Naturezas Mortas é uma daquelas bandas desenhadas lindas que, lamentavelmente, não está - parece-me - a reunir o hype e a aceitação que merecia. Lançada em conjunto pelas editoras A Seita e Arte de Autor - que, aliás, têm vindo a editar várias obras do argumentista Zidrou, como Lydie, Emma G. Wildford, Verões Felizes ou A Fera - este livro é mais um caso de qualidade e uma prova inequívoca do talento de Zidrou enquanto argumentista.
Desta vez, faz dupla com o autor espanhol Oriol, que também se revela uma aposta ganha garantia para este Naturezas Mortas, já que a sua abordagem gráfica e estilo de ilustração parece diferente de tudo aquilo que já vimos e casa que nem uma luva na história idealizada por Zidrou.
A narrativa da obra centra-se nos últimos anos de vida de Vidal Balaguer i Carbonell, um pintor catalão nascido em Barcelona em 1873. Considerado uma das grandes promessas do Modernismo catalão, Balaguer frequenta o lendário café Els Quatre Gats ao lado de prominentes amigos da cena artística da cidade - como Joaquim Mir, entre outros. A sua carreira, no entanto, revela-se marcada por controvérsias e pelo mistério em torno do seu talento e da sua musa inspiradora.
Essa musa dá pelo nome de Mar e é uma jovem e bela mulher que já encantou muitos outros pintores. Balaguer não é exceção e persegue-a com uma paixão exacerbada. Até ao dia em que Mar desaparece, sem deixar qualquer rasto. E, logo por acaso, Balaguer foi o último a pintar o seu retrato. A partir deste ponto, a narrativa dá uma reviravolta, assumindo um tom quase policial, pois procura-se encontrar a causa do desaparecimento de Mar. E, entretanto, a própria polícia catalã passa a ter Vidal Balaguer como suspeito número um pelo desaparecimento da bela musa. E pelo desaparecimento de outras pessoas.
Zidrou constrói uma narrativa que explora a genialidade e os tormentos de Balaguer, mergulhando nas complexidades da sua personalidade e nas dificuldades que enfrenta para obter reconhecimento. A história aborda temas como a paixão pela arte, a luta contra a obscuridade e a busca incessante por inspiração. Acaba por ser uma abordagem onírica, evocativa e romântica à própria criação artística e ao poder que a mesma pode ter: quer para quem observa uma obra de arte; quer para o seu criador; quer, ainda, para o próprio objeto retratado nessa mesma criação.
A trama não poderia ser mais original, fazendo com que o leitor se interesse e queira responder às inúmeras perguntas que nos surgem à medida que vamos mergulhando na narrativa. Fui remetido, por vezes, para O Retrato de Dorian Gray, o clássico da literatura de Oscar Wilde, mas apenas e só no reflexo entre realidade e meta-realidade contido num retrato de alguém. Depois, parece-me, as duas obras levantam questões diferentes.
Uma breve pesquisa na internet permite-nos saber que, de facto, Vidal Balaguer não existiu. É uma personagem fictícia inventada por Zidrou que, naturalmente, tem em si muito de realidade, já que é inspirada na atmosfera e nos artistas do Modernismo catalão do final do século XIX e início do século XX. E isto leva-me a achar ainda mais fantástica, inusitada, rica e "fora da caixa" a história arquitetada por Zidrou! E o próprio facto dos autores se levarem a sério, nada revelando sobre a não existência na realidade do protagonista, me leva a achar ainda mais incrível e impressionante este Naturezas Mortas.
Por favor, não considerem que estou a fazer qualquer tipo de spoiler ao referir esta informação na minha análise. Como referi, bastou-me uma pesquisa rápida na internet para que chegasse à constatação de tal facto. Além disso, o possibilidade de ser uma personagem ficcional ou não, não impacta em nada a leitura da história. Ou, se impacta, é no sentido positivo. Foi quando soube que a personagem era ficcional, que admirei (ainda) mais a história. Se o soubesse de antemão, partiria para a minha leitura com esse ponto a favor.
Balaguer reflete, ainda assim, temas recorrentes e universais na arte e na literatura: o génio incompreendido, o artista em busca de inspiração e o preço da obsessão criativa. Mesmo sendo uma personagem fictícia, a sua história dialoga com a de muitos artistas reais que enfrentaram a efemeridade da fama e os desafios da criação artística.
A arte de Oriol complementa magistralmente o texto de Zidrou! As ilustrações, que alternam entre técnicas digitais e aguarelas, captam a essência do período modernista catalão e evocam a atmosfera boémia de Barcelona no final do século XIX. A paleta de cores e os detalhes minuciosos transportam o leitor para o universo íntimo de Balaguer, refletindo as suas emoções e conflitos internos. Às tantas, já nem sabemos bem o que são as pinturas de Balaguer e o que é a própria ação "real" da história, com as mesmas a fundirem-se simbioticamente numa só. Fabuloso trabalho!
