quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Análise: O Combate de Henry Fleming

O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros

O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros
O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor

A editora Ala dos Livros editou há poucos dias o novo livro de Steve Cuzor, de quem a editora já havia publicado, no ano passado, o belíssimo Uma Estrela de Algodão Preto. Como tal, estava muito desejoso de ler este livro. E, assim que o recebi, não perdi tempo e mergulhei na leitura.

Inspirado em The Red Badge of Courage, um dos grandes clássicos da literatura americana, da autoria de Stephen Crane, esta é uma obra que se tornou especialmente célebre pelo tratamento inovador que dá ao tema da guerra, narrando de forma psicológica a experiência de um soldado comum no campo de batalha, em detrimento de outras obras ou relatos que, até então, falavam da guerra como algo grandioso e que elevava o espírito. A história é ambientada durante a Guerra Civil Americana e segue a jornada de Henry Fleming, um jovem soldado que lida com os dilemas internos e o medo da sua própria cobardia.

O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros
O que é curioso é que, inicialmente, Henry Fleming até tem uma visão romântica e idealizada da guerra. Por conseguinte, toma a iniciativa de se alistar com a esperança de alcançar glória e heroísmo. Porém, não passa muito tempo até que seja confrontado com o horror e o caos da guerra e alarmado perante a violência da mesma, Henry não hesita e foge da frente de combate. Todavia, mesmo depois deste ato desesperado, Henry capitula face à sua escolha devido a ficar consumido pela culpa e pela vergonha. Afinal de contas, em termos de guerra, pior que o inimigo são os dissidentes que são olhados pelos demais como cobardes, fracos e traidores. Henry tenta, então, superar-se e encontrar algum tipo de redenção através de um ato que confirme a sua coragem. Para si mesmo e para os outros. 

A própria "insígnia vermelha de coragem", referida no título original da obra, poderá ser vista como uma metáfora para as feridas de guerra, que simbolizam para Henry a prova da sua bravura. A obra explora, pois, e em profundidade, o medo, a vergonha e a busca por redenção do protagonista. E ao contrário de muitas narrativas que glorificam a guerra, aqui é-nos dada uma visão realista e quase anti-heroica do conflito bélico, mostrando-o como uma experiência desumanizante, cheia de caos e terror, mais ligada ao instinto de sobrevivência do que a qualquer sentido nobre de dever patriótico.

O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros
Henry Fleming, mesmo podendo parecer uma personagem fraca e vulnerável, é um espelho daquilo que, certamente, muitos de nós faríamos se estivéssemos em pleno campo de batalha. E é, por ventura, por essa mesma razão, que esta é uma obra tão marcante e verossímil. 

Entretanto, com a forma como os eventos se vão desenrolando, o próprio Henry Fleming vai mudando de opinião e de estado de espírito, num frenesim tal, que começa a veicular todas as suas forças para o campo de batalha, passando de cobarde a herói. No entanto, é importante notar que a sua coragem surge mais de um instinto de autopreservação e desespero do que de uma motivação altruísta ou nobre. A obra questiona, assim, a própria natureza do heroísmo, sugerindo que a coragem muitas vezes está ligada ao medo e ao desejo de aceitação social.

O trabalho de ilustração de Steve Cuzor é verdadeiramente poético! Da mesma forma que Stephen Crane utiliza descrições intensas, carregadas de um grande nível sensorial para descrever a confusão vivida num campo de batalha, também Steve Cuzor, através das suas ilustrações, desenha esse mesmo caos, levando-nos a senti-lo, a mergulhar nele. Por vezes, em longas cenas sem qualquer legenda. O trabalho acaba, pois, por ser verdadeiramente sublime.

O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros
Cuzor adapta fielmente o enredo de Crane, oferecendo uma nova dimensão à obra e enriquecendo a experiência da mesma com visuais impactantes que nos ficam na retina mesmo depois de finda a leitura do livro. O autor utiliza uma arte rica e detalhada para capturar a brutalidade e a confusão da guerra. Fiquei especialmente bem impressionado com a forma como Cuzor ilustra os destroços e os disparos das batalhas. Sentimo-nos imersos no caos e calor da batalha, com cenas dinâmicas que muitas vezes transmitem mais do que aquilo que as palavras poderiam fazer. 

A utilização de cores também desempenha um papel importante nesta adaptação. Os tons sombrios predominam, refletindo o ambiente árido e desolador da guerra. Esta bicromia pode remeter-nos para dois livros de Manu Larcenet, lançados também, curiosamente, pela Ala dos Livros: O Relatório de Brodeck e A Estrada. A paleta de cores transmite a melancolia e a tensão presentes no conflito, acentuando o estado emocional de Henry Fleming e a atmosfera opressiva da narrativa. Cuzor usa com habilidade as expressões faciais e a linguagem corporal para transmitir o conflito interno do protagonista.

