segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Análise: Bairro Distante

Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir

Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir
Bairro Distante, de Jiro Taniguchi

A editora Devir vive um dos melhores momentos na edição de banda desenhada dos últimos anos! E prova disso é a recente notícia que até no mercado franco-belga e americano de banda desenhada a editora pretende entrar no próximo ano.

Mas, falando do mercado japonês, também é relevante e digno de elevada nota que a editora, de há um par de anos para cá, tenha concentrado alguma da sua atenção na edição de mangás destinados a um público mais maduro.

E este Bairro Distante, de Jiro Taniguchi, que hoje vos trago, é um belo exemplo dessa aposta de qualidade, assumindo-se como um dos mangás da editora mais obrigatórios. Não apenas para quem já lê mangá, mas para todos os que apreciam boa banda desenhada!
Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir
Sendo Jiro Taniguchi conhecido por ter o estilo mais europeu dos autores japoneses, não será surpresa para muitos leitores portugueses - que têm acarinhado as várias edições portuguesas (pela Devir e pela Levoir) das obras do autor - que o seu trabalho seja de singular qualidade. E lamentavelmente, faltava que Bairro Distante, uma das obras (compreensivelmente) mais aclamadas do autor, também por cá fosse editada. Felizmente, há poucas semanas essa lacuna editorial ficou corrigida. Até porque, a par de Diário do Meu Pai, este foi o melhor livro que li do autor.

Bairro Distante apresenta uma premissa de história muito original e interessante que assenta numa questão muito simples: e se fosse possível voltarmos atrás no tempo?

O tema não é novo e já foi bastante explorado em vários livros e filmes. Não obstante, Jiro Taniguchi dá-nos uma versão diferenciada e poética deste conceito da passagem do tempo que sempre atormentou a humanidade. Para tal, utiliza a personagem Hiroshi Nakahara como catalisador dos seus intentos filosóficos.

Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir
Nakahara é um homem de meia idade, casado e pai de família, que regressa inesperadamente ao seu tempo de adolescente, quando tinha 14 anos. A partir daí, reencontra antigos colegas de escola, amores da adolescência e a sua família. Mas o que é curioso é que, ao contrário de todos aqueles que o rodeiam, Nakahara tem perfeita noção de que é um homem em meia idade no corpo e vida de um adolescente. Como tal, nesta segunda oportunidade de uma experiência adolescente, vai agindo de forma diferente, pois tem consigo toda a bagagem e maturidade de um homem vivido. O que vai fazer com que o seu comportamento destoe face àquilo a que aqueles que o rodeiam estariam à espera. E, apenas e só por isso, vai acabar por remexer no natural desenvolvimento natural da sua primeira "vida". Se alteramos pequenas coisas no nosso passado, estamos a alterar o nosso futuro, certo?

O protagonista revisita vários momentos significativos da sua infância e adolescência, incluindo as suas relações com amigos e o seu primeiro amor. A narrativa explora temas como a nostalgia, a solidão e a passagem do tempo. A obra é, pois, um convite à introspecção, mostrando como o passado molda quem somos e como, muitas vezes, procuramo-nos reconectar com aquilo que fomos perdemos ao longo da nossa caminhada.

Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir
A habilidade de Jiro Taniguchi em entrelaçar narrativas pessoais com reflexões universais sobre a vida e sobre o tempo é um verdadeiro achado, através de uma abordagem sensível e contemplativa, que permite que os leitores se identifiquem com as experiências do protagonista, mesmo que, expetavelmente, as suas vidas sejam diferentes daquela que nos é dada por Taniguchi. Todos temos a nossa própria caminhada, mas também não deixa de ser verdade que a nossa caminhada tem muitos pontos em comum com a do próximo. 

A obra destaca a fragilidade das conexões humanas e como elas podem dissipar-se ao longo do tempo, mas também sugere a possibilidade de redescoberta e reconciliação. O tempo é representado não apenas como uma sequência de eventos, mas como um agente que transforma a percepção de cada momento. 

A história é muito bem pensada e muito bem desenvolvida, explorando várias nuances possíveis. Achei o tema do alcoolismo como algo um pouco forçado - e que distrai do tema principal - mas diria que isso é uma pequena queixa minha num álbum tão bonito e tão recomendável!

Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir
A arte ilustrativa de Taniguchi também é uma componente essencial da narrativa. O seu estilo é caracterizado por traços delicados e finos, e por um uso eficaz de sombras e luz, que ajudam a criar uma atmosfera melancólica e introspectiva. As ilustrações muitas vezes capturam a beleza do quotidiano, reforçando a ideia de que mesmo os momentos simples podem ter um profundo significado.

São-nos dadas algumas pranchas a cores onde fica claro que a obra teria sido ainda mais bela do ponto vista gráfico se tivesse sido lançada inteiramente a cores. Mas estamos a falar de uma obra mangá onde isso não é prática comum. O que é uma pena. Portanto, um aviso aos leitores mais incautos: se as imagens promocionais da obra aqui partilhada são a cores, a verdade é que são apenas a minoria desta obra que é, mais de 90%, a preto e branco.

A edição da Devir apresenta capa mole baça sem badanas, mas com uma sobrecapa que protege o livro, que também tem um formato maior face àquele mais utilizado pela editora na maior parte da sua oferta em mangá. No miolo, o livro apresenta papel decente e uma boa impressão e encadernação. É de louvar que a edição da Devir reúna num só volume, e de forma integral, os dois volumes em que a obra foi originalmente lançada.

Em suma, Bairro Distante é uma obra que transcende as barreiras culturais, ressoando com qualquer leitor que já tenha refletido sobre o seu próprio passado. A habilidade de Taniguchi em capturar a essência da experiência humana, aliada à sua estética visual, transforma esta obra numa meditação poética sobre a vida, sobre a memória e sobre o que significa realmente pertencer a um lugar. Se há obras completamente indicadas para que um leitor se possa iniciar no mangá, esta é uma delas!


NOTA FINAL (1/10):
9.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Bairro Distante, de Jiro Taniguchi - Devir

Ficha técnica
Bairro Distante
Autor: Jiro Taniguchi
Editora: Devir
Páginas: 421, a preto e branco (com algumas páginas a cores)
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Setembro de 2024

Análise: A Educação Física

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House
A Educação Física, de Joana Mosi

A Iguana, uma chancela do grupo editorial Penguin Random House, publicou há poucas semanas o novo livro de Joana Mosi que dá pelo (curioso) nome de A Educação Física. E ainda antes de falar do novo livro, uma nota tenho que dar: parece-me de relevância o facto da Iguana ter vindo, cada vez mais, a apostar "mais a sério" em banda desenhada. Com efeito, de ano para ano se vê, por parte deste Grupo, a aposta em nova banda desenhada. E até com um especial ênfase em autores nacionais. 

Desta feita, o novo recrutamento nacional incidiu em Joana Mosi, uma autora com provas dadas em várias das suas obras. Relembro até que o seu último livro, O Mangusto, editado pel' A Seita, recebeu dois VINHETAS D'OURO de uma só vez (Melhor Obra de Autor Nacional e Melhor Argumento de Autor Nacional) no ano passado.

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House

Concentrando-me então neste A Educação Física, nota-se que Joana Mosi, talvez sem encantar, mas também sem desiludir, consegue oferecer-nos uma obra coesa e que assinala bem o quanto a autora (e, por ventura, o próprio mercado nacional?) tem amadurecido desde o seu início. Eis uma obra que não sendo, em teoria, comercial, acaba por ter um forte apelo comercial.

Parece esta afirmação incoerente? Explico melhor, então: acredito que talvez Joana Mosi não seja uma autora com a capacidade de agradar a todos os públicos - especialmente aos leitores de banda desenhada mais clássica - mas, por oposição, também tem o potencial de chegar a um outro público de banda desenhada, trazendo novos leitores para o género.

Goste-se mais ou menos, uma coisa é certa: Joana Mosi tem vindo a sedimentar a sua forma de contar uma história em banda desenhada, parecendo a autora estar num momento em que encontrou o seu estilo próprio, a sua forma de comunicar. Quer no tipo de história, quer no tipo de ilustração, Joana Mosi tem vindo, pois, a estabilizar o seu modus operandi. Se, por um lado, talvez isso faça com que este A Educação Física não tenha assim tanto de novo, face àquilo que a autora nos deu em O Mangusto, por outro lado, faz com que ambas as obras também acabem por ser leituras complementares. Quem adorou o anterior livro certamente apreciará esta nova empreitada.

