Um Conto de Natal, de José-Luis Munuera
Foi já bem no final do ano passado, já perto da quadra natalícia, que a
Arte de Autor lançou este
Um Conto de Natal, numa adaptação para banda desenhada da autoria de José-Luis Munuera. Digamos que a obra original de Charles Dickens já recebeu inúmeras adaptações. E dentro daquelas que já pude conhecer, recordo, com ternura, a adaptação para desenhos animados e para banda desenhada, da
Disney, mas também gostei muito da versão dos
Marretas ou, mais recentemente, da versão para cinema de Robert Zemeckis, que conta com Jim Carrey no papel de Scrooge.
Em banda desenhada, tirando a adaptação da Disney, com Tio Patinhas enquanto personagem principal, não conheço tantas versões assim. Li, há uns tempos,
a versão que a Levoir editou na sua coleção dos Clássicos da Literatura em BD e li, também na mesma altura, esta versão de José-Luis Munuera. Entre uma e outra versão, estamos perante um
no-brainer, como dizem os ingleses: a versão da Arte de Autor é infinitamente melhor do que a da Levoir. Sendo verdade que a versão publicada pela Levoir cumpre com os mínimos e não é, propriamente, horrível, nem nada que se pareça, esta versão publicada pela Arte de Autor, tem outra qualidade. E, sejamos sinceros, até eleva - ou, pelo menos, tenta elevar - de alguma forma a obra original de Dickens.
E isso acontece, essencialmente, pela forma equilibrada, entre a livre adaptação e a lealdade para com a obra original, que foi encontrada por Munuera nesta sua adaptação. Com efeito, se é verdade que a narrativa que nos é dada obedece à estrutura montada por Charles Dickens, não deixa de ser menos verdade que a simples opção por optar por apresentar Scrooge como sendo uma mulher, trouxe mudanças de sobeja relevância à história.
Assim, e começando por aí, em vez de Scrooge ser um velho rezingão e sovina, nesta adaptação Scrooge é uma bela mulher, bem mais jovem, cujo nome é Elizabeth. A ação decorre em Londres, no ano de 1843, e começa no ponto em que todos os habitantes se preparam, de forma entusiasmada, para a celebração do natal. Bem, há uma exceção em termos do entusiasmo pelo natal que dá pelo nome de Elizabeth Scrooge. Esta, é uma mulher de negócios, extremamente rica e que não se preocupa com desgraças alheias. Talvez por isso, não surpreende que, para ela, toda a ideia do natal não faz qualquer sentido, visto que este serve apenas para que se gaste dinheiro de forma desenfreada e irracional. Para Elizabeth, interessa é o lucro, o trabalho e o dinheiro.
Mas, ao contrário do Scrooge original de Dickens, a Elizabeth de Munuera, parece ter uma noção clara da sua persona. E mesmo que muitos a considerem egoísta e avarenta, Elizabeth acha-se apenas inteligente, racional e extremamente prática.
Eventualmente, os espíritos aparecem para a visitar, levando-a ao seu natal passado, presente e futuro, mas mostrando, também, que pessoa ela poder-se-ia ter tornado se tivesse feito outras escolhas na vida. Apesar daquilo que lhe é mostrado, Elizabeth não opera em si mesma uma revolução de comportamento e atitude tão drástica como aquela que o Ebenezer Scrooge original efetua. Pelo contrário, estas visitas dos espíritos até parecem sedimentar uma certa forma de estar que Elizabeth defende. É óbvio que surgirão alterações na personagem – afinal de contas, todos temos coisas a melhorar – mas, não é uma mudança (tão) radical.
