Sem desprimor para as restantes obras editadas pela Distrito Manga, uma chancela do grupo Penguin, a recente publicação da obra-prima do autor Katsuhiro Otomo, intitulada Akira, reveste-se como a melhor aposta da editora até à data!
Este clássico intemporal do mangá e da cultura popular japonesa, que desde o seu lançamento original já teve eco em todo o mundo, até já havia sido integralmente publicado em Portugal pela Meribérica durante os anos noventa. Nessa altura, optou-se por publicar a série com o sentido de leitura ocidental, da esquerda para a direita, e numa versão a cores que havia sido especialmente (e originalmente) produzida para o mercado americano por se acreditar, à época, que essa seria a melhor forma de fazer chegar um mangá ao mercado norte-americano. Talvez por esse motivo - desta obra ter sido lançada em Portugal nessa mesma versão a cores - eu e muitos dos leitores portugueses, tivemos o primeiro contacto com a série desse modo. Mas, quanto a esse ponto, já lá irei.
Situada numa Neo-Tóquio distópica após a destruição nuclear de 1982, a história acompanha Kaneda, Tetsuo e outros jovens mergulhados num turbilhão de conspirações militares, experiências secretas e no despertar de poderes psíquicos devastadores. Aquando do seu lançamento, Akira conseguiu romper com a estética mais convencional dos mangás da altura, introduzindo um traço detalhado, urbano e incrivelmente cinematográfico, que teve repercussões em todo o mundo, sublinho.
A cidade de Neo-Tóquio, uma metrópole erguida sobre as ruínas de Tóquio após uma explosão misteriosa que desencadeou a Terceira Guerra Mundial, e um local onde as ruas passaram a estar abarrotadas de gangues, corrupção política e marginalidade, é um cenário que respira inquietação e que se afirma como uma personagem per se. Nesta distopia carregada por um ambiente caótico e opressivo, são as personagens Kaneda e Tetsuo, dois jovens rebeldes, que, juntamente com os seus amigos do gangue, montam velozes motas, vagueando pelas ruas em busca de velocidade, adrenalina e confrontos com outros grupos rivais.
O eixo central da narrativa reside, pois, na amizade - e posterior confronto - entre Kaneda e Tetsuo, dois adolescentes que acabam por simbolizar diferentes respostas à marginalidade que se faz viver na cidade. Kaneda é carismático e impulsivo, encarnando o espírito da juventude rebelde que prefere agir em vez de refletir. Já Tetsuo, é alguém inseguro e sempre na sombra do amigo, que encontra nos seus novos poderes adquiridos uma oportunidade de afirmação.
De resto, o "enigma de Akira", ainda apenas meramente sugerido neste primeiro volume, funciona como motor narrativo. Este enigma não é apenas uma força destrutiva do passado, mas também uma ameaça latente, algo que todos temem, mas ninguém compreende inteiramente. Essa presença invisível ecoa a ideia de que a verdadeira catástrofe nunca está distante, e de que o ser humano, ao brincar com forças que não controla, arrisca a sua própria autodestruição.
Akira apresenta-se como uma obra de entretenimento puro e duro, mas que traz consigo uma alegoria política e existencial. E que, mais de três décadas depois, permanece uma referência incontornável, não apenas pela sua estética revolucionária, mas pelo modo como articula caos, poder e humanidade através de uma narrativa que continua atual e provocadora. O seu impacto foi tal que, quando o anime estreou em 1988, já havia uma base de fãs global. O próprio anime haveria de constituir um marco no cinema de animação e no anime, em particular, passando a ser uma obra de culto. Contudo, e obviamente, o mangá original vai muito além do filme, tanto em profundidade narrativa quanto em densidade temática.
Por falar em densidade temática, convém ainda dizer que outro dos trunfos de Akira é o facto da série ser um dos pilares do cyberpunk. A fusão entre tecnologia avançada e decadência social, a crítica ao autoritarismo, a presença de poderes paranormais como metáfora para forças incontroláveis e a representação da juventude como resistência contra estruturas opressivas são elementos que influenciaram não apenas outros mangás, mas também várias outras obras da literatura, do cinema e dos videojogos.
O estilo visual de Otomo é um dos grandes trunfos de Akira. Desde as primeiras páginas, o desenho expressivo, dinâmico e minucioso constrói uma cidade vibrante, mas sufocante, onde cada rua, cada veículo e cada detalhe arquitetónico transmite verosimilhança. Mais do que um simples pano de fundo, a cidade é o reflexo de uma sociedade em colapso, onde a juventude procura escape em motas potentes e confrontos violentos. A própria iconografia das motas tornou-se tão emblemática que hoje é indissociável do imaginário da obra.
