quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Entrevista a Vasco Colombo: "Em Portugal não sabemos vender muito bem as coisas. E isso é transversal: seja a nível editorial, seja a nível da moda, seja a nível industrial, seja a nível de tudo."



Hoje trago-vos uma entrevista que tive a oportunidade e privilégio de fazer ao autor português Vasco Colombo, a propósito do seu recente livro O Cabo de 2.102.400 Km que está inserido na coleção 25 Imagens que a Levoir editou nos últimos meses com o jornal Público.

Posso dizer-vos que gostei muito de conversar com Vasco Colombo, alguém que se revelou muito generoso, acessível e simpático, bem como gostei da sua visão muito própria de olhar para o universo da banda desenhada.

Como tal, convido-vos, sem mais demoras, a mergulharem nesta interessante entrevista.

Análise: O Meu Amigo Kim Jong-Un

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
O Meu Amigo Kim Jong-Un, de Keum Suk Gendry-Kim

A Iguana editou há algumas semanas o mais recente trabalho da autora coreana Keum Suk Gendry-Kim, intitulado O Meu Amigo Kim Jong-Un, que se apresenta como uma incursão documental e gráfica sobre a figura controversa do líder norte-coreano Kim Jong-Un. A autora - cujas obras Erva, A Espera, A Árvore Despida, e Alexandra Kim, Filha da Sibéria já por cá foram editadas (e aqui analisadas) - volta a explorar as feridas da península coreana, mas agora com um enfoque mais direto na biografia e no simbolismo político de Kim Jong-Un. 

O ponto de partida é ambicioso: compreender que tipo de homem se esconde por detrás do ditador, e, através dessa compreensão, lançar uma reflexão mais ampla sobre o poder, a manipulação e o destino dividido das Coreias. Algo que, de um ponto de vista diferente, embora igualmente interessante, também podemos analisar na obra O Ditador e o Dragão de Musgo, de Fabien Tillon e Fréwé, editado recentemente pela ASA. 

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
A narrativa deste O Meu Amigo Kim Jong-Un combina entrevistas, testemunhos e reflexões pessoais da autora, num formato que oscila entre o jornalismo gráfico e a memória subjetiva de algumas personalidades com que a autora se cruzou. Keum Suk Gendry-Kim entrevistou figuras muito distintas, desde jornalistas e amigos de infância de Kim Jong-Un, até desertores e o próprio ex-presidente sul-coreano Moon Jae-In. Essa variedade de vozes confere amplitude ao relato, permitindo perceber as múltiplas camadas que compõem a perceção do regime norte-coreano e de uma forma que procura não ser demasiadamente panfletária, mostrando - ou tentando mostrar - os dois lados da questão. 

No entanto, essa multiplicidade narrativa também é a origem de uma das maiores fragilidades do livro: a ausência de um fio narrativo unificador. De facto, O Meu Amigo Kim Jong-Un dá frequentemente a sensação de ser um livro de fragmentos. Cada capítulo apresenta um tema ou testemunho interessante, mas a ligação entre eles é, por vezes, ténue ou mesmo inexistente. A autora opta por uma estrutura quase episódica, que resulta numa leitura desigual: ora fascinante, ora dispersa. Por exemplo, a incrível história de Pepino, a criança levada clandestinamente para a Colômbia na mochila de um soldado - que, quanto a mim, merecia, por si só, um livro sobre o assunto - é um dos momentos mais cativantes da obra, carregado de emoção e simbolismo. Contudo, surge e desaparece sem grande continuidade, meio perdido neste livro fragmentado.

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Em contraste, a longa entrevista com Moon Jae-In quebra o ritmo e o interesse narrativo. A conversa, ainda que politicamente relevante, é apresentada de forma excessivamente literal e sem a densidade emocional que caracteriza os melhores trabalhos de Keum Suk Gendry-Kim. Falta-lhe dinamismo e a leitura torna-se, em certos momentos, monótona, parecendo mais próxima de uma transcrição jornalística do que de uma obra literária ou artística. Esse contraste entre capítulos vibrantes e outros mais áridos reforça a sensação de irregularidade nesta obra.

Além disso, a autora introduz também reflexões sobre a sua própria vida conjugal e a experiência de viver entre a Coreia e a Europa. E embora estas passagens tragam alguma humanidade e proximidade ao relato, acabam por parecer algo forçadas, levando, novamente, a uma quebra com o foco principal da obra. O leitor é constantemente deslocado entre o retrato do ditador, as recordações pessoais e as entrevistas, sem que exista uma linha emocional ou conceptual forte que una tudo.

Outro aspeto que distingue O Meu Amigo Kim Jong-Un das obras anteriores da autora é a sua componente visual. Mas, neste caso, pelas melhores razões. Aqui, Keum Suk Gendry-Kim revela um domínio gráfico mais leve e equilibrado. O uso da cor é uma clara evolução face ao negro dominante e pesado das já supramencionadas obras da autora editadas previamente em Portugal. Neste caso, as páginas respiram melhor, as figuras ganham expressividade e a leitura torna-se visualmente mais acessível. É um livro mais luminoso, mesmo tratando temas sombrios, o que demonstra um amadurecimento estético evidente da autora.

