Armazém Central – Volumes 1, 2 e 3, Marie, Serge e Os Homens, de Loisel e Tripp
Já aqui escrevi bastante sobre Armazém Central. Os leitores atentos do Vinheta 2020 saberão que esta é uma das bandas desenhadas da minha vida, marcará sempre presença entre as 3/5 melhores bandas desenhadas de sempre, para os meus gostos, claro está. Que eleva o género da BD a um patamar raro de qualidade.
E se hoje faço esta análise conjunta aos volumes 1, 2 e 3,
Marie,
Serge e
Os Homens, respetivamente, que a
Arte de Autor teve a fantástica iniciativa de retomar, naturalmente irei transcrever muito daquilo que eu próprio
já escrevi há uns meses, em Outubro, quando a editora portuguesa publicou o seu primeiro álbum duplo da série, que continha os volumes 4 e 5,
Confissões e
Montreal. Como foi o primeiro álbum que a editora optou por lançar – uma vez que, há uns largos anos, a ASA ainda tinha lançado os volumes 1, 2 e 3 em Portugal – tentei nessa minha análise fazer um breve resumo do enredo desta saga para conseguir situar os leitores que conheceram a série pela primeira vez.
Lembro-me que, nessa altura, também vi vários leitores céticos com o facto da editora ter começado a editar
Armazém Central a partir dos volumes 4 e 5. Mas agora já ninguém pode chorar com isso. Menos de um ano se passou desde então e a Arte de Autor já lançou o primeiro volume,
Marie, logo no primeiro semestre de 2021 e, há umas semanas, lançou mais um álbum duplo que contém os tomos 2 e 3,
Serge e
Os Homens. Ora, se tivermos em conta que no próximo mês de Setembro deverá chegar-nos o próximo álbum duplo com os volumes 6 e 7,
Ernest Latulippe e
Charleston, e que é expetável que no início de 2022 seja publicado o último volume, que reunirá os números 8 e 9
As Mulheres e
Notre-Dame-des-Lacs, podemos dizer que, em pouco tempo, cerca de um ano e meio, teremos uma série de qualidade máxima, composta por 9 volumes, começada e finalizada pela Arte de Autor. Não será isso fantástico?! Logicamente que é!
E fantástica também é esta série, da primeira à última prancha, com uma inspiração, um requinte, uma elegância, uma qualidade por parte dos autores que a assinam, Loisel e Tripp que, se não é inédita, é muito rara de encontrar por esse mundo fora da 9ª arte.
Como já escrevi, embora seja uma série em 9 volumes, é uma saga muito equilibrada entre si, não havendo propriamente "altos e baixos". Na verdade, e a meu ver, apenas existem "altos". Portanto, é um daqueles casos em que me parece que os autores souberam contar uma bela história e ilustrá-la com altos padrões de qualidade, também. É, pois, justo, analisá-la, descrevê-la, catalogá-la e mencioná-la sempre como um todo porque, de facto, não sinto que se possa dizer que os tomos
x são
y é espetaculares e que os tomos
a ou
b são mais fracos. Não é isso que acontece aqui porque
Armazém Central acaba por ser uma grande história que simplesmente se divide em 9 volumes. Como se fossem 9 capítulos de uma mesma história. Por isso, compreendam que falar de um tomo ou de outro será sempre muito semelhante e é por isso que optarei por aqui transcrever parte daquilo que já escrevi na
análise a Confissões e Montreal e que é transmissível a toda a série:
«Como sintetizar a vida humana, as relações que criamos, os medos que desenvolvemos, a necessidade de aceitação, a construção de valores - e respetivo reajuste dos mesmos? E como ultrapassar o luto com que nos vamos deparando ao longo das nossas vidas? E a propensão de ultrapassar as barreiras que se vão colocando na nossa jornada? Como adocicar a existência de vidas amargas? O que é que nos diferencia verdadeiramente dos animais? Será (apenas) a inteligência ou, também, o facto de criarmos relações intensas entre nós? Qual é, então, o papel de cada pessoa numa sociedade?
