O Nome da Rosa - Volume 1, de Milo Manara
Se
A Bomba foi a grande surpresa editorial da
Gradiva no ano passado, este
O Nome da Rosa é a grande aposta em banda desenhada da editora portuguesa para este ano de 2023.
Até porque, à partida, esta parece ser uma obra destinada ao sucesso! Ou não reunisse dois nomes grandes da literatura e banda desenhada: Umberto Eco e Milo Manara. Se o primeiro é um dos escritores contemporâneos mais célebres, respeitados e bem sucedidos do mundo, Milo Manara é um dos grandes mestres da banda desenhada europeia, que é apreciado e celebrado em todo o mundo. Umberto já venderia bem, sem o nome de Manara, e Manara já venderia bem sem o nome de Eco. Imagine-se, por isso, o potencial desta obra!
O Nome da Rosa foi originalmente lançado em 1980 e, desde logo, se tornou num clássico da literatura. Foi depois adaptado para o cinema por Jean Jacques Annaud, com Sean Connery e Christian Slater nos papéis principais. Quer o livro, quer o filme, foram e são bastante marcantes. Trata-se de um romance histórico complexo e intrincado, que mistura elementos de investigação policial, teologia, filosofia e crítica social.
A história passa-se no século XIV e é-nos narrada pelo jovem franciscano Adso de Melk, que acompanha o seu mentor, Guilherme de Baskerville, um frade franciscano com experiência enquanto juiz do Tribunal de Inquisição, que – talvez por essa experiência - acaba por se revelar um fantástico detetive. E logo que Adso e Guilherme chegam a uma abadia beneditina, situada numa montanha do norte de Itália, deparam-se com uma série de misteriosos assassinatos que ocorrem sem razão aparente.
É uma obra especial por vários motivos. Por um lado, é de uma riqueza histórica grande pois retrata, de forma notável, o período medieval que, como sabemos, não é um tema tão comum assim. Por outro lado, é uma obra repleta de simbolismos, de questões teológicas e filosóficas, que nos fazem pensar e que colocam certos temas, como os dogmas da igreja, em cima da mesa. Finalmente, para além das componentes de reflexão e histórica, O Nome da Rosa é uma obra que consegue tornar-se aliciante de ler, por ter características de romance policial e de thriller, que poderiam figurar num qualquer romance de Agatha Christie. Esta é, afinal de contas, uma história onde se procura achar o assassino.
E não esqueçamos que a prosa de Eco é rica e elaborada, com a presença de inúmeros vocábulos em latim.
Portanto, e face a tudo isto, veja-se como é uma obra difícil de adaptar para banda desenhada. Mas, lá está, Milo Manara é um verdadeiro Mestre da banda desenhada e faz uma adaptação condigna à obra original. O Nome da Rosa não é apenas a banda desenhada do ano para a Gradiva, é também um dos grandes livros do ano em Portugal! Pelo menos, analisando a primeira de duas partes.
É verdade que a adaptação de Manara é difícil de ler em alguns casos. Com tantas expressões em latim e com diálogos intrincados em termos de linguagem, é frequente que tenhamos que voltar atrás no balão que acabámos de ler. Por falar em balão, também há um excesso de balonagem em alguns casos. Não sei até que ponto alguns diálogos poderiam - ou não – ter sido adaptados e/ou simplificados sem que isso, claro está, pusesse em causa a fidelidade em relação à obra original de Umberto Eco. Seja como for, esta característica será, por ventura, a menos positiva da obra. Sem que, reitero, seja necessariamente uma coisa objetivamente negativa. Se for algo negativo, é algo subjetivamente negativo.
Quanto ao desenho, Manara prova mais uma vez – como se isso fosse necessário – que é único e um dos grandes Mestres da banda desenhada mundial. Acaba por ser curioso que esta seja uma história onde praticamente só apareçam homens. Só mesmo já quase no final do livro é que aparece uma sensual mulher, bem na linha daquilo que poderíamos esperar do autor.
Mas, talvez mesmo por esse motivo da ausência de mulheres neste livro, é que o trabalho do autor se torna ainda mais admirável. Até porque apresenta um estilo de desenho muito diferente quando opta por recorrer à prática da gravura para nos dar a conhecer eventos históricos que antecedem ou justificam algumas das ações das personagens. A par deste fabuloso desenho no estilo da gravura/iluminura, o autor oferece-nos um desenho que relembra o seu trabalho recente em
Caravaggio, em que o traço é realista e as cores nos remetem para um estilo clássico, já pouco utilizado na banda desenhada atual.