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Visualmente, portanto, este é talvez o trabalho mais apelativo da autora. A cor é usada não apenas como elemento decorativo, mas também como ferramenta narrativa: distingue tempos, espaços e emoções com subtileza. As composições de página são mais abertas, o traço mais livre e a disposição gráfica convida o leitor a permanecer em cada vinheta. Continua fiel àquilo que já conhecemos da autora, claro, mas aqui o desenho ganha mais protagonismo, tornando-se a principal força de coesão num livro que, narrativamente, e conforme já referi, nem sempre encontra o seu equilíbrio.

Mas, claro, apesar das fragilidades narrativas, o livro mantém o valor de ser um testemunho gráfico de um tema de relevância mundial. A tentativa de compreender Kim Jong-Un não através do sensacionalismo, mas de uma abordagem humana e contextual, é louvável. Keum Suk Gendry-Kim não procura justificar o ditador, mas entender as condições que o moldaram, e, ao fazê-lo, recorda-nos que a história da Coreia continua a ser uma história de feridas abertas e de divisões que persistem no imaginário coletivo.

A edição da Iguana é, tal como em Erva ou A Espera, em capa mole, brilhante, com badanas. No interior, encontramos bom papel baço e uma boa impressão e encadernação. A edição inclui ainda um posfácio da autora.

Em suma, O Meu Amigo Kim Jong-Un é uma obra ambiciosa, visualmente refinada, mas narrativamente irregular. Falta-lhe a coesão e o impacto emocional de outras obras da autora. Ainda assim, é um livro importante dentro da trajetória de Keum Suk Gendry-Kim. É uma leitura que, mais do que esclarecer quem é Kim Jong-Un, nos confronta com as complexidades da Coreia contemporânea e com o desafio permanente de compreender o outro lado. E, no fim, o que permanece é a “mensagem de urgência pela paz” que a autora explicitamente reivindica.


NOTA FINAL (1/10):
6.9



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O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
O Meu Amigo Kim Jong-un
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Iguana
Páginas: 288, a cores
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Setembro de 2025

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Análise: Impenetrável

Impenetrável, de Alix Garin - ASA

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Impenetrável, de Alix Garin

Foi no passado mês de Setembro que a editora ASA nos fez chegar a segunda obra da autora belga Alix Garin, de quem a mesma editora já por cá tinha editado o belíssimo Não Me Esqueças, que acabou mesmo por vencer o VINHETA D'OURO para a categoria de Melhor Álbum Estrangeiro em 2023.

Eram, portanto, muitas as minhas expectativas para este segundo trabalho da autora, intitulado Impenetrável. Estive recentemente no Museu da Banda Desenhada em Bruxelas, o que me deu a oportunidade de conhecer um pouco mais a fundo a feitura deste trabalho de grande fôlego da autora, que conta com mais de 300 páginas.

E é nessas três centenas de páginas que mergulhamos numa obra profundamente pessoal e autobiográfica, na qual Alix Garin relata, sem filtros, a sua experiência pessoal com o vaginismo que a afetou durante dois anos. Para quem não sabe - e acredito que hoje em dia ainda seja muita gente - o vaginismo é uma disfunção sexual que, devido a causar dores insuportáveis, impede que as mulheres consigam tolerar a penetração. A narrativa centra-se, pois, na reconquista do seu corpo e do seu desejo, por parte de Alix Garin, e mostra como a dor física se pode transformar em sofrimento emocional e psicológico. Imagino que seja um tema muito complexo e frustrante para, em primeiríssima instância, as mulheres, claro, mas também para os seus parceiros sexuais, já que um problema do foro sexual é sempre algo que afeta não uma, mas - pelo menos - duas pessoas. A autora conduz-nos por uma viagem íntima, na qual cada passo da sua recuperação é permeado por vulnerabilidade, coragem e reflexão sobre normas sociais, expectativas e relações afetivas.

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Afirmo que a auto-biografia íntima e sexual em banda desenhada parece ser uma tendência mais frequente no meio, pois recordo que ainda ontem vos falei sobre Extases, de JeanLouis Tripp, onde, relembro, nos é mostrada, através de um relato autobiográfico, a forma como o autor viveu/vive a sua vida sexual.

Agora, eis-nos novamente perante uma nova autobiografia em banda desenhada onde somos convidados a conhecer a vida sexual de Alix Garin.

Vida sexual essa que, como podem imaginar, praticamente não existiu durante um longo período de três anos já que, embora Alix tivesse um namorado, Lucas, a sua vida sexual estava congelada, em stand by, devido a esta disfunção denominada vaginismo. Embora, à época, a autora nem tivesse um nome, uma palavra, para aquilo do qual padecia.

Obviamente, a dificuldade de manter relações sexuais provocou-lhe frustração, culpa e isolamento, o que também expõe facilmente o peso que a sociedade atribui à sexualidade feminina e à necessidade de corresponder a certos padrões. Bem, diria que neste barco, as mulheres não estão sós. Embora de forma diferente, também a sexualidade masculina está carregada de expectativas e de uma necessidade de acompanhar os padrões ditos "sãos" e "normais". 