Armazém Central propõe-nos, senão uma resposta a todas estas questões, pelo menos, um cuidado vislumbre para que, na pele de algumas personagens fictícias inesquecíveis, possamos ver o reflexo de nós mesmos. Esta é uma rara e singular obra-prima da banda desenhada. Como que um poema em que os versos são vinhetas e os sonetos são pranchas. O coração enche-se, o nó na garganta instala-se e o resultado desta leitura é algo que, dificilmente, deixará leitores insatisfeitos. Diria que, para conseguir apreciar este portento da 9ª arte, apenas é solicitado uma coisa aos leitores: que tenham sensibilidade e maturidade. Sem isso, talvez esta banda desenhada não possa ser apreciada. Afinal, aqui não há uma ação rápida. Nem pensar! As coisas vão acontecendo de forma lenta, suave e subtil. Assim são as mudanças numa sociedade, certo?»
Esta é uma série desenhada e escrita “a meias” pelos autores Régis Loisel e Jean-Louis Tripp. Ambos escrevem e ambos desenham. O processo é original porque, embora as ilustrações de Loisel nos remetam para outros dos seus trabalhos, como
Em Busca do Pássaro do Tempo ou a adaptação para bd de
Peter Pan (que a ASA recentemente
publicou integralmente em Portugal), a verdade é que, em
Armazém Central, os desenhos acabam por ser algo diferentes – e melhores, a meu ver – devido ao contributo de Tripp que acrescenta individualidade e profundidade às ilustrações. Os autores acabam por criar um terceiro ilustrador, através dos seus esforços conjuntos.
«O resultado é uma ilustração bastante detalhada, embora muito “riscada”, numa base de esquisso, que acentua as sombras de forma muito demarcada e rabiscada, conseguindo obter uma aura muito artística. E a este processo magnífico e cuidado de ilustração ainda se juntam umas cores suaves que atenuam a força das sombras dos desenhos. É um estilo de ilustração que serve perfeitamente o tom humanizante e dramático das situações que habitam esta narrativa.
O universo rural está magnificamente retratado. O estilo de desenho, típico na arte de Loisel, acentua as feições da cara, oferecendo-lhes um aspeto algo caricatural, mas sério no trato. Como se fosse um próprio mundo, extraído da mente dos autores. A forma como as emoções das personagens são tratadas é verdadeiramente excepcional. Se um olhar diz muitas coisas, os olhares destas personagens dizem-nos mil coisas e, muitas vezes, um simples silêncio está repleto de muitas nuances e significados. E isso só é conseguido quando a arte da ilustração se transcende.
Se graficamente é uma obra sublime, a história, sendo simples, é magnifica no seu todo também!»
Nestes primeiros três volumes, é-nos apresentada a pequena aldeia de Notre-Dame-des-Lacs, situada numa pequena província do Quebeque, no Canadá, no ano de 1926. Esta é uma aldeia perdida no tempo, completamente rural, onde existe um equilíbrio natural – embora ténue, porque assim é o equilíbrio das sociedades criadas pelos Homens – quer a nível de valores, quer a nível económico, quer a nível sociocultural.
Félix Ducharme é o dono do Armazém Central – uma mercearia que vende todas as espécies de bens essenciais para a população local – e, logo nas primeiras páginas do primeiro livro, somos confrontados pela sua morte, que nos é narrada pelo mesmo, na primeira pessoa do singular. A partir daí, Marie, a esposa de Félix, do qual não teve filhos, fica sozinha e desesperada pois estávamos num tempo em que as mulheres mais não eram do que as sombras dos seus maridos. Sozinha e desamparada, Marie vê-se forçada a pôr mãos à obra e a travar o seu próprio destino. Passa então a ser ela a pessoa responsável pelo antigo negócio do marido. Naturalmente, qualquer mudança brusca e inesperada, traz consigo inúmeras dificuldades e pedras no caminho. Mas Marie é perseverante e com a ajuda de amigos, consegue reestabelecer-se.