E acho que é aí mesmo que, em termos de argumento, Munuera mais nos surpreende. É que o facto de a protagonista ser uma mulher, acaba por significar uma diferença nos comportamentos adotados face aos mesmos estímulos. É certo que o facto de esta ser mais uma história que se junta ao leque de obras WOKE, tão em voga nos dias de hoje, que pega em premissas passadas e substitui, por exemplo, o homem pela mulher, o branco pelo negro, o heterossexual pelo homossexual, foi algo com potencial negativo, quanto a mim. E digo-o apenas por esta razão: essa postura de tentar resolver o passado do universo, assumidamente paternalista, já começa, na minha opinião, a ser algo um pouco forçado e pouco natural. Mas, mesmo assim, e felizmente, não acho que Munuera tenha abusado neste tipo de questões, mesmo sendo verdade que é uma obra que procura mostrar a igualdade (ou superioridade?) da mulher face ao homem, ao mesmo tempo que declara – e bem! – que a mulher deve ousar ser e seguir aquilo que quer ser e seguir, e não aquilo que a sociedade espera de si.
A leitura é fácil e escorreita, podendo ser feita pelos mais novos ou, com adicionais camadas de reflexão e interesse, pelos mais velhos.
Quanto às ilustrações contidas neste livro, posso dizer-vos que fiquei muito, muito agradado. Afinal de contas, já conhecia o trabalho do autor de outros livros, e já tinha como garantia que o mesmo tem um estilo que muito me agrada. Com um traço dinâmico, bem ao jeito do estilo de
Spirou e de séries congéneres em termos de ilustração – ou, aliás, não tivesse já o próprio Munuera ilustrado álbuns do
Spirou – os desenhos do autor oferecem-nos personagens com um estilo bastante "cartoonizado" e com expressões muito vincadas. Algo de que muito gosto e a que chamo, muitas vezes, o “franco-belga moderno”. Este livro não é exceção e vamos encontrado belos desenhos ao longo do mesmo.
O que eu não estava à espera, e que me surpreendeu bastante, é que, neste Um Conto de Natal, o autor parece dar-nos duas das suas facetas ilustrativas. Se as personagens são “abonecadas” e muito europeias no estilo de desenho, os cenários apresentam um estilo completamente diferente, mais realista, parecendo ter sido desenhados por outro autor. Aliás, basta olharmos para a capa do livro para percebermos isto que acabo de dizer: na capa vemos Elizabeth Scrooge num estilo bastante "cartoonizado", enquanto que o cenário – neste caso, o prédio que rodeia a personagem – é feito num estilo muito mais realista e estilizado. Mas isto vai acontecendo por todo o livro.
Confesso que, ao princípio, fez-me um bocado de confusão, pois dava-me a ideia de que as personagens estavam algo deslocadas dos cenários onde se inseriam. Contudo, devo dizer que, à medida que a minha leitura foi avançando, comecei a habituar-me à convivência destes dois estilos de ilustração. Na verdade, até me quer parecer, que foi um claro objetivo do autor, que acabou por ser bem sucedido. E, convenhamos, qualquer um dos “estilos” de que estou a mencionar é extremamente bem executado.
Já para não falar que a conceção dos diferentes fantasmas que visitam Elizabeth - e os belos efeitos visuais que rodeiam estas cenas - também me deixou muito agradado, sublinhando ainda mais os diferentes estilos de ilustração que o autor nos consegue dar, sem perda alguma de qualidade de execução. Portanto, olhando para a ilustração, "primeiro estranha-se, mas depois entranha-se". Acaba por ser um álbum lindíssimo no cômputo visual.
Em termos de edição, temos aqui mais um bom trabalho da Arte de Autor. O livro apresenta capa dura e baça, com alguns elementos da mesma a receberem aplicação de verniz. O papel baço utilizado no miolo do livro também me parece ter sido a melhor opção para bem aproveitar a beleza visual das ilustrações do autor.
Em suma, posso dizer que este Um Conto de Natal foi uma bela surpresa, pela forma como reinventa o clássico de Charles Dickens. Confesso que temi que o autor apenas estivesse preocupado em fazer mais uma história de cariz WOKE, que parece ser a norma por estes dias. Mas, felizmente, eu estava errado, uma vez que Munuera vai mais além e acaba por fazer belas reflexões sobre a mulher e os papéis que todos nós, sociedade, esperamos da mesma.
NOTA FINAL (1/10):
8.6
-/-
Um Conto de Natal
Autor: José-Luis Munuera
Editora: Arte de Autor
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Novembro de 2022