Se houve apostas bem conseguidas por parte da editora portuguesa Arte de Autor, a aposta na série Spaghetti Bros foi uma delas. Mesmo que, e estou a falar sem ter confirmado dados junto da editora, as vendas de exemplares fiquem aquém do esperado. Porque, até nesse caso, e espero que os leitores portugueses tenham o bom senso de dar, pelo menos, uma hipótese a esta série, a qualidade da aposta mantém-se. Dito por outras palavras, até mesmo quando determinada série não tem sucesso comercial, isso não invalida que a aposta da editora não tenha sido legítima e ancorada na qualidade intrínseca da obra em questão.
Este já é o terceiro volume de Spaghetti Bros – de um total de quatro – e posso dizer que, terminada a leitura da obra - que reúne os tomos 9, 10, 11 e 12 –, a sensação com que fico é a mesma de quando terminei de ler os volumes anteriores (qual Oliver Twist no refeitório do orfanato): “Quero mais, por favor! Quero mais!” Sabendo que, neste momento, a série já vai em três terços e já só falta publicar o último volume, não deixa de ser uma sensação agridoce.
E tudo isto porque Spaghetti Bros – que eu não conhecia até a Arte de Autor ter apostado na série – enche as minhas medidas de leitor de bd de uma forma tão simples como esta: é muito bem desenhada, tem um argumento muito inspirado e divertido e, em último lugar, mas não menos importante, tem personagens que ficam connosco, no nosso imaginário, anos depois de finda a leitura.
A família Centobucchi, completamente amoral, e tão fora do politicamente correto, acaba por ser uma lufada de ar fresco nos tempos atuais! E há nestes cinco irmãos algo profundo e tão eticamente errado que todos nós, estou certo, acabamos por admirar, como se fosse um guilty pleasure. “O fruto proibido é sempre o mais apetecido”, não é assim que é dito?
Amerigo, o irmão mais velho, é um mafioso clássico sem escrúpulos. Muito ao jeito de Don Corleone de O Padrinho. Franck, é um padre que saltita entre o certo e o errado, entre o casto e o devasso, entre o bem e o mal. Maravilhoso! E provavelmente a minha personagem favorita de toda a série. Depois ainda há as irmãs, Catarina, uma atriz de Hollywood que tudo faz para (re)alcançar a fama e o estrelato; e Carmela, mãe de dois filhos, que ganha a vida a assassinar homens que seduz até ao seu leito. Por fim temos, Tony, um polícia que, mesmo podendo parecer, “o mais certinho”, acaba por ter de confrontar os seus próprios demónios, enquanto ama a mulher do seu irmão mais velho, Amerigo, que acaba por engravidar. Portanto, Tony é pai, tio e padrinho do filho de Mena! Pode-se não adorar uma trama destas? A mim parece-me que até o nosso Eça de Queiroz, autor que tanto adorava um bom e malandro enredo, haveria de gostar destes Spaghetti Bros! Como não?
E se há um humor que se apoia nas situações caricatas e exageradas, também é verdade que, por vezes, e neste terceiro volume isso está mais patente ainda, o argumentista Carlos Trillo, nos deixa espaço para refletir. E logo a segunda história deste livro, Freaks, será um ótimo exemplo desta afirmação, quando, através dos olhos de uma criança, nos é permitido ver o quão nefasta pode ser a violência e "o errado" para uma criança. Fantástica forma como, entre risos, Trillo consegue revelar noção da sua própria história.
De resto, neste terceiro volume continuamos a acompanhar as peripécias que vão acontecendo aos cinco irmãos. Neste tomo, a irmão Catarina, a atriz conhecida por Gipsy Boone, recebe mais destaque do que nos livros anteriores, à medida que vamos vendo tudo aquilo que ela está disposta realizar, com o objetivo primordial de alcançar o sucesso cinematográfico, numa altura em que o cinema deixa de ser mudo para passar a ser sonoro. Como pano de fundo histórico, temos o crash da bolsa de Wall Street que deixou na miséria milhões de pessoas.
Com alguma pena minha, a sensual Carmela está um pouco mais ausente neste volume embora, mesmo assim, seja curioso ver como a sua experiência profissional inexistente, a impede de encontrar um trabalho justo e honesto, das 9 às 5. A única coisa onde ela é realmente boa é em ceifar as vidas dos seus amantes. E de resto, Amerigo, Tony e Franck também têm algumas peripécias marcantes que acontecem neste volume.
Acima de tudo, para além de uma história divertida, carregada de humor negro, que se lê muito bem, penso que é no conjunto de personagens marcantes, cheias de carisma e personalidade, que reside o segredo de ser tão bom ler Spaghetti Bros. Acontece exatamente isto em boas séries de televisão, em filmes, em romances ou, até, em videojogos quando as personagens são impactantes. E nesta série de banda desenhada não é apenas uma, nem duas, as personagens que nos marcam. Todos os 5 irmãos têm carisma suficiente para merecerem uma série só para si. E é por isso mesmo, que é uma série que considero tão rica.
E ainda nem falei da arte que Mandrafina nos proporciona! Verdadeiramente deliciosa! Tal como escrevi, por ocasião da análise ao primeiro volume, e repeti na análise ao segundo volume da série, o traço de Mandrafina “é ágil, habilidoso e permite-lhe uma caracterização fiel e extremamente bem executada quer dos locais, quer das personagens. A sua capacidade para caracterizar as expressões faciais dos irmãos Centobucchi e das restantes personagens, é de um talento raro e maravilhoso. O seu traço é elegante e clássico, fazendo lembrar as ilustrações de Will Eisner, com as devidas diferenças, claro. Visualmente é uma obra incrível que dificilmente não agrada a um amante de banda desenhada.”
Ilustrações verdadeiramente bem executadas. Mas a tal aptidão incrível para a boa reprodução das expressões das personagens, é a grande mais valia de Mandrafina, diria, porque, por muito que o argumento de Trillo fosse bom, sem o trabalho visual de Mandrafina para dar (tão bem) corpo a estas personagens e histórias, não estaríamos perante uma banda desenhada tão interessante.
Só em termos de conceção de capa é que Mandrafina não consegue, a meu ver, resultados tão bons. Ainda que esta seja a melhor capa dos três livros publicados até agora, acho que bastaria que as sombras tivessem um preto compacto para que a capa funcionasse melhor. Mesmo assim, é a melhor capa até agora, sem dúvidas.
A edição da Arte de Autor continua impecável, como já o havia sido nos anteriores livros da série. Capa dura, com textura aveludada, bom papel baço e boa encadernação. Faço uma pequena nota sobre um pormenor que me fez um pouco de confusão na tradução que foi a expressão “filho DE puta”. Eu nunca tinha ouvido essa expressão em 37 anos de vida. E fez-me um bocado confusão. Mesmo que alguém use a referida expressão, diria que 99,9% dos portugueses diz “filho DA puta” e não “DE”. Não estraga minimamente o prazer da leitura, e isto é só uma minúcia minha, mas como é uma coisa que acontece em muitas vezes, recebe aqui o meu comentário.
Bem vistas as coisas, e concluindo, Spaghetti Bros é verdadeiramente delicioso e apetecível. O magnífico desenho de Mandrafina e o excelente argumento de Trillo fazem desta série uma aposta de grande nível que é obrigatório conhecer. Que venha o quarto livro tão depressa quanto possível!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Spaghetti Bros - Vol. 3
Autores: Trillo e Mandrafina
Editora: Arte de Autor
Páginas: 196, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2022