Se o primeiro tomo é uma porta de entrada já por si fascinante para o mundo imaginado por Loisel e Tripp, é no segundo tomo, com a chegada de Serge, que irá proporcionar um abalo, a todos os níveis, na pequena aldeia de Notre-Dame-des-Lacs, que
Armazém Central ainda se torna mais delicioso de acompanhar. Serge é diferente em tudo em relação à população da aldeia: é instruído, viajado, culto e parece saber um pouco sobre todos os assuntos. Logicamente, a sua chegada despoleta comportamentos e reações novos para aqueles que os rodeiam.
Quanto ao tomo 3, Os Homens, é o volume de um primeiro embate pessoal entre Serge, aqueles que já o admiram e aqueles que não nutrem por si tanta simpatia assim. Para os homens, pessoas rudes do campo que se encontravam fora de casa durante longas jornadas de trabalho na indústria lenhadora, Serge simboliza tudo aquilo que eles não são. E, logicamente, a primeira reação à diferença é a desconfiança e o desagrado. Neste terceiro volume também se sente que a relação de Serge e Marie está quase a consumar-se. Contudo, nem tudo é o que parece e no final do terceiro volume é-nos dada uma revelação inesperada.
Estes são os elementos base do enredo destes primeiros três livros. Mas é nas entrelinhas, naquilo que fica por dizer, que
Armazém Central sobe ao Olimpo das melhores bandas desenhadas que já li. Afinal, e como já escrevi,
«esta é uma história magnífica, adulta, profunda, madura e que se pode comparar a uma boa telenovela ou série de tv, daquelas em que criamos uma relação profunda com as personagens. E onde o enredo é tecido de forma magistral pelos autores Loisel e Tripp. O ritmo de ação é lento e comedido, convidando o leitor a mergulhar naquilo que aqui se passa. E o que se passa é de tudo um pouco: temas como a emancipação das mulheres, o desafio dos valores impostos, as opções sexuais, os problemas de foro psicológico, a luta entre homens e mulheres, o papel da religião, a solidão, etc.»
A edição da Arte de Autor é de qualidade máxima, como não podia deixar de ser: os livros têm capas duras com textura aveludada, que tanto aprecio, papel de primeira qualidade, boas cores, boa encadernação e boa impressão.
Os elogios parecem-me sempre fracos para elevar ao nível justo e merecedo tudo aquilo que Armazém Central é e representa. Se, por algum motivo que a razão desconhece, eu fosse a entidade emissora de Certificados Digitais de Bom Leitor de BD, que atestassem quem eram os leitores requintados, sensíveis, profundos, maduros e com bom gosto de banda desenhada, então a leitura e conhecimento da série Armazém Central teria que ser um dos requisitos primordiais para obtenção desse Certificado.
Afinal, e termino como também terminei a análise a Armazém Central #4 e #5, estamos perante «uma série maravilhosa, uma autêntica carta de amor à sensibilidade de cada um de nós e que merece ser (re)conhecida por mais leitores de (boa) banda desenhada. Sendo magnífica nas ilustrações, no argumento e nas questões que levanta, é uma obra fantástica que (também) nos ensina a ser mais humanos, tolerantes e a saber aproveitar e guardar as coisas boas da vida. E de quantas bandas desenhadas podemos dizer isso, afinal? Esta é “A obra-prima” de Loisel e de Tripp e uma ode à banda desenhada enquanto género. Obrigatório conhecer!»
NOTA FINAL (1/10):
10.0
-/-
Armazém Central #1 - Marie
Autores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2021
Armazém Central #2 e #3 - Serge e Os HomensAutores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Julho de 2021