E, também por isso, há uma sensação de velocidade que está sempre presente em Akira. Otomo utiliza enquadramentos cinematográficos, linhas de movimento e sequências longas de perseguições para transmitir essa urgência quase palpável que arrasta o leitor para este ritmo acelerado, como se estivesse dentro das corridas nocturnas pelas ruas de Neo-Tóquio.
Falando dos desenhos e da componente visual da obra, e mesmo que possa chocar o leitor mais purista que me leia, tenho que referir que teria preferido que a obra fosse reeditada a cores. E quando digo isto, não é apontando alguma falha à edição da Distrito Manga. Até porque a editora portuguesa se limitou a ser fiel à edição original da obra, editando-a a preto e branco, da forma que foi originalmente concebida por Otomo, e com o sentido de leitura japonês. Nada de negativo pode, portanto, ser dito acerca dessa opção. Além de que também compreendo que se esta obra fosse lançada a cores, possivelmente teria um preço muito mais avultado. E talvez as cores ainda necessitassem de um tratamento especial. No entanto, e admitindo que talvez o meu julgamento seja condicionado pelo primeiro contacto que tive com esta série na sua versão a cores, quando penso em Akira, penso numa banda desenhada a cores. E era essa que, teimosamente, eu gostaria que voltasse a chegar às livrarias portuguesas. Deste modo, sou-vos sincero quando vos confesso que reler esta série a preto e branco me deixou saudades da edição a cores.
Quanto à edição da Distrito Manga, o livro tem capa mole e uma sobrecapa baça. No interior, o papel é de boa qualidade e a impressão e encadernação são boas. As guardas do livro, a cores, são particularmente impactantes e bonitas.
Em suma, a Distrito Manga merece uma vénia pela aposta neste mangá. Relevante ainda hoje, Akira mantém a sua frescura pela forma como aborda questões universais: a luta pelo poder, a fragilidade da amizade, o medo do desconhecido e a desconfiança nas instituições. A estética visual continua impressionante, e a narrativa, carregada de urgência, não perdeu intensidade com o passar das décadas. A mestria de Otomo está em equilibrar o seu espetáculo visual com uma reflexão profunda sobre o poder e a violência. Essa combinação garante que Akira permaneça, ainda hoje, não apenas uma leitura “apetecível”, mas um clássico indispensável da banda desenhada mundial.
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Akira – Livro 1
Autor: Katsuhiro Otomo
Editora: Distrito Manga
Páginas: 352, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 178 x 256 mm
Lançamento: Junho de 2025
A questão é e continua a ser: irão concluir a série e quando?
ResponderEliminarAntónio, a editora tem estado a lançar de forma muito assídua. Sendo 6 volumes... se lançarem 2 por ano, concluem a série em 3 anos. Mas até pode vir a ser fechada mais cedo. A ver vamos.
EliminarNão deixa de ser vago, caro Hugo. Seria importante por parte da editora se anuncia-se, desde o lançamento, o compromisso relativamente á conclusão da série. Seria igualmente tranquilizador para quem pensa investir na série. Péssimo marketing por parte de um selo que faz parte do maior grupo editorial a nível mundial, digo eu.
EliminarPeguei em Akira este Verão, pelo seu estatuto enquanto obra-prima clássica pioneira e de referência. Cativou-me essencialmente o nível de detalhe e credibilidade dos cenários estilo cyberpunk, a atmosfera sombria ou indigente em que a ação se desenrola, e as atitudes rebeldes das personagens. Mas, para minha surpresa, concluí que não há nada de marcante nem de excepcionalmente belo nesta Parte I.
ResponderEliminarAkira contém uma narrativa dinâmica e ação estrondosa, talvez até demasiado explosiva, manifestamente bem desenhada e construída, cumulada por duas perdas tristes (considerá-las impactantes é exagero, infelizmente). Ao contrário do usual em mangas, Akira não nos aborrece com longas pausas dramáticas nem com ritmos artificialmente lentos.
Mas, para frustração de quem espera encontrar um só esboço de respostas, hipóteses ou algumas luzes sobre os inúmeros locais, personagens ou outras pistas atiradas ao longo destas 360 páginas, quase tudo permanece genérico e por explicar neste volume.
A premissa da história não consegue ser inovadora: sai mais uma dose de crianças incompreendidas com poderes sobrenaturais que são instrumentalizadas por uma organização militar maléfica.
A adicionar a isto, a personalidade errática e os comportamentos ambíguos - ou mesmo aleatórios - da personagem principal Kaneda, a quem se somam atitudes constrangedoras e até de assédio em relação a Kei, dinamitam qualquer possibilidade de empatia do leitor para com os protagonistas.
Ainda assim, por tudo o que deixa em aberto, e sobretudo pela manifesta complexidade do enredo, Akira reserva o potencial para ser uma grande história - ou apenas mais uma.
Esperemos que o segundo volume faça jus à reputação da obra.
Obrigado pelo comentário, muito interessante, caro leitor.
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