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House
Quanto mais não seja porque a autora volta a dar-nos, bem ao jeito de outros autores nacionais, como Bernardo Majer, Joana Estrela ou Ana Pessoa, uma história moderna, bem ambientada nas crises existenciais do nosso tempo e especialmente experienciada por millennials. É por isso que considero que este A Educação Física é de e para millennials. Essa geração de relações pessoais mais casuais, de trabalhos mais precários, inundada por tecnologia e redes sociais, e que vive à mercê de um certo embate brusco com uma realidade que, não sendo trágica do ponto de vista político-social, também não parece trazer uma felicidade muito plena. Mas o que é, pergunto eu, uma felicidade plena? 

A Educação Física centra-se na personagem de Laura que, tendo recebido uma bolsa, se vê com dificuldades de inspiração para escrever o seu novo livro. Além de toda esta batalha criativa interna, a existência de Laura também é pautada por outras atividades quotidianas e idiossincrasias que dão cor e vida à personagem. A casa dos avós precisa de ser esvaziada e arrumada e o seu namorado, que vê apenas de quando a quando, é um homem casado com outra mulher. Além de tudo isto, ir ao ginásio - pelo qual se paga uma mensalidade - passou a ser um objetivo de Laura e das suas amigas quando, na verdade, nos tempos de adolescente, a aula de educação física - gratuita - era a que menos Laura e as amigas apreciavam. Há, pois, um certo vazio, um certo descontentamento, um certo sentimento agridoce na passagem da idade adolescente para a primeira idade adulta. E isso está impregnado um pouco por todo o livro, revelando uma obra algo resignada e onde ficam a pairar no ar certas pistas reveladoras de possíveis notas autobiográficas na obra.

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House
Mesmo assim, o estilo da obra é slice of life, procurando - mais do que tirar ilações diretas e rápidas - fazer o leitor refletir apenas pela observação direta destas personagens. Sem juízos ou sem sermões. Como se a obra também fosse um espelho refletor de uma nova geração. E diria que essa é uma das boas valências desta obra. 

Uma nota para o ritmo, lento, onde, mais uma vez, a autora parece especialmente dotada, fazendo a leitura - e, por conseguinte, o leitor - bailar ao ritmo lento que interessa à autora, através de frames, de pinceladas nos pormenores que habitam a história que é montada através de uma planificação propositadamente anárquica.

Em termos de desenho, o que merece mais destaque pela positiva é um certo erotismo, conseguido com vários planos próximos de detalhe que nos remetem para o melhor que o autor Bastien Vivès já nos ofereceu nas suas obras. Infelizmente, estes momentos até não são muito frequentes. O que me deixa até a pensar que adoraria, numa oportunidade futura, ver um livro de cariz demarcadamente mais erótico por parte de Joana Mosi, já que a autora consegue transpor para as suas pranchas pequenos fragmentos e vislumbres de imagens belas do corpo das personagens que se alojam na nossa memória.

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House
Mesmo assim, o estilo rápido, circunspeto a simplistas e lineares traços, onde, em certos casos, as personagens nem apresentam boca, olhos ou narizes, torna a experiência abstrata e por vezes um pouco mais vazia do que o desejável. Nuns casos funciona bem, centrando a atenção do leitor nos tais detalhes que já mencionei. Mas noutras situações admito que gostaria de ver um maior aprimoramento dos desenhos. Até porque, não esqueçamos, a autora já revelou ter esses skills técnicos em algumas das suas primeiras obras em BD.

A edição da Iguana é em capa mole baça com badanas. No miolo, o livro apresenta papel brilhante. Tendo em conta o estilo de ilustração da autora, não me parece que esta tenha sido a melhor opção. Acredito que um papel mais baço teria servido melhor o trabalho de Joana Mosi. Mas talvez seja uma questão subjetiva. De resto, o livro apresenta um bom trabalho ao nível de impressão e encadernação.

Em suma, A Educação Física é a confirmação da voz criativa de Joana Mosi num bom livro de banda desenhada que mesmo podendo (e devendo) não agradar ao leitor de BD mais clássica, terá o condão de apelar a novos leitores. O que é bom. Precisamos de uma banda desenhada nacional heterogénea e que chegue ao maior número possível de pessoas. E a obra de Joana Mosi terá a sua responsabilidade nessa batalha.


