Em boa altura a editora ASA apostou no lançamento de Spirou de Autor. Essa aposta – que só pecou por tardia e que espero que possa ir além da publicação de álbuns de Émile Bravo – iniciou-se quando a editora lançou, no ano passado, Spirou - Diário de Um Ingénuo, de Émile Bravo. É um álbum fabuloso, do qual já aqui falei e que este ano acabou mesmo por vencer os Prémios de Banda Desenhada da Amadora para Melhor Obra Estrangeira. Distinção merecida.
Mas se Diário de Um Ingénuo funciona como um convite de entrada para o universo imaginado por Émile Bravo para a personagem de Spirou, este A Esperança Nunca Morre, uma mini-série com quatro volumes, que continua a história de Diário de Um Ingénuo, mergulha-nos num enredo (mais) adulto, (mais) pesado, (mais) triste e que nos deixa sem rede perante a forma como uma criança, ou um jovem, enfrenta a dura realidade. A Esperança Nunca Morre bem que podia chamar-se “Como Perdem os Jovens a Esperança no Mundo”. Sim, é bom que a esperança nunca morra, mas aos olhos dos crimes de guerra que a humanidade perpetra sobre si mesma, essa esperança vai sendo cada vez mais ténue. E nos dias que enfrentamos, não só com o conflito na Ucrânia, como também com os genocídios feitos na faixa de Gaza, livros como este A Esperança Nunca Morre lembram-nos da fase em que, na nossa adolescência, o mundo passou de um globo multicolorido e alegre, para uma esfera a preto e branco e demasiado triste.
Seguindo os eventos decorridos na Primeira Parte desta tetralogia, Spirou e Fantásio fazem o que podem para sobreviver às tormentas inerentes à Segunda Guerra Mundial e a todas as privações, medos e inseguranças que a mesma traz consigo, numa Europa a experienciar a hora mais negra da sua história. Num quotidiano onde o medo está instalado e onde o bem e a moralidade parecem ter sido esquecidos, Spirou, em idade adolescente, ainda que esteja nutrido por essa ingenuidade e esperança que parece dotar todos os jovens e crianças – e aqueles que, mesmo durante a vida adulta permanecem crianças – começa, lenta mas gradualmente, a tomar consciência da realidade que o rodeia.
Assim, entre o teatro de fantoches que cria com Fantásio para entreter as crianças, entre o despoletar das paixões não correspondidas ou entre a tentativa de ajudar os mais necessitados, dando-lhes provisões para os tempos difíceis que se fazem sentir numa Bélgica ocupada pelos nazis, Spirou acaba por tomar parte e ação na Guerra, ajudando vários judeus que procuram contrariar um destino malfadado.
A história está carregada de vários pequenos momentos mundanos que procuram servir como tela para os eventos maiores e mais impactantes que, de uma forma ou de outra, acabam por surgir. Admito que, por vezes, talvez sintamos uma ligeira sensação de repetição, que pode tornar a leitura um pouco mais entediante do que aquilo que seria expetável. No entanto, estou certo que Émile Bravo o fez propositadamente. Para quê? Bem, para que a leitura possa ir embalando o leitor e, quando este menos espera, rapidamente sinta acercar-se dele um evento com a força de um terramoto emocional!
Acho particularmente louvável que o autor não tenha caído nos clichets habituais dramáticos deste tipo de histórias. Em vez disso, parece optar por nos oferecer um retrato esperançoso e positivo até. Todavia, quando se vive o que se viveu na Europa entre 1939 e 1945, até o quadro mais esperançoso e positivo é ineficaz perante toda a catástrofe de justiça, valores e moralidade, sem nexo e sem razão, que afetava a Europa. Portanto, lá está, sendo positivo e mascarando-se num aparente humor oriundo das peripécias onde Fantásio se mete, o tom da história acaba por ser infinitivamente triste. Estão a ver a abordagem que o igualmente fantástico filme A Vida é Bela, de Roberto Benigni, fez da Segunda Guerra Mundial? Com as devidas distâncias, claro está, este A Esperança Nunca Morre... também consegue fazer isso mesmo: parecer ser leve e suave e, ao mesmo tempo, ter uma força bruta que nos consome por dentro e que faz, qual ironia no título da obra, perder a esperança na humanidade.
