No final do ano passado, ainda durante o Amadora BD, a Ala dos Livros publicou o sexto volume da série O Gato do Rabino, da autoria do consagrado Joann Sfar. Uma iniciativa que apanhou muitos leitores de banda desenhada desprevenidos embora, há que dizer, os mais atentos já soubessem que a editora havia adquirido os direitos da série há alguns meses.
Mesmo assim, a dúvida pairou no ar: “porquê agora e porquê a partir do sexto volume?”. Ora, eu não tenho resposta para estas questões. Sei que a editora não tem, para já, planos para editar os cinco volumes anteriores, que foram publicados em Portugal, há vários anos, pela ASA. A série original já conta com 11 volumes e, portanto, compreendo que seja uma aposta que se assume como intermitente para a editora e para os leitores. Os que já forem fãs da série provavelmente não terão muitos problemas com esta decisão da editora, pois é bem possível que já tenham os cinco volumes anteriores na sua coleção. Para os que não estão familiarizados com O Gato do Rabino, poderão não ter aqui o engodo suficiente para apostar na série, tendo em conta que só a podem conhecer a partir do sexto volume. Seja como for, e decisões à parte, eu, por sinal, espero sempre que as editoras tenham o máximo de sucesso com as séries que lançam. A ver vamos.
Esta era uma série da qual eu tinha memórias já muito vagas, pois tinha lido três livros – e já nem me lembro bem quais (mas, provavelmente, foram os três primeiros) – há vários anos. As memórias estavam, portanto, mais que esbatidas.
E voltar a esta série revelou-se uma sensação com sentimentos mistos. É que, por um lado, Sfar dá-nos algo verdadeiramente original e à margem do comum e do habitual. Por outro lado, será essa originalidade (in)suficiente para fazer d’O Gato do Rabino uma série indispensável?
Ora, vejamos.
A história é-nos contada pela perspetiva de um gato que é completamente devoto à sua dona, Zlabya. Como ela se encontra grávida no momento corrente, o gato vai partilhando connosco, em monólogo, os seus receios perante esta gravidez. Continuará Zlabya a adorá-lo, a acariciá-lo, a prestar-lhe todos os cuidados e atenções depois da chegada do bebé? Que papel terá o gato na vida da sua dona quando esta já for mãe? Este é o mote e ponto de partida para a história.
Sfar utiliza, portanto, a sua personagem do Gato para levantar questões profundas e dignas de um qualquer filósofo existencialista. Ainda que as inseguranças do gato se façam sentir em mais páginas do que o expetável, sem que haja um desenvolvimento concreto da história, tenho que reconhecer que o texto é todo ele muito inspirado – e inspirador. O Gato do Rabino fala de amor, de traição, de abandono, de religião, de espiritualidade, de relações humanas. E fá-lo de forma eloquente e que faz pensar. No entanto, em termos de sequência narrativa, parece-me que, por vezes, o autor se deixa levar, simplesmente, ao sabor da corrente, o que também pode dar a sensação, quando terminamos a leitura do livro, que não lemos mais do que um mero devaneio onírico do autor. Isso não é necessariamente bom nem mau. É o que é.
Existe, também, uma coisa muito interessante nesta série que poucas vezes vejo ser referida, que é o seguinte: a forma como o texto nos é dado, de forma tão simples, com uma linguagem tão linear, tem o condão de fazer com que o livro possa ser lido por adultos e crianças com resultados diferentes. O que é dito é simples e facilmente compreensível por uma criança. Mas, claro está, acaba por ter uma leitura mais profunda, se o mesmo texto for percecionado por um adulto. Algo semelhante ao que Antoine Saint-Exupéry faz no seu aclamado O Principezinho. O que não deixa de ser curioso, se tivermos em conta que o próprio Joann Sfar adaptou para banda desenhada a obra-prima de Saint-Exupéry.
E depois há algo completamente indissociável desta série: a arte ilustrativa de Sfar. Há quem adore. Há quem deteste. Quanto a mim, considero que o autor nos brinda com uma abordagem gráfica verdadeiramente original – e merece vénias por isso – com o seu traço surrealista, por vezes caricatural, por vezes sensual, que serpenteia formas e figuras com um surrealismo tal, que parece que estamos dentro de um sonho. E com perspetivas no cenário que, incumprindo regras habituais do desenho, acabam por sublinhar, ainda mais, esse surrealismo. Para mim, tudo isso é ótimo e bem-vindo.
Todavia, (também) é um desenho que considero pouco “sincero” pois, apropriando-se dessa singularidade, acaba, igualmente, por ser, muitas vezes, “preguiçoso” e apresentar vinhetas menos cuidadas. Por outras palavras, parece-me que, envergando a característica da originalidade, esconde algumas fraquezas no aprumo e cuidado com as ilustrações. Além de que, depois de visualizar algumas pranchas dos primeiros volumes da série, também me parece que o desenho de Sfar se apresenta menos cuidado neste sexto volume.
Dito isto, também não posso olvidar que, aqui e ali, há vinhetas que considero verdadeiramente maravilhosas. Daquelas que fazem sonhar. Daquelas que poderíamos emoldurar e colocar numa parede. Tal não é o lado artístico com que o autor nos brinda. A própria capa deste Não terás outro Deus além de mim é verdadeiramente sublime, na minha opinião.
Em termos de edição, o livro apresenta capa dura brilhante, papel de boa gramagem e um bom trabalho ao nível da impressão e da encadernação. Nada mais a objetar.
Em conclusão, e creio que isso está bem patente na análise que aqui fiz a O Gato do Rabino #6 - Não terás outro Deus além de mim, fico com sentimentos mistos quanto ao livro. Há coisas muito únicas e muito artísticas. Há outras que me parecem feitas “às três pancadas”, com um argumento que nem parece um argumento, mas sim um devaneio narrativo. Diria que é uma daquelas obras carregadas de personalidade que tanto pode agradar a um bom número de leitores, como desagradar a outros tantos.
NOTA FINAL (1/10):
7.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Gato do Rabino #6 - Não terás outro Deus além de mim
Autor: Joann Sfar
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2021
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