O Desaparecimento de Josef Mengele, de Matz e Jörg Mailliet
Espanta-me que se fale pouco deste livro já que, quanto a mim, está entre os melhores livros lançados pela
Levoir durante este ano. Aliás, já são vários os livros de qualidade superior que, durante 2024, a editora tem feito chegar até nós, o que revela que a mesma parece estar a chegar, paulatinamente, à sua melhor forma.
O Desaparecimento de Josef Mengele é uma adaptação para banda desenhada da obra homónima de Olivier Guez. Os responsáveis por esta banda desenhada são Jörg Mailliet, do qual eu não conhecia nada, e Matz. Este último, um conhecido argumentista em Portugal devido às séries
O Assassino ou
Tango.
Como o título assim faz crer, a história que temos em mãos é sobre Josef Mengele, o célebre "Anjo da Morte", que, durante o Holocausto, era oficial das SS e um dos médicos do regime que não teve pruridos em fazer infames testes e experiências aos prisioneiros de Auschwitz, o emblemático campo de concentração nazi. Mengele era especialmente ávido em fazer experimentações em crianças gémeas ou em mulheres grávidas. Após a Segunda Guerra Mundial, o Anjo da Morte foi perspicaz o suficiente para, à semelhança de tantos outros oficiais alemães, fugir da Alemanha derrotada e procurar guarida na Argentina. Primeiro, na Argentina, e depois no Paraguai e, mais tarde, no Brasil. Acabou por nunca ser apanhado nem tampouco julgado pelos seus crimes, tendo morrido em 1979, mais de 30 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, sem ter enfrentado a justiça. Embora a Mossad o tenha conseguido encontrar para depois, e por razões burocráticas internas, o ter deixado fugir.
O Desaparecimento de Josef Mengele mais do que se centrar nos atos de Mengele perante os prisioneiros do campo de concentração nazi, procura focar-se no período após a guerra, dando-nos a conhecer como foi feita a fuga deste psicopata (não tenho outra palavra melhor para o descrever) para a América Latina. São utilizados factos verídicos e históricos, mas também uma boa dose de ficção já que há muitas coisas na história de Mengele que permanecem com resposta incerta.
Quando Mengele chega à Argentina, as coisas até lhe começam por correr bem. O país sob o regime de Peron concede a todos aqueles que por lá se refugiam uma vida boa, carregada de prazeres e mordomias. Álcool a rodos e prostitutas de luxo passam a fazer parte do quotidiano de Mengele.
O retrato que Matz nos dá, através da adaptação do romance original de Olivier Guez, é muito verosímil, mostrando-nos a intimidade, bem como os desejos e medos de Mengele. Rapidamente o leitor mergulha na forma como o infame médico pensava e agia.
E o que mais me apraz na leitura deste livro é que, à semelhança daquilo que Inglorious Basterds, de Quentin Tarantino, nos oferece, há um certo sentimento de "consolo vingativo" na mente do leitor. Se bem que, no caso deste O Desaparecimento de Josef Mengele, e contrariamente ao filme de Tarantino, embora parte da história seja especulada, há um claro fundo de verdade. Ao esconder-se do mundo de forma a não ser encontrado, Mengele acabou sozinho, abandonado por todos, esquecido pela família, pela mulher e pelo filho e tendo que viver em condições precárias e junto das comunidades pobres e tão longe da perfeição ariana que Mengele defendia. Então, pergunto: haverá maior justiça divina do que isto? Melhor do que ter sido justado em Tribunal de Guerra, melhor do que ter sido capturado, melhor do que ter vivido numa cadeia, a prisão que Mengele se autoimpôs, de forma a não ser descoberto, acabou por o arredar do mundo, dos seus confortos, dos seus prazeres e de tudo o que é bom. Acabou, no fim, por ter aquilo que merecia.
E, portanto, a leitura deste
O Desaparecimento de Josef Mengele é pródiga em nos dar um certo sentimento de justiça feita, pese embora a mesma possa estar a ser romanceada. Primeiro, pelos autores da obra, e segundo, pelo leitor. Seja como for, serve-me de consolo que Mengele tenha acabado por ser um autêntico "rato", como assim é descrito no livro.
O ex-oficial das SS luta ferozmente para esconder a sua identidade e se reinventar num mundo que acaba por rejeitá-lo, fazendo com que Josef seja constantemente perseguido por fantasmas do passado, refletindo uma busca desesperada por normalidade enquanto vive em num estado de medo constante.
O livro acaba, pois, por funcionar muito bem como um todo, já que a prosa é envolvente e rica em detalhes, e o enredo combina elementos de thriller psicológico e biografia. A narrativa é construída de forma a criar uma atmosfera de tensão e suspense, permitindo ao leitor acompanhar a angustiante jornada de Mengele por diferentes países, sempre à sombra da sua história.
Os desenhos que nos são oferecidos por Jörg Mailliet encaixam bem nesta história, com um traço que varia entre o semi-realista e o semi-caricatural e nos remete para autores sonantes da América Latina como Eduardo Risso ou Leandro Fernández, por exemplo.
O estilo gráfico é sombrio e atmosférico, capturando a tensão e a angústia que permeiam a vida de Mengele. As ilustrações ajudam a transmitir a desesperança e a paranoia que caracterizam a sua fuga. Os rostos e expressões das personagens são retratados de forma a enfatizar emoções profundas, o que acrescenta uma camada extra à narrativa.
É verdade que, em alguns casos, certas expressões faciais das personagens possam parecer um pouco "toscas" e a precisar de algum aprimoramento, mas também é verdade que é esse o estilo do autor e, portanto, podemos considerar a arte como consistente e homogénea. Mesmo assim, devemos ainda ter em conta que, em alguns casos, as ilustrações de Mailliet passam de boas a excecionais, especialmente na forma como os ambientes e os cenários são retratados em vinhetas que nos convidam a dispensar-lhes algum tempo para que as absorvamos melhor.
A edição da Levoir é em capa dura baça, com bom papel baço no miolo. A impressão e a encadernação também são bem executadas. No início da obra há um prefácio de Olivier Guez, autor do romance original.
Em suma, ainda não li o livro
Chumbo, de Matthias Lehmann, do qual tenho grandes expetativas, mas posso dizer que este
O Desaparecimento de Josef Mengele será certamente uma das melhores obras da mais recente
Coleção de Novelas Gráficas que a Levoir tem vindo a editar com o jornal Público. A história deste livro é, ao mesmo tempo, informativa e angustiante, desafiando o leitor a confrontar a natureza da maldade humana e a busca por redenção. É um livro que ressoa não apenas no contexto histórico, mas também nas questões éticas e morais que permanecem relevantes até hoje. Excelente aposta!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
-/-
O Desaparecimento de Josef Mengele
Autores: Matz e Jörg Mailliet
Adaptado a partir do romance original de: Olivier Guez
Editora: Levoir
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 mm x 270 mm
Lançamento: Setembro de 2024