NOTA FINAL (1/10):
8.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



-/-

A Educação Física, de Joana Mosi - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
A Educação Física
Autora: Joana Mosi
Editora: Iguana (Penguin Random House)
Páginas: 176, a preto e branco (com algumas páginas a cores)
Encadernação: Capa mole
Formato: 170 x 240 mm
PVP: Outubro de 2024

A Seita lança novo Lucky Luke de autor!



Este já é o sexto álbum da coleção/série Lucky Luke visto por... editado em Portugal! Todos pelas mãos da editora A Seita que, desta forma, iguala o número de álbuns lançados no mercado franco-belga.

Desta vez, estamos perante a edição de Lucky Luke - Os Indomados, da autoria do veterano Blutch. 

Nota positiva para o facto de esta edição incluir um extenso caderno de extras (com 24 páginas, incluindo uma história adicional de Blutch e uma entrevista ao autor!), uma capa alternativa para a Wook e ainda uma edição limitada que inclui um ex-libris e dois prints, numerados de 1 a 100. Gosto quando as editoras se esforçam para tentar diferenciar os seus livros. É o caso.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora e com algumas imagens promocionais.



Lucky Luke - Os Indomados, de Blutch

Pobre cowboy solitário, longe do seu lar...

Para Lucky Luke, é o descanso. Uma última missão, e finalmente a paz... Pelo menos é nisso que acredita, antes de uma miúda obstinada o ameaçar com uma arma, gritando "Mãos para cima, coiote!" Lucky Luke vai descobrir que esta menina, Rose, vive sozinha numa cabana isolada com o seu irmão Casper, depois dos seus pais terem desaparecido.

Lucky Luke decide levá-los de volta ao xerife da cidade... Mas rapidamente percebe que até lá terá de brincar às "amas" com estas crianças particularmente endiabradas! Um papel totalmente inesperado para ele...

Blutch é um dos maiores nomes da banda desenhada franco-belga, vencedor do Grande Prémio da cidade de Angoulême, que cultiva uma visão algo alternativa e sonhadora na nona arte. 

Com este álbum, presta homenagem a uma das suas personagens preferidas, que o ajudou a definir-se como autor, numa história original e invulgar, em que o cowboy que “dispara mais depressa do que a sua própria sombra” é promovido a “cara pálida que atira primeiro e vê depois”!

Os Indomados é mais uma das homenagens a Lucky Luke, em que a Lucky Comics tem sido pródiga, e talvez uma das mais sensíveis e mais certeiras na sua vontade de reencontrar o espírito de Morris e dos álbuns originais da série, comparando com os outros álbuns da nossa colecção Lucky Luke visto por... 

Cheio de piscares de olhos aos livros de Morris e de Goscinny, e cheio de personagens divertidos, desde os dois endiabrados miúdos que vão tornar a vida de Lucky Luke infernal, aos xerifes mais preocupados com a burocracia e a papelada, passando pelo índio que rebaptiza o nosso herói e pelo gang de bandidos clássicos, este álbum é talvez o mais próximo dos originais, num desenho ao mesmo tempo clássico, mas subtilmente cheio do traço mais aventuroso de Blutch.

Blutch que admite ter colocado em cena os seus próprios filhos, incluindo o seu mais novo, autista, que inspira a desarmante personagem de Casper. Este é talvez um dos mais conseguidos álbuns de homenagem a Lucky Luke, por um dos grandes autores contemporâneos.

Como sempre, a nossa edição inclui um extenso caderno de extras, inédito na versão francesa, com esboços, exemplos de planificação, uma biografia e uma entrevista com o autor. Mais ainda, e de especial interesse para os fãs da Blutch (ou para aqueles que acabam de descobrir a sua obra), incluímos uma história curta de 5 páginas criada em 1989, de Pecos Jim, uma personagem de western, num episódio em que ele se encontra com um tal de... Luke, o Sortudo! Deste álbum fizeram-se duas edições distintas, uma normal, e uma com uma capa exclusiva da Wook, de 200 exemplares, 100 dos quais serão vendidos numa caixa que inclui um ex-libris e dois prints, numerados de 1 a 100.

-/-

Ficha técnica
Lucky Luke - Os Indomados
Autor: Blutch
Editora: A Seita
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 215 x 285 mm
PVP: 17,90€