O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros
Embora haja cor nesta obra - onde imperam os tons amarelados e esverdeados, consoante a cena em questão - é o preto que tem mais primazia na concepção das ilustrações, com o autor a executar as sombras - e todo o espaço negativo que das mesmas advém - com uma técnica, uma precisão e um dramatismo que são fascinantes e raros de encontrar em banda desenhada.

Como ponto menos positivo, é verdade que este é um livro que se torna pesado no tema e que pode causar uma certa sensação de repetição no leitor, pois as imagens que nos são dadas são sempre do campo de batalha. Às tantas, quando a meio do livro viramos uma nova página, pode dar a ideia de que já vimos desenhos iguais ou muito parecidos com aqueles. Denota-se que não é "defeito", é "feitio", pois foi certamente algo pensado pelo autor e que não foi deixado ao acaso. No entanto, acho que a sensação de repetição prejudica um pouco a leitura. Quase sempre digo que vários livros deveriam ter mais páginas para melhor explanar uma ideia. No caso deste O Combate de Henry Fleming, talvez algumas páginas a menos fizessem bem ao livro.

Em termos de edição, o trabalho da Ala dos Livros é imaculado. O livro apresenta capa dura baça, bom papel brilhante e encadernação e impressão de alto nível. No final, há um interessante texto de José-Louis Bocquet sobre a obra original escrita por Stephen Crane.

Em conclusão, O Combate de Henry Fleming é uma obra profundamente introspectiva, que desafia as concepções tradicionais de guerra e heroísmo, através de um realismo que nos remete para os dilemas morais enfrentados por um soldado em pleno campo de batalha. A par disso, apresenta um trabalho de ilustração belíssimo por parte de Steve Cuzor, altamente recomendado e que todos deviam conhecer!


NOTA FINAL (1/10):
9.2



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O Combate de Henry Fleming, de Steve Cuzor - Ala dos Livros

Ficha técnica
O Combate de Henry Fleming
Autor: Steve Cuzor
Baseado na obra original de Stephen Crane
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Agosto de 2024

Análise: Jon Rohner

Jon Rohner, de Alfonso Font - Arte de Autor


Jon Rohner, de Alfonso Font - Arte de Autor
Jon Rohner, de Alfonso Font

Foi há uns meses, e também a propósito da vinda a Portugal do autor espanhol Alfonso Font, para participar no festival de banda desenhada Maia BD, que a Arte de Autor lançou, em edição integral, o livro Jon Rohner, em que Font é argumentista e desenhador.

Jon Rohner é uma série de BD, publicada originalmente durante a década de 80, que se centra nas aventuras marítimas da personagem Jon Rohner, um aventureiro e marinheiro que explora ilhas remotas e territórios exóticos, enfrentando os desafios da natureza, perigos humanos e situações de suspense, com um toque de mistério e fantasia.

Jon Rohner reflete a paixão de Alfonso Font pelas histórias clássicas de aventura e exploração, especialmente influenciada por autores como Joseph Conrad e, especialmente, Robert Louis Stevenson, que abordam nas suas respetivas obras a vida no mar e a relação do homem com a natureza selvagem e os perigos do desconhecido. Talvez por isso, o próprio Robert Louis Stevenson, o célebre autor do romance A Ilha do Tesouro, seja uma das personagens mais presentes neste conjunto de sete histórias que formam esta edição integral lançada pela Arte de Autor.

Jon Rohner, de Alfonso Font - Arte de Autor
O protagonista, Jon Rohner, é retratado como um homem de espírito livre, com características de um clássico aventureiro. É corajoso, mas não de maneira arrogante; é habilidoso, mas também é constantemente testado pelas circunstâncias. E, claro, a sua força e inteligência são postas à prova em ambientes hostis, como ilhas inexploradas e mares traiçoeiros.

A série aborda temas recorrentes das histórias de aventura marítima: o fascínio pela descoberta, o confronto com forças naturais e sobrenaturais, e a moralidade fluída dos homens que vivem à margem da sociedade. Há um constante jogo entre o bem e o mal, tanto ao nível humano quanto no que diz respeito à implacável natureza.

Aliás, esse até é dos aspetos mais interessantes e mais assinaláveis da série: é que a mesma não se limita a ser uma história de aventuras lineares. Muitas vezes, há uma componente reflexiva, em que o protagonista, bem como os leitores, são levados a ponderar sobre a condição humana, os limites da ambição e as consequências das ações diante da natureza.

Jon Rohner, de Alfonso Font - Arte de Autor
O enredo de Jon Rohner é episódico, com sete histórias relativamente curtas, mas interligadas por temas comuns e pelo desenvolvimento gradual da personagem principal. Isso dá uma sensação de continuidade, mas, ao mesmo tempo, permite que cada aventura seja apreciada por si só.