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Este percurso de descoberta e recuperação de Alix Garin não é linear, mas é narrado com uma honestidade desarmante que cria empatia imediata no leitor. Pelo menos na primeira parte da obra.

Isto porque, mais ao menos a meio do livro, o vaginismo dá lugar à necessidade de Alix se libertar de certas amarras que a prendiam à relação com Lucas. Deste modo, o livro também explora o lado mais amplo das relações humanas e do desejo, não se limitando ao distúrbio físico, mas questionando também como nos relacionamos com o outro, com o amor e com nós próprios. A autora apresenta a tensão entre dependência emocional e autonomia, mostrando que a cura não passa apenas pelo corpo, mas também pelo entendimento e aceitação de limites, desejos e expectativas.

Alix Garin expõe-se de forma arrojada, oferecendo um relato detalhado da sua vida íntima e da forma como o vaginismo tornou a sua intimidade sexual impossível. A dor física, aliada ao peso da culpa e das expectativas sociais, criou em si uma sensação de impotência e frustração que é explorada neste Impenetrável de maneira sensível e crua. 

O tema do vaginismo é especialmente relevante e bem-vindo, diria, pois é pouco discutido, ainda mais em banda desenhada. Impenetrável é bem capaz de ser, salvo erro, a primeira obra de grande fôlego de banda desenhada a abordar o tema, tornando visível um distúrbio que afeta muitas mulheres e sobre o qual há pouco conhecimento público e, também, contribuindo para a desmistificação do assunto, ao mesmo tempo que procura oferecer um recurso valioso para quem procura compreensão ou identificação com o tema.

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Até porque, e isso é outra das conclusões que podemos aferir aquando da leitura da obra, o livro revela como, em termos médico-clínicos, muitas vezes a própria classe profissional não está preparada para lidar com distúrbios pouco comentados, como disso é exemplo o vaginismo. Talvez por isso se tenha tornado tão difícil a Alix Garin ter encontrado uma voz profissional que a pudesse ajudar e guiar para uma crua tão eficiente quanto possível face a este distúrbio. Mesmo assim, convenhamos que com ou sem apoio externo, o caminho de autodescoberta e autoajuda é sempre essencial. 

Narrativamente, a obra é rica e complexa. Alix Garin consegue equilibrar momentos de introspeção, humor e conflito emocional, mantendo o leitor atento à evolução da história. É um daqueles livros que, embora tenha 300 páginas, se lê muito depressa, pois queremos saber aonde nos leva o percurso da autora. 

A transição do tema do vaginismo para questões mais amplas sobre relações abertas e autonomia emocional mostra que a narrativa não se limita a um distúrbio, mas expandindo-se além do tema central para refletir sobre escolhas amorosas e crescimento pessoal. E isso leva-me àquele que considero ser o ponto menos positivo na obra: é que o tema do vaginismo, embora central, não recebe, quanto a mim, um fecho narrativo muito concreto. De repente, parece que está tudo bem e que a autora ultrapassou o problema, mas essa revelação é-nos dada com pouco critério, parecendo que a recuperação física e emocional da autora funciona mais como catalisador para mudanças na forma de se relacionar com Lucas. Ainda assim, reconheço, este desfecho também pode ser visto como uma conclusão catártica do ciclo pessoal da autora, oferecendo uma sensação de esperança e continuidade, mesmo que não resolva tudo de forma explícita.

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Visualmente, Alix Garin evolui bastante em relação ao seu trabalho anterior, Não Me Esqueças. É verdade que o seu traço se mantém simples, rápido e empático, em linha com o livro anterior, mas ganha bastante mais dinamismo e expressividade. A planificação das pranchas, a ilustração dos estados de espírito da protagonista e as magníficas páginas duplas tornam a leitura mais envolvente e intensa, revelando uma autora mais madura e com mais opções gráfico-narrativas. Os seus desenhos expressivos e apelativos contribuem para transmitir a experiência emocional e física da autora de forma impactante.

Sou, portanto, muito apreciador dos belos desenhos da autora, que geram facilmente empatia com os leitores e que são extremamente expressivos, modernos e carregados de um estilo muito próprio. O tal "signature style", de que tanto falo. Nota ainda para o belo trabalho de cores que, sendo diversas, nuns casos, através de páginas muito coloridas e garridas e, noutras situações, com fundo preto e traço a branco, funcionam sempre muito bem, tornando o livro ainda mais apelativo do ponto de vista gráfico.

A edição da ASA é em capa mole brilhante, com badanas, à semelhança do que fora feito em Não Me Esqueças. No miolo, o papel é baço e de boa qualidade, tal como de boa qualidade também é a encadernação e a impressão da obra.

No seu conjunto, Impenetrável é uma obra corajosa, sensível e visualmente impressionante, afirmando-se como (mais) uma bela aposta da editora ASA, que parece acertar em quase tudo o que ultimamente tem editado. Alix Garin consolida-se neste livro como uma autora de banda desenhada de enorme potencial, mostrando maturidade artística e narrativa. Apesar de alguns pontos em aberto, o livro é um testemunho poderoso, especial e belo, que combina experiência pessoal, reflexão social e qualidade visual, tornando-se, sem dúvida, um dos destaques do ano e um título essencial para quem se interessa por histórias de superação, sexualidade e relações humanas. Recomenda-se!


