Entre as novidades que o ano 2022 tem trazido aos amantes de banda desenhada, a recente aposta da editora Gradiva – e logo com dois livros de uma só vez! – na série Nestor Burma tem sido uma das mais badaladas.
Esta é uma série que adapta para banda desenhada a icónica personagem dos romances de Léo Malet. A primeira adaptação para banda desenhada surgiu pelas mãos de Jacques Tardi que, entre 1982 e 2000, lançou quatro álbuns, a preto e branco, com aquela personalidade de desenho tão própria, e que todos reconhecemos facilmente. Depois disso, dois autores continuaram a série. Nicolas Barral, autor do belíssimo Ao Som do Fado, e Emmanuel Moynot que, ao contrário de Tardi, oferece-nos álbuns coloridos embora com um estilo de ilustração que, à sua maneira, emula o estilo de Tardi.
E, antes de avançar na minha análise, uma dúvida persiste: porquê começar uma coleção destas (inédita em Portugal) a partir do número 5, tendo em conta que: 1) foi Tardi que iniciou a série em bd; 2) é Tardi o autor mais célebre e, portanto, mais comercial que trabalhou em Nestor Burma; 3) o próprio estilo de Moynot tenta emular o estilo de Tardi? Parece-me, portanto, que haveria mais do que uma boa razão para se ter começado a série com os álbuns de Tardi, não? Na minha opinião, soa até disparatado que não tenha sido essa a opção da editora.
A princípio, ainda achei que a razão para esta opção estaria relacionada com uma questão de direitos de autor. Mas parece que não. Na nota do editor, Guilherme Valente, está bem patente que “Tardi, autor da conceção gráfica da série, é o desenhador dos primeiros quatro títulos, a preto e branco, que na edição portuguesa surgirão posteriormente”. Ora, se “surgirão posteriormente”, isso são boas notícias para nós, pois temos o responsável máximo da editora a comprometer-se com o lançamento dos livros por Tardi, mas, ao mesmo tempo, acentua o non-sense do gesto. É que se a Gradiva pretende publicar toda a série, e mesmo aceitando – ou não! - que tenha começado pelo volume nº 5, porque razão é que decidiu numerá-lo como número 1!? Quando publicar os primeiros 4 números de Tardi como irá nomeá-los? -1, -2, -3, -4? Não se compreende.
Posto isto, só me resta uma hipótese para esta decisão da editora: a de testar o mercado. Ver se funciona em termos comerciais. E talvez se tenha achado que a versão a cores da série, tenha mais possibilidades de sucesso. Mais uma vez, tenho uma opinião diferente. O original e o seminal – especialmente quando posteriormente emulados – deveriam ter muito mais appeal comercial, não? Pesará assim tanto, em termos de vendas, a questão das cores? Afinal de contas, o que vende mais, uma Gibson ou uma Epihone? Um Renault ou um Dacia? O Jurassic Park 1, de Steven Spielberg, ou o Jurassic Park III, de Joe Johnston? Um Tardi ou um Moynot? A Gradiva parece acreditar que é um Moynot, em detrimento de um Tardi. Opiniões.
Avançando na minha análise, olho agora para estes dois livros: A Noite de Saint-Germain-des-Prés e O Sol Nasce Atrás do Louvre. Analiso-os em conjunto, não só porque foram lançados dessa forma, mas, também, porque são duas leituras que, sendo independentes entre si, se lêem muito bem de forma conjunta. Afinal de contas, estamos perante romances policiais de estilo noir, que se ambientam na cidade de Paris, com todo o charme e luz, mas também devassidão e negrura, dessa icónica cidade, que aqui desempenha um papel quase tão grande como o de Nestor Burma. Este, é um detetive privado, recém retirado da polícia, que aceita casos de investigação. A maioria deles não passam de espiar o que fazem os maridos de certas esposas desconfiadas.
Porém, em A Noite de Saint-Germain-des-Prés, Nestor Burma começa por investigar um avultado roubo de jóias, mas logo surgem dois casos de assassinatos, com que o detetive terá que lidar. Mas quem o fez e porquê? Com a ajuda da sua companheira Marcelle, Nestor irá frequentar o mundo artístico e literário parisiense para tentar desvendar estes casos. No segundo livro, O Sol Nasce Atrás do Louvre, Burma começa, mais uma vez, com um trabalho rotineiro, mas que acaba por envolver cadáveres, também. O argumento do segundo livro é bastante mais simples e lê-se mais facilmente do que o primeiro. Embora ambos os livros não sejam de fácil leitura.
O texto é demasiado denso e difícil de acompanhar, por vezes. Dei comigo a ter que repetir várias páginas para não deixar escapar nada do argumento. A linguagem deriva muito do calão francês e, nesse ponto, até acho que a tradução portuguesa está de parabéns, por ter tentado utilizar o calão congénere lusitano. Não será, pois, pela utilização do calão que considero o texto denso ou difícil. Mas sim pela forma como o mesmo nos é apresentado: com deduções que não são deduções, com afirmações que estão carregadas de ironia, com avanços e recuos na linha temporal, que por vezes, poderiam estar mais percetíveis e/ou serem mais úteis para o reforço narrativo, e, especialmente, por um enredo com muitos nomes e personagens que acaba por nos deixar um pouco confundidos.