Font combina esses elementos com uma narrativa visual bela e clássica na abordagem, com uma arte que se destaca pelo realismo e pelo uso expressivo de sombras e luzes. O estilo de desenho de Font é uma mistura de precisão e dinamismo, com paisagens exóticas e cenas de ação cuidadosamente elaboradas.

E se, em termos de tema, Conrad e Stevenson são claras influências para a criação deste Jon Rohner, em termos de ilustrações, é bastante difícil que não sejamos remetidos para Corto Maltese - e outras criações de Hugo Pratt - quando lemos Jon Rohner. Quer no estilo de desenho, quer nos planos utilizados, quer até no próprio aspeto do herói que lembra bastante o marinheiro mais famoso da banda desenhada. Não sinto que Font faça uma apropriação da criação de Pratt, mas  é notória uma homenagem ou, pelo menos, uma forte e inegável influência.

Se os desenhos são belos, em termos de cores considero que este Jon Rohner acusa o peso da idade, devo dizer. Sei que esta minha opinião que, aliás, já tenho partilhado na leitura de outras obras que faço, é algo polémica. Especialmente para os amantes da obra original, já familiarizados com a mesma. Para esses, é necessário que tenhamos uma fidelidade às cores dos anos oitenta. Nada contra, pois concordo que, desse modo, se preserva a criação original. Porém, e à luz dos dias de hoje - já para não falar na possibilidade de se tentar chegar a novos públicos - as cores tornam a arte desta banda desenhada em algo datado. Será sempre uma questão de gosto pessoal e volto a dizer que aceito perfeitamente o argumento da importância da preservação da obra original, mas, pelo menos quanto a mim, teria apreciado mais a obra se a mesma tivesse sido lançada a preto e branco. Algo como tem sido feito com a coleção a preto e branco de Corto Maltese, um outro exemplo revelador de como as cores da obra envelheceram menos bem do que as ilustrações.
Jon Rohner, de Alfonso Font - Arte de Autor

Mas em nada isso belisca o bom trabalho editorial da Arte de Autor que, com o lançamento deste livro, permite que a obra chegue a um público que cresceu com esta personagem que estava, infelizmente, algo arredada da edição portuguesa de banda desenhada. O livro apresenta capa dura baça - com uma bela ilustração a preto e branco que, já agora, dá razão ao que digo no parágrafo acima, de que, a preto e branco, as ilustrações clássicas são mais atualizadas e menos datadas - e, no interior, o papel é brilhante e de boa qualidade. O trabalho de impressão e encadernação é bom e, no início do livro, João Miguel Lameiras oferece-nos um belo e elucidativo prefácio à obra.

Em suma, ainda que Jon Rohner acuse mais sinais do tempo do que aquilo que alguns leitores admiradores poderão gostar de admitir, a verdade é que este conjunto de histórias a la Corto Maltese, onde Robert Louis Stevenson também é protagonista, entretêm o leitor enquanto o levam para cenários longínquos e exóticos, onde a aventura é uma constante e o perigo nunca cessa de espreitar.


NOTA FINAL (1/10):
7.8



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Jon Rohner, de Alfonso Font - Arte de Autor

Ficha técnica
Jon Rohner - Edição Integral
Autor: Alfonso Font
Editora: Arte de Autor
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: 

Revista de BD "Zona Negra III" é lançada no Motelx!



Hoje, às 19h, será lançada a revista Zona Negra III no Motelx.

Esta antologia de banda desenhada de terror caminha para o seu terceiro número e, nesta edição, conta com mais de 100 páginas a preto e branco.

Se puderem, não deixem de comparecer.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa publicada pela organização.


Zona Negra III, de vários autores

Para os amantes de banda desenhada e do género de terror, temos o prazer de anunciar o lançamento da terceira sequela da revista “Zona Negra” dedicada ao terror, a “Zona Negra III”. A Zona é uma antologia de banda desenhada criada em 2009 para a divulgação e promoção de autores nacionais e internacionais, tendo publicado mais de 15 números dedicados a diversos temas. A “Zona Negra III” tem mais de uma centena de páginas a preto e branco dedicadas ao terror autoral de diversos artistas emergentes, e regressa ao MOTELX após o lançamento da sua primeira edição.

A Associação Tentáculo, fundada em 2010, é uma associação cultural com área de acção em três áreas artísticas principais: banda desenhada (BD), ilustração e literatura. Actualmente, engloba quatro principais projectos com relevância no panorama nacional e internacional: Avenida Marginal, H-alt, Imaginauta e Zona. Além destes projectos, ao longo dos últimos anos a Tentáculo promoveu diversas actividades, tais como a publicação de obras avulsas nas áreas de BD, ilustração e literatura, prestação de serviços de BD, ilustração e design e organização de eventos e formação.

No dia 11 Setembro de 2024 às 19h00, vai ser lançado o Zona Negra III no MotelX. 