NOTA FINAL (1/10):
9.5


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Impenetrável, de Alix Garin - ASA

Ficha técnica
Impenetrável
Autora: Alix Garin
Editora: ASA
Páginas: 304, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 202 x 269 mm
Lançamento: Setembro de 2025

Análise: Wendigo

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Wendigo, de Nunsky

Depois do fantástico Companheiros da Penumbra, uma das minhas bandas desenhadas portuguesas preferidas dos últimos anos, eis que Nunsky, o autor, regressou recentemente ao lançamento de nova banda desenhada.

Desta vez, decidiu adaptar para BD o conto clássico The Wendigo, da autoria de Algernon Blackwood, publicado originalmente há bem mais do que 100 anos, em 1910, no volume The Lost Valley and Other Stories

A narrativa desta curta história situa-se nas remotas florestas do norte do Ontário, no Canadá, num cenário severo, gelado e solitário, onde a natureza é selvagem e indiferente à presença do Homem e em que o sobrenatural vai(?), pouco a pouco, erodindo a sanidade das personagens que aí procuram fazer uma expedição para caça aos alces.

Os protagonistas são Simpson, um jovem estudante de teologia, o seu tio, o Dr. Cathcart, chefe da expedição, os guias Hank Davis e Joseph Défago e o cozinheiro índio, Punk, que permanece no acampamento principal enquanto os restantes quatro homens se dividem para prosseguir a caça ao alce.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
O ambiente é taciturno, sombrio e os silêncios são entrecortados pelo barulho de alguns animais não tão distantes assim, o que convida ao medo e à insegurança, especialmente do protagonista Simpson. A viagem torna-se, pois, cada vez mais inquietante, quando os quatro homens se separam em dois grupos: Simpson e Défago por um lado, e Hank Davis e o Dr. Cathcart por outro.

A escuridão que persegue os homens é meio convite andado para que eles se percam, claro. E a meio duma noite, assombrado pelas sensações de algo estranho, como odores e estranhos sons no vento, bem como vislumbres ou pressentimentos, Défago levanta-se e sai da tenda onde dormia para tentar confrontar esses chamamentos que parece estar a receber. Uma abordagem clássica de conto de horror, diria. Mas importa dizer também que todas estas coisas estranhas, pródigas em histórias de terror, são-nos dadas de um modo pouco definido e nunca totalmente explicado. São apenas meras sugestões. O que aumenta o clima de suspense que impregna toda a história e que me agradou especialmente.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Défago acaba por desaparecer misteriosamente durante algum tempo, o que leva ao aumento da sensação de sufoco vivida pelo protagonista. Contudo, é quando Défago regressa que as coisas ficam ainda mais estranhas, já que o homem parece estar mentalmente abalado, quase sem memória e profundamente modificado (física e psicologicamente) pelo que viu ou experienciou. Terá encontrado a criatura de Wendigo ou não passará isso de uma mera "história da carochinha"? Um mito sem fundamento? Mais não digo, para não estragar surpresas a eventuais interessados que se iniciem na leitura da obra depois de lerem o meu texto.

Mas posso reforçar que aquilo que mais aprecio nesta obra é que a mesma funcione mais em em torno da atmosfera do que duma história mais do foro da fantasia. Acaba por ser mais madura e ter mais capacidade de "aterrorizar" o leitor - pelo menos, na minha opinião - esta forma de deixar o temor por algo a pairar no ar, atrasando ou anulando tudo o que é explícito. É um horror “sussurrado” que perturba mais pela sugestão do que pelo visível.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Através de uma adaptação com uma centena de páginas, Nunsky consegue captar muito bem essa ideia de terror ambiental e sugerido da obra original, o que será um dos maiores feitos desta obra. Era fácil adaptar esta obra em, por exemplo, 40 páginas de banda desenhada. Menos de metade da proposta de Nunsky. Mas não tenho dúvidas que os sentimentos experenciados pelo leitor dessa opção não seriam tão impactantes como nesta boa solução de Nunsky que, utilizando todas estas páginas, permite que ação seja pausada e que o clime de insegurança sentido pelas personagens e pelo leitor, aumentem uma boa leitura envolvente.

De resto, e no que respeita à fidelidade ao conto original, Nunsky respeita muito bem as principais linhas de Blackwood, tais como o cenário remoto, a natureza como protagonista indireta, a relevância das personagens dos guias, o progresso gradual do horror, a ambiguidade do sobrenatural. Acaba por ser uma tradução visual da narrativa, sem a transformar ou reinterpretar de modo radical, deixando que o leitor conheça a história de Blackwood através de imagens e ritmo gráfico, mas mantendo o mesmo tom sombrio e introspectivo.

Visualmente, o preto e branco utilizado por Nunsky volta a ser um dos pontos mais fortes da obra. O uso de contrastes fortes, sombras densas, silhuetas, neve, árvores, penumbra, e o ambiente gelado da floresta são bem captados pelo seu virtuoso traço. A ambientação visual dos seus desenhos reforça deste modo o suspense, a estranheza e a sensação de que algo está além do visível. O estilo de Nunsky continua a mostrar uma grande maturidade visual e uma dosagem certa entre detalhe e economia gráfica.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Se me posso queixar de algo nesta bela adaptação foi que, como é uma história muito sombria, os desenhos também são logicamente escuros e isso leva a que pareça que toda a ação se desenrola de noite quando, na verdade, isso não acontece, já que a passagem do dia para a noite tem relevância do ponto de vista narrativo. Talvez o autor devesse ter conseguido, através da luminosidade das cenas, ter trabalhado melhor esta questão que, mesmo assim, não é algo que possamos considerar como gritante.