Não li os livros originais, mas imagino que esta complexidade desnecessária aconteça por respeito e fidelidade de Moynot ao texto original de Léo Malet. Mesmo que assim o seja, o que se aceita, acredito que uma maior “limpeza” do texto – bem como de alguns intervenientes e eventos que embora apareçam na trama não tenham uma grande relevância na mesma – faria com que ambos os livros fossem mais facilmente digeríveis. Especialmente o primeiro, A Noite de Saint-Germain-des-Prés.
Quanto ao desenho, nota-se uma clara tentativa de aproximação aos desenhos de Tardi, por parte de Moynot. Se posso dizer que, de um modo geral, essa aproximação funciona, cumprindo os pressupostos mínimos, também é justo afirmar que, sendo Moynot dono de um estilo de desenho bastante característico – como em o Velho Louco, publicado em Portugal pela ASA –, acaba por parecer estar a fazer um esforço demasiado esforçado – perdoem-me a redundância – para que os seus desenhos façam justiça ao universo pictórico de Tardi. E talvez seja por isso que, no segundo álbum, em que parece haver um certo afastamento (controlado) em relação aos desenhos de Tardi, Moynot pareça mais solto a desenhar.
Ficamos, portanto, a meio caminho entre o estilo próprio de desenho e a emulação. E, nestas coisas, considero que se deve apostar ser “tudo ou nada”, isto é, ou a emulação dos desenhos é (quase) perfeita, tal como sucede, por exemplo, nos Astérix de Conrad ou nos Lucky Luke de Achdé, ou então mais vale adaptar com total liberdade a obra a que se presta homenagem, tal como Bonhomme faz com Lucky Luke ou, mais recentemente, Bastien Vivès com Corto Maltese. Moynot não é peixe nem carne e fica a meio caminho. O seu estilo próprio é deixado de lado, mas a emulação também está longe de ser (quase) perfeita.
Em termos de edição, a Gradiva faz aqui um bom trabalho. Capa dura, bom papel, boa encadernação e boa impressão. O primeiro livro, A Noite de Saint-Germain-des-Prés, traz ainda um prefácio de Fernando Pereira Marques que poderia ter sido paginado de outra forma, já que são duas páginas carregadas de texto. Ainda assim, cumpre bem a função de introduzir a obra original de Malet e a adaptação de Tardi. Gostei particularmente das guardas de páginas dos livros que nos apresentam uma porção do mapa da cidade de Paris e em que se assinalam os pontos onde decorrerá a ação desse livro. Um pequeno detalhe, mas que funciona especialmente bem.
Em conclusão, Nestor Burma assume-se como uma boa aposta da Gradiva. Não só a personagem é francamente carismática – daquelas que deixam a sua marca em nós, leitores - como este universo pictórico – criado por Tardi e emulado por Moynot – merece ser conhecido pelos leitores portugueses de BD. Bem como as próprias histórias noir, originalmente criadas por Malet, merecem ser conhecidas por mais gente. Apesar de todas as vicissitudes destes dois livros, que não são bandas desenhadas perfeitas, nem nada que se pareça, considero que é uma aposta bem-vinda e merece ter espaço na nossa oferta, quanto a mim. Dêem-lhe uma oportunidade. Pelo menos, enquanto a Gradiva não edita os quatro álbuns de Nestor Burma, da autoria de Tardi.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Nestor Burma #1 - A Noite de Saint-Germain-des-Prés
Autor: Emmanuel Moynot
A partir dos romances originais de: Léo Malet
E Baseado na adaptação para bd de: Jacques Tardi
Editora: Gradiva
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2022
Autor: Emmanuel Moynot
A partir dos romances originais de: Léo Malet
E Baseado na adaptação para bd de: Jacques Tardi
Editora: Gradiva
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2022
Um crime a Gradiva ter ignorado os 4 primeiros volumes da série desenhados e escritos por Jacques Tardi. Caso tivessem respeitado a intergridade da obra, consideraria a compra. Assim...
ResponderEliminarPois. Espero que a editora ainda venha a lançar os 4 livros do Tardi.
EliminarEu também, mas sinceramente a Gradiva tem-nos dado sobejos exemplos da suas amplas lacunas na edição de BD, que estou muito céptico. Sendo uma série já com 10 títulos editados porque não optar (á semelhança da Arte de Autor e Ala dos Livros) em editar albúns duplos? Ou estarão à espera de "atirar o barro contra a parede a ver se cola" da mesma forma que fizeram com a série "Gus"? Francamente, esta "lógica" escapa-me...
EliminarConcordo que os álbuns duplos seriam uma ótima opção. E acho o mesmo em relação, por exemplo, a Alix Senator, da mesma editora.
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