3º volume de Tanguy e Laverdure chega hoje às bancas!




Sai hoje com o jornal Público o terceiro volume da série Tanguy e Laverdure, dos autores Jean-Michel Charlier e Albert Uderzo, que a ASA tem vindo a publicar.

Este novo volume intitula-se Perigo no Céu e é o terceiro de um total de oito volumes.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.


Tanguy e Laverdure #3 - Perigo no Céu, de Jean-Michel Charlier e Albert Uderzo

Depois de Marrocos, Tanguy e Laverdure são colocados na 10.ª Esquadrilha de Creil, em território francês. Após uma entrada em falso, devido às confusões provocadas pelo segundo, os dois pilotos iniciam os seus treinos no avião supersónico Super Mystère B2, acumulando horas de voo e obtendo finalmente o brevet de pilotos de caça.

Entretanto, os testes ultra-secretos com um novo e revolucionário modelo de avião de descolagem vertical numa base próxima, suscitam o interesse de uma potência estrangeira, o que obrigará os dois pilotos, juntamente com os seus novos companheiros, a uma delicada missão de vigilância para fazerem gorar a intenção dos espiões de fotografar o protótipo.

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Ficha técnica
Tanguy e Laverdure #3 - Perigo no Céu
Autores: Jean-Michel Charlier e Albert Uderzo
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
PVP: 11,90€

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Qual o melhor Livro do Mês de Julho para o Vinheta 2020?


Hoje trago-vos aquela que foi a Banda Desenhada lançada em Portugal durante o último mês de Julho cuja compra é, quanto a mim, mais "obrigatória".

Porque sou um acérrimo defensor e promotor da produção nacional, também vos trago o melhor livro nacional lançado no passado mês de Julho.

Isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mais obrigatória a fazer?

São, na minha opinião, as obras que vos apresento mais abaixo.

Se tiverem dúvidas ou questões sobre as regras que utilizo para esta recentemente criada iniciativa, acedam aqui.

Sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Julho:

Análise: A Companheira

A Companheira, de Agustina Guerrero - Dom Quixote

A Companheira, de Agustina Guerrero - Dom Quixote

A Companheira, de Agustina Guerrero

Adoro a seguinte sensação que, volta e meia, me acontece quando leio banda desenhada: ser surpreendido - pela positiva! - por um(a) autor(a) que já conhecia e sobre o(a) qual havia formado opinião. Também é verdade que, por vezes, acontece o inverso: somos surpreendidos pela negativa e determinado autor brinda-nos com um novo livro que fica aquém das nossas expetativas. Felizmente, no caso deste A Companheira, o novo livro da autora argentina Agustina Guerrero, que a editora Dom Quixote publicou há algumas semanas, a sensação não poderia ser mais positiva.

A Companheira, de Agustina Guerrero - Dom Quixote
Sim, eu já tinha gostado do outro livro - também por cá editado pela mesma editora, A Viagem - mas não tinha ficado tão maravilhado assim, por vários motivos que, na altura, quando escrevi a minha análise à obra, apontei. E tendo uma perceção positiva - mas não apaixonada - pelo estilo da autora, mergulhei para este A Companheira com uma curiosidade mediana.

E posso dizer que - agora, sim! - fiquei rendido! Tudo o que já era bom em A Viagem é igualmente bom aqui e as coisas que, nesse anterior livro, considero mais fracas - como o relato mais imberbe, os dramas mais superficiais e a própria bipolaridade entre uma crónica de viagem e um livro de cariz mais dramático - deixam de existir neste A Companheira. Aliás, o próprio conceito da obra, a sua honestidade e a sua relevância e sensibilidade são, quanto a mim, muito mais grandiosos do que no álbum anterior. Portanto, digo-vos de forma quase histérica: se estiverem indecisos entre A Viagem e A Companheira, não hesitem duas vezes: comecem por ler este A Companheira.

Enquanto que A Viagem, tal como o nome indica, se trata de um diário de viagem ao Japão, com a autora a ser acompanhada por uma amiga - e sendo, também uma viagem ao próprio âmago interno de Agustina Guerrero - este A Companheira é um relato muito mais profundo, em que a autora mergulha no seu passado. Nas suas memórias. As boas e as más. As que marcam uma vida. O conceito é tão simples que até me chega a irritar! Como é que eu não me lembrei disto antes? É daquelas ideias demasiado simples e, ao mesmo tempo, boas, que qualquer argumentista espera ter.

A Companheira, de Agustina Guerrero - Dom Quixote
Com efeito, todos nós temos memórias que fizeram de nós aquilo que somos hoje. Os traumas de infância, juventude e idade adulta; as coisas tristes; as incapacidades; os falhanços; os medos; as glórias; os dias inesquecíveis; os sítios onde passámos férias; os momentos em que rimos até mais não e os momentos em que nos sentimos miseráveis perante tamanha tristeza. Portanto, é justo dizer que todos nós teríamos conteúdo para fazer um livro igual - na premissa e não no conteúdo, pois todos temos as nossas próprias vivências - a este A Companheira. No entanto, foi Agustina Guerrero que se lembrou de tal empreitada. E ainda bem que o fez.