As cores são lindas, os traços são elegantíssimos e a sensibilidade reinante, fazem com que esta obra também seja singular do ponto de vista de abordagem gráfica! É verdade que, por vezes, especialmente na parte da investigação na história, se pode perder alguma da dinâmica narrativa pelo recurso a um tipo de ilustração tão artístico. Mas isso é um detalhe pequeno, dira.
E como nada podia falhar, a edição deste livro também é verdadeiramente fantástica! Quanto a mim, é uma das melhores edições de banda desenhada lançadas em 2024. A capa é dura e apresenta uma textura muito própria, algo áspera ao toque, que faz lembrar as telas de pintura. O que é uma ponte perfeita para o tema da obra. No interior, o papel é baço e de boa qualidade, enquanto que o trabalho de impressão e encadernação também é bom. O livro possui ainda um bastante extenso dossier de extras, inédito, com 16 páginas onde nos são dadas mais informações sobre Vidal Balaguer, bem como as imagens dos seus vários quadros. O que é fantástico nestes textos informativos, é que há uma preocupação em tornar viável o mito da personagem enquanto pintor que existiu realmente. O livro leva-se a sério e isso até está bem patente, portanto, no conteúdo de extras do mesmo.
A Seita e a Arte de Autor optaram por lançar a obra com uma capa diferente da original, que podem ver aqui ao lado. Ainda que eu goste da capa da versão portuguesa, tenho que admitir que preferia a capa da edição original da obra e lamentei que a mesma não fosse aqui utilizada. Compreendo as razões, já que a capa apresenta a nudez total de uma mulher, com a densa região púbica do corpo feminino em grande destaque. Imagino que a capa entrasse na lista negra do ditador algoritmo das redes sociais, o que impediria que fossem publicados artigos com a mesma. É triste que vivamos num mundo onde a violência e as imagens chocantes abundam por todo o lado, mas que, ao mesmo tempo, se prive a observação de uma coisa tão bela como a nudez de um corpo feminino... mas, enfim, é o que temos. Portanto, ainda que a opção de não incluir a capa original por parte das editoras A Seita e Arte de Autor não me agrade especialmente, tenho que compreender a razão de tal escolha. Se eu fosse editor, teria feito a mesma coisa.
Concluindo, eis-nos perante um livro de qualidade superior com este Naturezas Mortas, que é (mais) uma bela obra extraída da profícua mente de Zidrou que, sendo servida por um trabalho de ilustração magnífico e diferenciado de Oriol, nos oferece uma pertinente reflexão sobre a efemeridade da fama e o valor intrínseco da arte. A obra questiona o que significa ser um artista e os sacrifícios envolvidos na busca pela excelência e reconhecimento. É um livro lindo... não deixem de o ler!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Naturezas Mortas
Autores: Zidrou e Oriol
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 21 x 28,5 cm
Lançamento: Outubro de 2024
Se razão que assistiu á substituição da capa é a indicada então não deixa de ser condenável a posição do editor. A situação poderia ter sido resolvida fácilmente com um pequeno dístico removível ou uma cinta a apanhar o rodapé da capa. Outra solução (mais cara) poderia ter sido o uso de uma sobrecapa (a capa usada) sobre a capa efectiva (sem composição tipográfica) que até lhe daria um aspecto adicional de obra de arte. Enfim...
ResponderEliminarAntónio, atenção que a ilustração da capa original da capa encontra-se no interior do livro, não privando desta forma os leitores de a apreciar. E não sei se a razão que apontei para alteração da capa tenha sido (apenas) aquela que referi. Parti desse princípio apenas.
EliminarViva Hugo. A capa no interior do livro não é uma capa, é uma página de miolo, apenas (mesmo que seja uma folha de rosto). A minha estranheza parte apenas do facto do editor não ter explicado a razão de fundo da mudança quando, bastante tempo antes, na altura do anúncio de lançamento, a capa publicitada tenha sido a original. De todas as edições estrangeiras que conheço, TODAS (e insisto TODAS) usam a ilustração original. A nacional fica-se por uma ilustração de recurso, talvez uma capa de 2ª ou 3ª opção. É triste.
ResponderEliminarCaro António. A capa usada na edição portuguesa foi-o sobretudo porque nem todos os editores gostavam da capa original e porque tínhamos a possibilidade de, graças à generosidade do Oriol, termos uma capa inédita, exclusiva para a edição portuguesa (como de resto são exclusivos da edição portuguesa a maioria das ilustrações dos extras). O facto da capa original complicar a divulgação nas redes sociais também ajudou, mas a razão principal foi porque alguns dos editores não eram tão fãs da capa original como alguns dos leitores.
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