo, os cenários opressivos e desumanizados – tudo contribui para uma atmosfera única, onde o visual se torna parte integrante da narrativa. É como se, nas últimas duas partes, o desenho começasse a falar mais alto do que o próprio texto, assumindo um papel quase de protagonista no desenrolar dos acontecimentos.
Essa dicotomia entre narrativa e estética, entre a força do enredo do primeiro álbum e o esplendor visual dos seguintes, é talvez o aspeto mais intrigante da trilogia e que me faz ter sentimentos mistos e considerá-la algo titubeante. Por um lado, temos no primeiro volume uma história envolvente e bem estruturada que padece de um estilo gráfico ainda em formação. Por outro lado, temos nos segundo e terceiro volumes dois tomos visualmente deslumbrantes, mas com uma narrativa mais difusa e excessivamente ambígua. Este contraste provoca-me um misto de admiração e frustração – como se a obra nunca conseguisse ter o melhor dos dois mundos ao mesmo tempo.
É legítimo considerar que essa mudança de tom nos capítulos seguintes possa refletir também a evolução pessoal e artística do autor. Bilal, ao longo dos anos, foi-se afastando da banda desenhada tradicional e aproximando-se das artes plásticas e do cinema. Essa metamorfose sente-se em A Mulher Armadilha e Frio Equador, onde há uma procura mais evidente pela experimentação formal e pelo discurso visual em detrimento da linearidade narrativa.
Mesmo assim, e apesar das suas imperfeições e desequilíbrios internos, A Trilogia Nikopol é uma obra maior. Revolucionou a forma como se concebe a banda desenhada, elevando-a a um patamar artístico que rivaliza com outras formas de expressão cultural, como o cinema ou a literatura. Bilal não só abriu portas para novos criadores, como redefiniu os limites do que a BD pode ser – política, filosófica, estética e provocadora.
A edição da editora Devir é, conforme já percecionado, integral, reunindo os três volumes que compõem esta minissérie. O livro é editado em capa dura, baça e bom papel baço no seu interior, apresentando um bom trabalho de impressão e encadernação. Mas é no seu formato contido, de apenas 17 por 24 cms, que tenho visto surgir o maior número de críticas, pois a obra foi originalmente editada em grande formato, sendo substancialmente maior do que a versão que agora nos chega pelas mãos da Devir.
Ora, se compreendo que, especialmente tendo em conta a obra em questão, que tem muitas informações, de texto e detalhes no desenho que merecem ser observados com facilidade, este é um formato que não faz total justiça à obra, também tenho que relembrar uma coisa que talvez as inúmeras críticas que se têm levantado a esta edição não têm lembrado: é que esta é uma obra inserida numa coleção muito especial que, ao invés de se direcionar para o público mais habitual da banda desenhada, procura levar obras emblemáticas da banda desenhada a um público menos conhecedor. E fá-lo num formato homogéneo (todos os livros da coleção terão as mesmas dimensões), mais portátil e a um preço (mais) convidativo. Relembro ainda que não foi a Devir que imaginou esta coleção. Esta coleção, praticamente no mesmo formato, já existe em França e serve os mesmos propósitos que acabo de referir. E, aliás, se vamos comparar a edição portuguesa com a edição original francesa desta coleção, os leitores portugueses até saem beneficiados pelo simples facto da coleção portuguesa ser em capa dura e a coleção original ser em capa mole, ainda que uns milímetros maior.
Claro que também é legítimo afirmar que a dimensão do mercado franco-belga possibilita este tipo de coleções de entrada na banda desenhada, assegurando, ao mesmo tempo, as edições em formato original para o público mais conhecedor de banda desenhada. E Portugal não tem essa dimensão. E tendo em conta que já é muito impossível de encontrar as edições que a Meribérica e a ASA fizeram desta obra, em formato substancialmente maior, é questionável a proposta da Devir.
Assim, bem vistas as coisas, percebo que os leitores habituais de banda desenhada se sintam desagradados com esta opção de formato diminuto para lançar esta obra, mas também não posso deixar de sublinhar que como a coleção não é especialmente pensada para esses mesmos "leitores habituais", talvez até faça bastante sentido o formato escolhido. A ver vamos com se comporta esta coleção em termos comerciais.
Em suma, A Trilogia Nikopol é uma obra que desafia e fascina. A sua dualidade entre forma e conteúdo, entre o início promissor da narrativa e a maturação estética posterior, provoca no leitor uma experiência rica, ainda que por vezes desconcertante. É precisamente essa complexidade, essa recusa em ser facilmente categorizada, que lhe assegura o seu lugar entre os grandes clássicos da banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020