Acaba por ser um livro altamente pessoal e onde a autora volta a abrir as portas da sua intimidade. Os seus medos, as suas inseguranças, os seus traumas, as suas alegrias, os seus feitos... são muitos os momentos que nos são revelados. Os cheiros da infância, os verões que nunca pareciam terminar, os primeiros romances, os dias em que experimentámos algo novo, as comidas das mães e das avós, os dias em que deixámos os nossos pais cheios de orgulho, os dias em que tivemos tardes fantásticas com os amigos... reparem que, neste momento, até deixei de falar sobre Agustina e passei a falar sobre mim mesmo. Porque, de facto, é esse o grande feito desta obra e da autora. É que, falando sobre si própria, Agustina Guerrero consegue apelar a todos nós. Achamos que somos todos diferentes e originais - e também somos, é certo - mas temos todos muito em comum uns com os outros. Ou, como canta Rui Veloso, "muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa". Só é pena que às vezes nos esqueçamos disso. De certa forma, a banda desenhada A Companheira consegue fazê-lo por nós.

E embora este livro se sedimente, em termos de argumento, num conjunto de memórias que a autora experienciou e que, corajosamente, partilha com os seus leitores, a verdade é que não estamos perante um livro de histórias curtas e avulsas, dividido por subcapítulos. Ao invés, a autora montou um engodo narrativo que é vivido no presente e que lhe permite, juntamente com a sua "companheira", viajar para dentro de si mesma, como se fosse uma viagem espiritual e iniciática. Esta bengala narrativa assume um tom algo onírico, que me fez temer pela consistência do relato, mas que acaba por funcionar bem e que até remete, com as devidas distâncias, para a forma como as sensações são explanadas no filme de animação da Disney Inside Out.

A Companheira, de Agustina Guerrero - Dom Quixote
Quanto às ilustrações, Agustina Guerrero oferece-nos algo bastante identificável com aquilo que a autora nos deu na sua A Viagem. Daí que possa recuperar algumas das palavras que escrevi a esse propósito: "o estilo de desenho da autora é bastante “cartoonesco”, com uma planificação bastante livre e anárquica que raramente apresenta limites nas suas vinhetas. (...) Não são desenhos particularmente complexos, especialmente na caracterização das personagens, que apresentam expressões abonecadas, mas são ilustrações agradáveis à vista. (...) Por vezes, a autora dá-nos desenhos de página inteira que são marcados por uma bela e sedutora poesia visual e esses são os melhores momentos do livro. Mesmo não saindo do género “cartoonesco”, a autora consegue imprimir uma beleza visual ímpar (...) São belos momentos que conseguem tocar o autor."

Também neste cômputo, e desculpem-me se estou a ser repetitivo, A Companheira consegue superar A Viagem, não tendo os problemas de ter duas personagens demasiado parecidas, embora, ainda assim, continue a haver algum claustrofobismo visual nas páginas em que o texto é em maior quantidade e dimensão do que o desejável. 

Mesmo assim, tenho que realçar que muito admiro a forma como, sendo simples, os desenhos de Guerrero conseguem transmitir tantas emoções.

A edição da Dom Quixote, por seu turno, volta a ser fantástica! O livro é em capa dura, em tecido, com detalhes a verniz que muito embelezam a capa. O resultado é extremamente apetecível e impactante. No interior, o papel é baço e de boa qualidade, e a impressão e encadernação são excelentes, também. Acaba por ser um objeto-livro lindíssimo só à conta da sua capa tão especial.

Em suma, A Companheira é uma excelente surpresa! Quem já tinha gostado de embarcar n'A Viagem da mesma autora, vai ficar maravilhado com este livro e aqueles que, como eu, não ficaram logo rendidos ao estilo da autora nesse primeiro livro por cá lançado, certamente darão a mão à palmatória: Agustina Guerrero é uma autora a seguir e este A Companheira entra para o lote - já denso - de melhores bandas desenhadas do ano. A não perder!


NOTA FINAL (1/10):
9.3


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A Companheira, de Agustina Guerrero - Dom Quixote

Ficha técnica
A Companheira
Autora: Agustina Guerrero
Editora: Dom Quixote
Páginas: 232, a cores
Encadernação: Capa dura em tecido
Formato: 205 x 247 mm
Lançamento: Junho de 2024

Al Capone recebe biografia em BD!



Chega hoje às livrarias a nova aposta da editora Ala dos Livros!

Trata-se da biografia de Al Capone, um dos mais célebres criminosos de todos os tempos!