E seja como for, Wendigo, como obra gráfica, é mais um exemplo do bom trabalho que Nunsky tem feito. Neste caso em concreto, não só nos oferece o seu domínio da ilustração em banda desenhada, como tem o mérito de nos trazer uma obra clássica com qualidade estética e literária para o público português. 

A edição da Chili com Carne é cuidada e bonita, tendo o livro capa mole, em estilo flexicover, o que dá um certo requinte à edição. No interior, o livro apresenta bom papel baço e uma boa encadernação e impressão.

Sendo o trabalho do Nunsky de tanta qualidade, a única coisa que lamento é que a distribuição dos seus livros seja curta em qualidade e quantidade, tornando as suas obras difíceis de encontrar e apenas disponíveis para uma pequena franja de público que poderia ser bem maior... caso o livro chegasse a mais pessoas, claro está. 

Em suma, Wendigo de Nunsky é uma adaptação sólida e fiel do clássico de Blackwood, que consegue transpor a tensão e o suspense da narrativa original para a linguagem da banda desenhada sem perder a sua essência. O traço a preto e branco é cuidado, apelativo e eficaz na criação da atmosfera, reforçando o horror psicológico e o isolamento da floresta canadiana, confirmando o autor português como um criador consistente e confiável no panorama da BD portuguesa, merecendo sem dúvida maior visibilidade.


NOTA FINAL (1/10):
8.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne

Ficha técnica
Wendigo
Autor: Nunsky
Editora: Chili com Carne
Páginas: 104, a preto e branco
Encadernação: Capa mole (flexicover)
Formato: 16,5 x 23 cm
Lançamento: Maio de 2025

"Saga" está de regresso!



A G. Floy Studio prepara-se para lançar o mais recente volume - o 12º - da saga Saga, passo a redundância, série da autoria de Brian K. Vaughan e Fiona Staples!

O livro deverá chegar às livrarias e às bancas a partir do próximo dia 22 de Outubro, quarta-feira.

Recordo que os 10 primeiros volumes desta bela série já mereceram uma análise conjunta que pode ser (re)lida aqui.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.


Saga - Volume 12, Brian K. Vaughan e Fiona Staples

FIONA STAPLES e BRIAN K. VAUGHAN, a equipa vencedora de vários prémios Hugo e Eisner, trazem-nos SAGA, a história de uma jovem chamada Hazel e da sua malfadada família. 

Neste épico décimo segundo volume, Alana assume um cargo novo e perigoso, os seus dois filhos tomam decisões importantes, e a balança de poder da galáxia começa a pender mais para um dos lados.

Reúne os números #67-72 de Saga.

“Aristocratas robot com TV em vez de cabeças, uma gata careca que sente mentiras, e uma adorável jovem no centro de um conflito galáctico ricamente concebido. Que mais poderia alguém desejar, além de mais capítulos desta já longeva série?”
-Scientific American

“Um dos mais icónicos livros de ficção científica/fantasia do séc. XXI.”
-Reactor

“Adoro este mundo... uma das histórias que mais vezes releio.”
-Lupita Nyong’o na Vanity Fair

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Ficha técnica
Saga - Volume 12
Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Editora: G. Floy Studio
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato:
PVP: 23,00€

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Análise: Extases - Livros 1 e 2

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Embora já tivesse lido uma breve parte desta obra em pdf, só mais recentemente pude comprar e ler os dois volumes de Extases, que compõem uma impactante obra biográfica onde o seu autor, JeanLouis Tripp, responsável por outros trabalhos magníficos como Armazém Central, O Meu Irmão ou Un Père, nos conta a sua caminhada sexual. E, posso dizer-vos que, para não fugir à regra, Extases (também) é verdadeiramente fantástico!

Isto porque estamos perante uma autobiografia gráfica sem precedentes, um mergulho profundo e desarmante na vida íntima e sexual de alguém. A história começa com as primeiras descobertas do autor, ainda adolescente, quando o corpo e o desejo começam a ser território de fascínio e curiosidade. Tripp relata as suas experiências iniciais de autodescoberta, as primeiras masturbações, as primeiras fantasias e o confronto entre o prazer e a culpa, temas universais mas raramente tratados com tanta franqueza e serenidade.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
JeanLouis Tripp vai ao fundo da questão, não descrevendo apenas o que fez, mas aquilo que sentiu quando o fez. Começamos pelos primeiros tempos em que, na adolescência, explorava o seu corpo, até à sua primeira namorada mais "a sério", e em idade adulta, que já conhecemos de O Meu Irmão, Caroline, com quem, naturalmente, o autor vive momentos tórridos de experimentação. 