Falando na temática das cores, é verdade que este O Nome da Rosa apresenta cores um pouco pálidas e tristes, que tornam a estética do livro em algo que pode parecer pouco apelativo em termos visuais. No entanto, parece-me honestamente que foi algo propositado por Manara. Isto porque, quando penso no ambiente visual, quer do livro, quer do filme de Jean Jacques Annaud, também sou remetido para um ambiente algo sensaborão, sóbrio e sério. Afinal de contas, a ação decorre numa fria e séria abadia onde o próprio riso é critivável. Há, portanto, uma sensação de pertença que Manara parece captar na perfeição. Portanto, em matéria de cores, podem não ser as cores que mais aprecio num livro, mas são, quanto a mim, as cores certas e ajustadas para O Nome da Rosa.
Em termos de conceção de anatomia humana e das expressões das personagens, Manara é exímio na forma como as ilustra. E um detalhe curioso é que o autor se tenha inspirado – sem vergonha, tal não é parecença – em alguns atores famosos como Marlon Brando, na personagem de Guilherme de Baskerville, ou Geoffrey Rush, na personagem do Abade Abbone. Com efeito, são tantas as personagens masculinas presentes nesta história, que Manara também tem mérito na forma como as conseguiu diferenciar entre si. Mais depressa confundi os nomes das diferentes personagens, do que confundi as suas caras. Também os cenários são muito belos na forma como são ilustrados. Logo no início, quando acompanhamos a viagem de Adso e Guilherme até que estes cheguem à abadia, parece que estamos mesmo lá ao lado deles, num ambiente tão árido, frio e hostil.
Nota positiva, ainda, para a enorme panóplia de soluções gráficas que o autor utiliza neste livro. Desde desenhos mais surreais, desde cenas mais chocantes, desde pequenas e grandes ilustrações, o autor revela muitas opções, que tornam a leitura mais dinâmica.
Se
O Nome da Rosa é tão apetecível, o único desgosto mais forte com que ficamos após findarmos a leitura, é mesmo o facto de esta ser a primeira parte da obra. Há que esperar pela segunda parte que, expetavelmente, deverá chegar-nos no próximo ano. Compreendo o apelo comercial para se lançar dois livros em vez de um. Mas, pondo-me do lado do leitor, como sempre tento fazer, penso que seria mais benéfico só lermos o livro de forma inteira e corrida, quando o mesmo estivesse pronto/acabado. Sublinho que esta crítica não é destinada à Gradiva, que se limitou a publicar aquilo que havia para publicar, mas sim ao editor original de Manara. Mas, lá está, compreendendo os meandros do mundo editorial, percebo que se opte por dois volumes. Simplesmente, isso não beneficia em nada os leitores.
Quanto à edição da Gradiva, o livro apresenta capa dura brilhante, bom papel brilhante e um bom trabalho a nível da impressão e encadernação. Devo dizer que, em termos de legendagem, quer o tipo de letra, quer o espaçamento entre linhas e entre palavras, deixam um pouco a desejar. Não pude comparar com a versão original, mas espanta-me se a mesma também tiver uma apresentação semelhante à da edição portuguesa, que me distraiu um pouco aquando a leitura. Nota positiva para um dossier de extras com seis páginas, nas quais nos são dados lindos esboços de Manara. A Gradiva está especialmente de parabéns por ter lançado a versão portuguesa muito próxima da edição original italiana, em termos temporais, antecipando-se mesmo à edição da obra em francês.
Em suma, este é um livro com selo de qualidade. Manara prova que, apesar da sua idade, continua dono de um estilo único de desenho, que influenciou, influencia e continuará a influenciar gerações de leitores de banda desenhada. Resta-nos esperar pelo próximo livro para a conclusão devida de uma obra que, na primeira de duas partes, já faz muito e muito bem.
NOTA FINAL (1/10):
9.3
-/-
O Nome da Rosa - Volume 1
Autor: Milo Manara
Adaptado a partir da obra original de: Umberto Eco
Editora: Gradiva
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 21,50 x 30,00 cm
Lançamento: Maio de 2023