A autoria desta obra pertence a Meralli e Radice, dois autores que pouco ou nada conheço. No entanto, já li opiniões favoráveis a esta obra e lembro-me de ter visto o livro nos escaparates das livrarias belgas em que estive há uns meses.

Conhecendo a muito boa curadoria e aposta em banda desenhada de qualidade por parte da Ala dos Livros, devo dizer que estou muito curioso para iniciar esta leitura.

Por agora, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.

Al Capone, de Meralli e Radice

A década de 1920 marca, nos Estados Unidos, o auge do crime organizado. Com subornos, balas e sobre centenas de cadáveres, erguem-se impérios de milhões de dólares. 

Em Chicago, o rei do crime organizado tem um nome que é por todos pronunciado com um misto de medo e de respeito: Al «Scarface» Capone. Mas como contar a sua história? 

Swann Meralli e Pierre-François Radice optam por deixar que seja o próprio Al Capone a fazê-lo, a partir da sua cela em Alcatraz onde, em 1938, se encontrava preso. Conta-a à sua mãe, que foi visitá-lo à prisão.

Mas o terrível Al Capone não consegue evitá-lo: faz batota, desfalca a verdade. E, assim, deixa-nos a verdadeira história (falsificada à sua maneira) do maior gangster de todos os tempos!


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Ficha técnica
Al Capone
Autores: Meralli e Radice
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
PVP: 32,00€

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Análise: O Fato Novo do Sultão

O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss - Levoir e RTP

O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss - Levoir e RTP
O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss

De todos os livros que a Levoir já lançou na sua coleção de Clássicos da Literatura Portuguesa em BD - e que eu tive oportunidade de ler - este O Fato Novo do Sultão, do português André Morgado e da brasileira Luiza Strauss, que adaptam para banda desenhada a obra homónima de Guerra Junqueiro, é dos livros que se apresentam mais diferentes dos demais. Para o bom e para o mau.

Comecemos, naturalmente, pelo "bom". 

Quer em termos de história, que já no seu texto original era bastante simples, quer em termos de desenhos, este livro não tem pudor (e por que razão haveria de ter pudor?!) em ser totalmente endereçado a um público jovem. Melhor dizendo, a um público infantil.

O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss - Levoir e RTP
Assim que abrimos o livro e somos confrontados com os desenhos de Luiza Strauss, que são expressivos, coloridos e muito simplistas, parece que somos automaticamente levados para o universo da infância. Os traços são lineares, os pormenores são parcos e as expressões e linguagem corporal das personagens são "cartoonescas". Tudo de (muito) fácil absorção.

Nesse sentido, também o argumento de André Morgado se apresenta escorreito, simples e funcional, cumprindo bem com os seus intuitos de resumir e adaptar o texto de Guerra Junqueiro que consiste numa sátira política, onde o humor afiado do autor critica a monarquia e os poderes estabelecidos no Portugal da época, em finais do século XIX.

Nesse tempo, Portugal vivia um período de especial instabilidade, com o fracasso do modelo político monárquico a tornar-se evidente para muitos intelectuais, incluindo Junqueiro, que se identificava com as ideias republicanas e liberais. O autor utiliza, pois, a alegoria do "fato novo" para criticar a superficialidade e as falsas aparências que caracterizavam a monarquia. Na verdade, a narrativa criada por Guerra Junqueiro remete à famosa história infantil As Roupas Novas do Imperador, de Hans Christian Andersen, em que um governante é ludibriado por falsos alfaiates que o convencem de estar vestido com um traje magnífico, quando, na verdade, ele está nu. Junqueiro adaptou esta alegoria para satirizar a figura do rei português e, mais amplamente, o sistema político da monarquia portuguesa, que, na sua visão, se baseava em ilusões e enganos. 

O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss - Levoir e RTP
E sendo claro que, nesta versão para banda desenhada, a mensagem original está lá bem visível, a sua apresentação é feita de forma leve e simples, não imergindo muito o leitor em questões mais densamente politizadas. Por falar em leitor, enquanto que as outras obras contidas nesta coleção me parecem mais adequadas para um público adolescente e, noutros casos, adulto, este O Fato Novo do Sultão parece-me para um público mais infantil ainda. Imagino que o público adolescente, bem como o adulto, talvez considere esta obra demasiado simplória.

O que me leva ao lado "mau" da obra.

É que, com efeito, este O Fato Novo do Sultão talvez seja curto para voos mais altos ou para chegar a um maior público. É simples, resume a história à sua essência e é de fácil apreensão, sim, mas também não ousa ir mais longe do que isso, sendo algo unilateral na sua abordagem à obra de Guerra Junqueiro. E as próprias ilustrações de Luiza Strauss - que nem sequer são más - parecem apenas cumprir com os mínimos olímpicos. 