Com o avançar da narrativa, o leitor acompanha o jovem JeanLouis no seu percurso de amadurecimento sexual: as primeiras namoradas, os primeiros encontros verdadeiramente íntimos, e o modo como o sexo se vai tornando não apenas uma prática física, mas também um espaço de aprendizagem emocional e existencial. Tripp mostra-se sempre honesto, por vezes cru, outras vezes ternurento, nunca fugindo ao desconforto que o confronto com o próprio desejo pode provocar.

Com Caroline - nome fictício que, por sua vez, também o era em O Meu Irmão - o autor mergulha em experiências de liberdade sexual, desde as práticas a dois até aos encontros coletivos, passando por fetiches e dinâmicas pouco convencionais. É nesse terreno que Extases começa verdadeiramente a distinguir-se: não há julgamento, não há moralismo, há apenas a vontade sincera de compreender e narrar a própria vida.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Essas experiências culminam num ponto alto que, curiosamente encerra cada um dos dois livros, que é a participação em orgias, momentos que percebemos ser transformadores e fundadores da sexualidade adulta de Tripp. Há um "antes" e um "depois" a partir da primeira vez em que, de um modo quase inesperado, Tripp participa com a sua namorada numa orgia entre amigos. 

Naturalmente, e conforme a sensibilidade e experiência de cada leitor, muitas das cenas retratadas nesta obra serão excitantes de acompanhar, embora não me pareça, ainda assim, que a preocupação do autor seja a de criar desejo no leitor, mas sim a de comungar, a de partilhar a sua intimidade. Há um certo humor a pontuar tudo aquilo que nos é contado, embora também haja momentos de algum sufoco onde certas situações nos deixam desconfortáveis. Assim é a vida, diria, e a sexualidade, por conseguinte.

A narrativa ganha, pois, um tom quase filosófico, com o autor a questionar o significado do desejo, o peso da fidelidade, a noção de partilha e até o próprio limite entre amor e prazer. Em termos de estrutura narrativa, os dois volumes funcionam como um contínuo, uma espécie de díptico confessional. O primeiro volume centra-se mais na juventude e na descoberta, e o segundo mergulha na maturidade e nas questões da liberdade, da identidade e da partilha. 

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
É uma aposta verdadeiramente ousada, não apenas por ser uma banda desenhada sobre a vida sexual de alguém - algo já menos invulgar nos dias de hoje - mas pela forma como o autor a concebeu, que revela uma honestidade quase desconcertante. Enquanto muitos autores se expõem ao falar de traumas familiares, doenças ou perdas, Tripp abre o véu sobre a sua intimidade sexual com um detalhe e uma lucidez raros. 

O resultado é uma obra que, ao mesmo tempo, desconforta e conforta. Há momentos em que o leitor se sente cúmplice, outros em que se sente intruso. Mas é justamente esse vaivém entre proximidade e distância que confere a Extases o seu poder. A vulnerabilidade de Tripp torna-se espelho para a vulnerabilidade do leitor, e o sexo - tantas vezes tabu - revela-se um território de comunhão, não de escândalo.

Não é um livro sobre o amor, como o próprio autor sublinha, mas sobre o sexo. Não obstante, em cada página, respira-se uma humanidade profunda, pois a nudez é mais espiritual do que física. Apesar de encontrarmos corpos em todas as suas formas - há uma quantidade enorme de seios, pénis, vaginas, rabos, esperma, pelos púbicos, neste livro - a obra nunca é pornográfica. Nem sequer erótica. O erotismo existe, sim, mas como consequência da verdade do relato, não como artifício para provocar excitação. Não esperem, portanto, performances sexuais fantásticas das personagens, dignas de um filme pornográfico, ou mamas ou pilas de tamanho gigante - a não ser nas alturas em que o órgão sexual masculino está propositadamente exagerado para fins humorísticos ou narrativos.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Um dos aspetos mais notáveis de Extases é o equilíbrio entre humor e desconforto. Há situações caricatas, embaraçosas, que o autor retrata com uma auto-ironia saudável, sem nunca cair na vulgaridade. Outras passagens, contudo, são intensas e tocantes, sobretudo quando expõem momentos de dúvida, de rejeição ou de desorientação emocional. Tripp entende que a sexualidade não é linear nem serena. Ao invés, ela é contraditória, e é dessa contradição que nasce a sua autenticidade.

O desenho é franco, expressivo, com um traço a preto e branco semi-caricatural que combina o humor e a melancolia. Bem ao jeito daquilo que o autor nos oferece nas suas obras O Meu Irmão e Un Père. Os desenhos diretos criam uma sensação de proximidade, como se estivéssemos a ouvir um amigo a contar-nos a sua história, num tom de confidência, que funciona muito bem. 