Sendo esta série uma abordagem única e ousada do universo do personagem Spirou, um dos ícones mais queridos da banda desenhada franco-belga, considero especialmente inspirada e, até mesmo, audaz, a forma como Bravo conseguiu juntar numa só história tanta coisa. E se Diário de Um Ingénuo é um daqueles livros que, como referi, pode e deve ser lido por miúdos e graúdos, com A Esperança Nunca Morre… a leitura torna-se inequivocamente para os mais velhos, dado o seu peso emocional. Até porque as questões morais levantadas e a abordagem narrativa madura e complexa, consegue aprofundar a história e a psicologia das personagens, tornando o conjunto muito mais sombrio e adulto do que as aventuras tradicionais de Spirou.
A caracterização das personagens também é uma das forças da série. Émile Bravo aprofunda a personalidade de Spirou, Fantásio e de outras personagens que orbitam à sua volta, mostrando as suas fraquezas e os seus dilemas pessoais. E isso, claro, torna essas personagens mais tridimensionais, fazendo com que os leitores se possam identificar mais com as mesmas. E não esqueçamos que a evolução das personagens ao longo da série também é notável, pois à medida que enfrentam os desafios da guerra e descobrem facetas ocultas de si mesmas, vão-se modificando. Com efeito, o Spirou do terceiro volume da série já é bem diferente do Spirou do primeiro volume ou de o Spirou de Diário de um Ingénuo. E estou certo que no próximo e último volume, ainda será mais diferente. Mas também assim somos todos nós. Não somos a mesma pessoa por muito tempo… evoluímos, mudamos, crescemos, sobrevivemos.
Para além da belíssima e marcante história, o traço de Émile Bravo também é igualmente notável. O seu traço em linha clara – que muito lembra o Tintin de Hergé – apresenta-se rico em detalhes e expressividade, o que contribui para a imersão do leitor na atmosfera da Segunda Guerra Mundial. Bravo captura com maestria a ambientação da época, desde os trajes até aos cenários, proporcionando um visual autêntico que enriquece a narrativa.
Devo dizer que, em termos de planificação, que é (demasiado?) clássica, como a maioria das pranchas tem entre 12 a 16 vinhetas, talvez a leitura se vá ressentido um pouco dessa opção estética, tornando-se pouco dinâmica e mais repetitiva. Compreendo que foi algo pensado pelo autor que procurou, certamente, prestar homenagem a alguns clássicos da banda desenhada franco-belga. E nisso, foi bem sucedido, claro. No entanto, considero que a leitura poderia sair beneficiada se houvesse mais vinhetas de maior dimensão ou uma planificação não tão restrita que permitisse que a narrativa visual respirasse melhor. E a prova disto é que nos poucos exemplos em que Bravo opta por nos dar estas vinhetas maiores em dimensão, consegue sempre, sem exceção, momentos impactantes para o leitor. Mas são opções, claro.
A edição da ASA está bastante bem conseguida. Os livros apresentam capa dura baça, com bom papel brilhante no interior. A encadernação e a impressão também são boas em qualidade. Devo dizer que gostaria que houvesse espaço para a introdução de alguns esboços e informações adicionais sobre a obra. No entanto, tenho que admitir que, em termos de edição, a ASA dá-nos aqui um bom trabalho.
Em jeito de conclusão, posso dizer sem grandes pudores que esta é, de caras, a melhor série que a ASA tem no seu catálogo, neste momento. É obrigatória para todos os que apreciam uma bela, madura e marcante história, e consegue ser muito bem desenhada, também. No fundo, é obrigatória para todos os que gostam de banda desenhada. Por ventura, até mesmo para aqueles que não leem banda desenhada. Que venha depressa o quarto e último volume desta obra prima da banda desenhada!
NOTA FINAL (1/10):
9.7
-/-
Spirou - A Esperança Nunca Morre... - Segunda Parte – Um Pouco Mais Perto do Horror
Autor: Émile Bravo
Editora: ASA
Páginas: 92, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 319 mm
Lançamento: Março de 2023
Autor: Émile Bravo
Editora: ASA
Páginas: 116, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 319 mm
Lançamento: Outubro de 2023
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