O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss - Levoir e RTP
E, lá está, mesmo aquela narrativa que diz que "o simples é mais adequado para os mais novos" também peca por ser redutora. É que, como são vários os exemplos, há muitas obras direcionadas para os mais novos que estão cheias de detalhes e que são esculpidas com o maior dos rigores. É quase como achar que a música pop "tem que ser" simples na sua estrutura e conceção. Poderá sê-lo, claro, mas não é mandatório que o seja. Vão ouvir o Michael Jackson, para verem como a música pop pode ser ricamente complexa. Também na BD isso acontece: há obras que são para crianças, mas que, quando lidas por um público mais adulto, ganham novos e mais profundos significados. Ou ilustrações que funcionando bem para os mais novos, são feitas com um detalhe incrível.

Ou seja, e dito por outras palavras, este O Fato Novo do Sultão cumpre, sim, mas apenas para um público (bastante) mais novo, já que não há grande alcance da obra para um público mais adulto ou mesmo adolescente. Olhando para o copo "meio cheio" também considero justo afirmar que este é um livro que deveria figurar nas "bibliotecas de turma" das escolas primárias do país. Há muita falta de banda desenhada para um público entre os 6 e os 9 anos - especialmente de origem nacional - e, tendo isso em vista, o lançamento deste O Fato Novo do Sultão é bem-vindo.

A edição da Levoir é em tudo igual à dos outros livros da coleção. Apresenta capa dura baça, bom papel brilhante no interior e uma boa encadernação e impressão. No final, há um bom dossier de extras que permite ao leitor saber mais acerca da obra, do autor e do contexto histórico da mesma.

Em suma, O Fato Novo do Sultão é uma daquelas bandas desenhadas claramente destinadas a um público mais infantil que, não perdendo nunca esse propósito de vista, acaba por fazer um belo trabalho, possuindo um simples mas eficaz desenho de Luiza Strauss e um igualmente simples mas eficaz argumento de André Morgado. No entanto, é uma obra que se torna quiçá insuficiente para um leitor mais experiente ou exigente.


NOTA FINAL (1/10):
6.0


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O Fato Novo do Sultão, de André Morgado e Luiza Strauss - Levoir e RTP

Ficha técnica
O Fato Novo do Sultão
Autores: André Morgado e Luiza Strauss
Adaptação a partir da obra original de: Guerra Junqueiro
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Junho de 2024

Nuvem de Letras lança nova BD para adolescentes!



Chega hoje às livrarias a nova aposta da Nuvem de Letras em banda desenhada!

Falo de Um coração, Dois Caminhos, a obra de estreia da norueguesa Nora Dåsnes, destinada a um público mais juvenil.

O lançamento é feito pelas mãos da Nuvem de Letras, uma chancela da Penguin Random House.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora e com algumas imagens promocionais da obra.


Um coração, Dois Caminhos, de Nora Dåsnes

A Tuva vai entrar no 7.º ano e fez uma lista de objetivos: escrever um diário até ao fim, ter um estilo fixe, construir o melhor forte na floresta com as suas amigas e muito mais.

Mas o 7.º ano divide os seus amigos em duas frações rivais: de um lado, TEAM LINNÉA e as miúdas que se maquilham e se apaixonam, do outro, TEAM BAO e as miúdas que apenas querem brincar na floresta e não ligam a roupas e paixonetas.

É então que aparece Mariam, que não pertence a nenhum dos lados, e Tuva sente que acaba de conhecer a sua alma gémea. Será isto que é estar apaixonado?

Centrada na vida de três amigas, esta história em formato de novela gráfica, repleta de estilo e graça, acompanha os anseios e as esperanças de Tuva, que vê tudo mudar com o início do 7.º ano.

Antes a vida era simples, agora tudo é drama! Amizade, zangas, paixões, medos e muitas dúvidas — Tuva desabafa no seu diário, através de uma escrita sensível e contemplativa. Uma leitura muito apropriada e cativante para este regresso às aulas.

Vencedor de vários prémios, aclamado pela crítica e publicado em diversas línguas, chega agora a Portugal o livro de estreia da norueguesa Nora Dåsnes, sobre os tumultos que acompanham a passagem da infância à adolescência. Uma narrativa honesta e irónica, capaz de conquistar todos os que estão, ou já estiveram, nesse limiar.

Um coração, dois caminhos conquistou críticos de todo o mundo e ganhou inúmeros prémios, como o Ministry of Culture’s Graphic Novel Prize, o Pondus Prize, o Nordic Council Literary Prize, e foi também finalista do Festival de Angoulême.

Um diário gráfico deliciosamente escrito à mão, que mostra de forma suave e espontânea as provações do crescimento. Entre ser criança e ser adolescente, Tuva hesita. Dois caminhos, um coração.

«Para os adolescentes (mais novos), este é um olhar fresco e comovente sobre as amizades e as primeiras paixões, realizado num formato de diário a cores, refletindo de forma pungente os desafios da adolescência.»

