Léa Não Se Lembra Como Funciona o Aspirador é uma das obras que fazem parte da mais recente coleção de Novelas Gráficas da Levoir e do jornal Público. Posso dizer-vos que este livro me surpreendeu pela sua qualidade e maturidade narrativa, bem como pelo seu desenho maravilhoso. Além de que foi com agrado que pude constatar que a Levoir teve bom olho clínico para resgatar um livro originalmente lançado em 2010, mas que, lamentavelmente, não alcançou o devido mérito/destaque. Faço, portanto, votos para que isso possa acontecer, pelo menos em Portugal, devido a esta bela aposta.
Esta obra com um título deveras caricato, mas que acaba por conter nele mesmo uma própria piada satírica que só absorvemos depois de terminada a leitura do livro, traz-nos uma dupla de autores formada por Eric Corbeyran e Gwangjo. Se Eric Corbeyran é um argumentista bastante prolífico, com dezenas de obras publicadas - das quais foi publicada recentemente, pela Gradiva, As Guerras de Albert Einstein -, do autor sul-coreano Gwangjo pouco ou nada se sabe, tendo sido este Léa Não Se Lembra Como Funciona o Aspirador a sua única banda desenhada publicada. O que é uma pena, tendo em conta as habilidades do autor. Mas já lá irei.
A história centra-se na personagem de Louis Levasseur, um escritor que está há mais de dois anos sem escrever nenhum livro. É um escritor cuja carreira se tem demonstrado medíocre, o que o tem aproximado da depressão e frustração pessoal. Um dia, encontra num caixote de lixo o diário íntimo de Léa, uma vizinha do seu prédio. Começando a ler o dito diário, Louis descobre que Léa, de uma forma inexplicável, passou a esquecer-se de como funcionam todos os eletrodomésticos da sua casa. O assunto parece, primeiramente, caricato e sem nexo, mas rapidamente Louis se apercebe que é algo sério e que está a afetar o casamento de Léa e a sua própria auto-imagem. Léa não consegue perceber porque - e como - é que se esqueceu de como funciona a torradeira, o aspirador, a chaleira, a máquina de lavar roupa e todos os eletrodomésticos que lhe permitem dar apoio ao seu marido, assegurando as tarefas da lida doméstica.
Louis agarra então nessa ideia e, pegando nas vivências pessoais de Léa, publica um livro que é um verdadeiro best seller mundial e que lhe traz as muito desejadas fama e fortuna. Entretanto, Léa acaba por se divorciar e muda-se do prédio sem deixar qualquer rasto. Louis começa então a questionar-se sobre o paradeiro de Léa e tenta mesmo seguir-lhe o rasto. Mas é um esforço em vão. Como terá sido a vida de Léa desde que se mudou? Tendo em conta o sucesso planetário do livro de Louis, terá Léa sabido que a sua história pessoal se tornou pública? E, se sim, porque é que nunca contactou Louis?
Este acaba a fantasiar que um dia, numa das suas muitas sessões de autógrafos, há de dar de caras com Léa. Mas isso nunca acontece. Até ao dia em que, sem que nada o fizesse antever, e no sítio mais aleatório de sempre, acaba por encontrar Léa. E é aí que a história se abre como um todo, revelando mais do que aquilo que aparentava ter acontecido e abrindo caminho para um passado de violência doméstica que fez de Léa (mais) uma vítima cujas mazelas emocionais e intelectuais haverão de se repercutir até ao fim da sua vida.
É uma história séria, triste, pesada, mas que está impecavelmente bem pensada, assumindo este tom mais, digamos, social, na segunda metade do livro que, curiosamente, também aparece dividido em dois grandes capítulos. Acaba por ser um drama psicológico que fica connosco já depois de finda a leitura.
Acima de tudo, o texto é bastante bom, com um discurso maduro que nos é dado na primeira pessoa, em que a personagem principal tece belos e memoráveis comentários sobre a sua experiência, sobre Léa e sobre a vida, de forma geral. Isso é uma das coisas onde a obra se notabiliza. Para além disso, a maneira como a narrativa está montada por Corbeyran, fornecendo-nos uma história típica de investigação, também funciona particularmente bem, pois consegue manter o leitor completamente mergulhado na trama, carregada de mistério e questões por responder. Corbeyran utiliza ainda algumas técnicas narrativas interessantes, moldando a história ao seu próprio ritmo e conseguindo surpreender o leitor mesmo quando parecia claro o caminho que o relato estava a tomar.
Se em termos de argumento e narrativa há muito por onde se pegar, em termos de ilustrações, a obra também consegue ser notável. O autor sul-coreano Gwangjo dá-nos desenhos a preto e branco, utilizando apenas lápis de carvão e conseguindo um hiper-realismo absolutamente impressionante. A atmosfera visual íntima criada pelo autor acaba por servir muito bem a própria história.
Os tons de cinza e as sombras conseguidas através de um carvão mais denso, permitem um belo sentimento artístico ao todo. Certas ilustrações conseguem mesmo reter-nos durante vários momentos para que tentemos perceber o trabalho encetado pelo autor. É, de facto, maravilhosa a técnica aprumada e super-virtuosa que o autor empresta aos desenhos lindíssimos desta obra.
Apreciei também a forma como certos desenhos ultrapassam os limites das vinhetas, assumindo um tom quase de esboço. Não um esboço qualquer inacabado, mas um esboço onde as personagens são esculpidas com um realismo impressionante.
A edição da obra, à boa maneira das outras novelas gráficas da Levoir a que nos habituámos, apresenta capa dura baça e papel que, não tendo muita gramagem, é eficaz na função que lhe compete exercer. De resto, a encadernação e impressão apresentam boas qualidades. No início, há um prefácio feito pela jornalista Helena Ferro de Gouveia.
Concluindo, Léa Não Se Lembra Como Funciona o Aspirador é uma obra excelente, com um belo argumento servido por lindíssimas e ímpares ilustrações, em que a Levoir acertou em cheio. Uma das boas surpresas do ano editorial em Portugal!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Léa Não Se Lembra Como Funciona o Aspirador
Autores: Eric Corbeyran e Gwangjo
Editora: Levoir
Páginas: 136, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 10 x 240 mm
Lançamento: Outubro de 2023