Posso dizer que as duas coisas menos positivas que posso apontar à obra é que, no segundo livro há uma certa sensação de repetição no relato, aqui e ali, e que o final de cada um dos livros poderia ser mais marcante, deixando-nos um bocado, e já que falamos de sexo, sem o "final feliz" que todos os leitores gostariam. Mas são coisas pequenas numa obra que faz tanto e tão bem.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Outro tema que me merece comentário é que esta é uma obra que vai de uma forma incrivelmente profunda ao âmago da sexualidade masculina. Numa altura em que tantas obras - de literatura, de banda desenhada, de cinema, de música... you name it - tentam perceber, respeitar e homenagear o universo íntimo feminino e as suas lutas travadas - e que bom isso é! - também é bom ver que há obras (pelo menos esta!) que mostram o lado masculino da equação e o dessa "força da sexualidade masculina" que não é mais do que, quase sempre, um conjunto de inseguranças e fraquezas mascaradas de "forças". Se tivermos em conta que "os homens não falam deste tipo de coisas" este Extases até é capaz de consistir numa das maiores aberturas da caixa de pandora sobre a sexualidade masculina nos mais diversos meios artísticos. Homens que lerem Extases identificar-se-ão, sem o admitirem, com um sem número de coisas deste livro; e mulheres que lerem Extases ficarão certamente boquiabertas ao tomarem contacto com uma miríade de novas coisas sobre a sexualidade masculina que, provavelmente, não ousariam sequer imaginar. 

Falar da sexualidade, com tanto detalhe e pormenor, incluindo fetiches, incapacidades, ou revelando aventuras que muitos de nós - passando por elas - não teríamos a coragem de o fazer nem a melhores amigos, revela algo de ousado. Algo que, espero, os leitores portugueses estejam dispostos a abraçar quando estes dois livros forem editados em Portugal. E espero que o sejam. Não há qualquer confirmação, pelo menos por agora, de que tal vá acontecer, mas deixem-me manter vivas as minhas esperanças. É, aliás, a minha (nova) bitola para aferir a maturidade de um mercado de banda desenhada. Quando me disserem: "O mercado deste país ou daqueloutro está muito desenvolvido...", o meu comentário seguinte será: "Sim, sim... mas nesse mercado desenvolvido de que falas já publicaram o Extases do Tripp?". É preciso termos leitores e editores evoluídos, para termos este livro publicado.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Do ponto de vista cultural, Extases representa, portanto, um marco na banda desenhada europeia contemporânea. Ao tratar o sexo com esta frontalidade e profundidade, Tripp eleva o género autobiográfico e desafia os limites do que se considera “publicável” ou “aceitável”.

Falando de edição, o trabalho da francesa Casterman é em cama mole, com badanas, e um bom tratamento de verniz localizado. No interior, o papel é baço, de boa qualidade, e há textos introdutórios do autor em ambos os livros.

Concluindo este texto que já vai longo, Extases é, no fundo, uma celebração da vida. Um tour de force narrativo e artístico que nos lembra que a sexualidade é um dos fios mais poderosos que tecem o ser humano. JeanLouis Tripp oferece-se ao leitor por inteiro - corpo, alma e traço - e o resultado é uma das obras mais sinceras, desconcertantes e, paradoxalmente, mais reconfortantes da banda desenhada contemporânea. O autor convida-nos, assim, a olhar para o sexo como parte essencial da experiência humana, não como um apêndice ou uma vergonha a esconder. Extases mostra-nos que o prazer é também uma forma de conhecimento de nós próprios, do outro e do mundo. É um percurso de aprendizagem, feito de erros, descobertas, fantasias, e, acima de tudo, de uma curiosidade insaciável pela vida. Consequentemente, ler Extases é, de certa forma, confrontar a nossa própria relação com o desejo. Há quem se identifique, quem se choque, quem ria ou se emocione. O livro não procura consensos... procura sinceridade. E é precisamente por isso que funciona tão bem: porque é impossível sair dele indiferente.

NOTA FINAL (1/10):
9.8


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Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Fichas técnicas
Extases #1
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 248 páginas, a preto e branco
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 18.7 x 26 cm
Lançamento: Setembro de 2020

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Extases #2
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 368 páginas, a preto e branco
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 18.7 x 26 cm
Lançamento: Novembro de 2020

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Análise: Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3

Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel - Devir

Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel - Devir
Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3
, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel

Hoje falo-vos dos mais recentes volumes de Batman lançados pela Devir, editora que, convém relembrar, tem estado com um impressionante ritmo de lançamentos nas suas mais variadas séries. Algo que merece os meus aplausos, pois é forma de manter os leitores fiéis e satisfeitos.

Em termos de super-heróis da DC Comics, a Devir tem estado investida no lançamento de Batman de Grant Morrison, em que os leitores são convidados a mergulhar num dos períodos mais complexos e fascinantes da carreira do Cavaleiro das Trevas. 

Vamos por partes.

No Volume Dois, as histórias aí presentes levam Bruce Wayne a confrontar-se com um conjunto de desafios psicológicos e físicos que testam o seu limite e o conceito que tem de si próprio enquanto herói. Morrison introduz figuras que representam diferentes facetas do medo e da loucura, refletindo a ideia de que o próprio Batman é uma sombra multifacetada da cidade que protege. 

Morrison desenvolve também a ideia de que existem histórias esquecidas, memórias reprimidas e experiências quase míticas no passado de Batman, brincando com a noção de continuidade e com a própria história editorial da personagem, resgatando elementos dos anos 50 e 60 e recontextualizando-os dentro de um universo moderno e psicológico. Esta abordagem dá ao leitor a sensação de que tudo o que aconteceu com Batman, em qualquer época, pode ser real dentro da sua mente fragmentada.

Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel - Devir
Morrison expõe o herói à solidão e ao desespero, mas sem nunca o afastar da sua determinação quase sobrenatural. O arco da Ressurreição de Ra’s Al Ghul envolve outras personagens do universo Batman, e mostra-nos um herói dividido entre o dever e a mortalidade, entre o legado e o sacrifício, preparando o terreno para a fase mais épica e simbólica do autor, ao conduzir o Cavaleiro das Trevas por um caminho espiritual e existencial, onde o confronto com o lendário vilão não é apenas físico, mas também uma luta entre a vida e a morte, entre o corpo e a alma. O retorno de Ra’s é, pois, tratado como um mito renascido e a relação entre mestre e inimigo atinge um pico de tensão. A ideia de herança e de continuidade - tão presente em toda a mitologia de Batman - ganha aqui um novo peso, mostrando que Morrison escreve a personagem de Batman mais como símbolo do que como simples homem. 

No entanto, é no Volume 3 que, a meu ver, o enredo pensado por Grant Morrison se começa a solidificar de forma mais coesa e envolvente. As histórias deste volume mergulham na mente de Bruce Wayne e revisitam o trauma da perda dos pais, mas agora de uma perspetiva quase metafísica. Morrison faz Batman confrontar o próprio criador do seu trauma e, ao fazê-lo, liberta o herói - e, lá está, o leitor - de uma narrativa repetida ao longo de décadas. A história torna-se, pois, mais intensa e surreal, com o autor a explorar as fronteiras entre sanidade e insanidade, realidade e ilusão. O mistério, as personagens secundárias bem desenvolvidas e o vilão carismático tornam este arco particularmente memorável.

Faço ainda um destaque para as histórias reunidas sob o arco Batman R.I.P., em que o autor atinge o clímax da sua visão, com a desintegração mental de Bruce Wayne a ser retratada de modo quase poético. Morrison cria um ambiente de paranoia e desconstrução, em que cada símbolo e cada frase escondem camadas de sentido. O vilão Doutor Hurt surge como uma das criações mais intrigantes do autor, representando não apenas um inimigo físico, mas a própria corrupção espiritual que ameaça consumir o herói. Gostei bastante.

À medida que estes volumes avançam, o universo criado pelo argumentista parece ganhar mais credibilidade e força. E o que, à partida, poderia parecer uma coleção de histórias independentes revela-se, na verdade, uma teia cuidadosamente entrelaçada. Cada arco dialoga com o anterior e prepara o seguinte, formando um verdadeiro épico sobre a identidade e a mitologia de Batman

Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel - Devir
É verdade que nem sempre as histórias imaginadas por Morrison são lineares. A sua escrita densa, repleta de simbolismo e referências à história editorial de Batman, pode confundir o leitor menos familiarizado com a personagem. Por vezes, especialmente nas histórias desenhadas por J.H. Williams III contidas no segundo volume, a experimentação narrativa e visual torna-se, quanto a mim, excessiva, e certas sequências parecem mais preocupadas em desafiar o leitor do que em contar uma história clara. Ainda assim, essa ousadia faz parte da identidade do autor e do projeto maior que ele constrói.

E há que reconhecer que Morrison mostra que compreende Batman como poucos: não apenas o vigilante, mas o homem que sobrevive à própria morte, que transcende a loucura e o trauma para se tornar um símbolo de resiliência. 

Em termos visuais, o destaque vai claramente para o trabalho de Andy Kubert, cujo traço dinâmico, detalhado e expressivo confere às histórias uma energia cinematográfica, que adoro. Kubert domina tanto a ação frenética como os momentos de introspeção, tornando cada página visualmente impactante. No entanto, também merecem menção ilustradores como Tony Daniel e J.H. Williams III que contribuem com estilos distintos, acrescentando diversidade visual ao universo de Morrison.

A edição da Devir mantém-se muito apelativa e bonita. Cada livro apresenta capa dura baça, com belos detalhes a verniz. No miolo, o papel utilizado é brilhante e de boa qualidade, sendo que a encadernação e impressão também são excelentes. O terceiro volume inclui ainda quatro capas alternativas.

Em síntese, Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3 parecem caminhar no sentido de tornar a visão que Grant Morrison tem para Batman mais clara e coesa, revelando um autor que domina o caos para transformá-lo em narrativa e mito. Ainda assim, é inegável que, por vezes, essa complexidade pode ser um pouco densa e desafiante para alguns fãs mais “soft” de Batman. Mesmo assim, trata-se de uma excelente aposta da Devir, que continua a trazer ao público português algumas das histórias mais ambiciosas e intelectualmente estimulantes já escritas sobre o herói de Gotham.


NOTA FINAL (1/10):
8.4



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel - Devir

Fichas técnicas
Batman - Grant Morrison - Volume 2
Autores: Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III
Editora: Devir
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27 cms
Lançamento: Julho de 2025

Batman - Grant Morrison - Volumes 2 e 3, de Grant Morrison, Andy Kubert, J.H. Williams III e Tony Daniel - Devir

Batman - Grant Morrison - Volume 3
Autores: Grant Morrison, Tony Daniel
Editora: Devir
Páginas: 182, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27 cms
Lançamento: Setembro de 2025