The Guardian


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Ficha técnica
Um coração, Dois Caminhos
Autora: Nora Dåsnes
Editora: Nuvem de Letras (Penguin Random House)
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa mole
PVP: 15,95€

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Análise: Crime e Castigo

Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público

Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público
Crime e Castigo, de Bastien Loukia

Foi há poucos dias que a editora Levoir lançou, juntamente com o jornal Público, e inserida na sua 8ª Coleção de Novelas Gráficas, a obra Crime e Castigo, do francês Bastien Loukia, que adapta para banda desenhada o clássico da literatura homónimo, da autoria de Fiódor Dostoiévski.

A obra original é bastante extensa - e densa! - e, como tal, estava curioso para averiguar de que forma Bastien Loukia, conseguia "descalçar esta bota", por assim dizer. E não sendo uma banda desenhada que me tenha maravilhado, ou que seja perfeita, a verdade é que me surpreendeu positivamente várias vezes e que, em última instância, consegue fazer um trabalho bastante satisfatório na adaptação da obra clássica do russo Dostoiévski. E, já agora, relembro que não é a primeira vez que a Levoir publica uma adaptação para banda desenhada de uma obra deste autor clássico. Já o tinha feito com O Idiota, de André Diniz.

Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público
Considerada como uma das obras-primas da literatura mundial, Crime e Castigo explora temas profundos como a moralidade, a culpa, a justiça e a redenção, ao acompanhar a jornada do protagonista Rodion Raskólnikov, um estudante de direito que, vivendo na mais vil pobreza na cidade de São Petersburgo, sem meios de subsistência, se vê obrigado a deixar os estudos e a ir vendendo/penhorando os seus poucos pertences a uma velha agiota. Carregado de ódio perante toda a situação em que vive,  comete um assassinato, julgando estar a fazer um bem pela sociedade. A partir desse ponto nevrálgico, todo o livro deambula pelos dilemas morais que o protagonista enfrenta, enquanto tenta, de algum modo, fintar a justiça. 

Raskólnikov convence-se de que está acima da moralidade comum e que certos indivíduos extraordinários têm o direito de cometer crimes para realizar grandes feitos. No entanto, após o assassinato, o protagonista é consumido pela culpa e pelo medo, levando-o a um estado de angústia, delírio e isolamento. Estão a ver quando tentamos justificar certos atos que, lá bem no fundo, sabemos perfeitamente que são errados? É isso que Raskólnikov faz. O castigo não vem apenas das autoridades, mas também de dentro do próprio indivíduo.

Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público
A narrativa mergulha na sua mente perturbada, onde ele luta contra a sua consciência e tenta justificar o crime, enquanto a investigação do crime avança sob a supervisão do astuto detetive Porfiri Petrovitch, uma outra personagem muito interessante, dira. Entretanto, a história adensa-se quando Sonia Marmeladova, uma jovem prostituta que enfrenta a sua própria luta moral, entra na sua vida. Sonia representa a compaixão e a fé, e o seu papel é crucial para a (tentativa de) redenção de Raskólnikov. 

São muitas as personagens que deambulam por esta complexa trama. Tendo em conta que os seus nomes russos não são fáceis de ler ou recordar, torna-se um pouco complexo  de perceber "quem é quem". Mesmo assim, as duas páginas no início do livro com uma legenda sobre as personagens, ajudam bastante a compreensão do texto. Muitas vezes, tive que recorrer a elas para não perder o fio à meada. Até porque, e isto talvez pudesse ter sido melhor contornado pelo autor, há várias personagens que apresentam feições muito parecidas.

Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público
Se Loukia é bem sucedido a passar para banda desenhada o essencial de uma obra tão grande em dimensão como Crime e Castigo, desenvolvendo bem o protagonista Raskólnikov, lamentei que as restantes personagens não fossem tão (bem) desenvolvidas. Em especial a ligação de Raskólnikov com Sonia Marmeladova que merecia, a meu ver, mais tempo (leia-se "páginas").

Seja como for, Bastien Loukia sai-se bem desta complexa empreitada. Esta é, afinal, uma daquelas adaptações para banda desenhada que podem muito bem servir para todas as pessoas - sejam jovens ou adultos - que já ouviram falar de Crime e Castigo mas que, por uma outra razão, nunca o leram. E esta novela gráfica cumpre o pressuposto de passar com eficácia o essencial da obra. Portanto, se for este o caso dos que me leem agora, não hesitem e deem uma oportunidade a este livro.

Relativamente às ilustrações - e tendo em conta as páginas promocionais partilhadas pela editora aquando do lançamento do livro (que também publico neste artigo) e que não me deixaram especialmente bem impressionado - devo dizer que o livro até me deixou satisfeito em muitos momentos, pese embora haja, entre vinhetas, por vezes na mesma página, uma heterogeneidade na conceção dos desenhos. Ou seja, tão depressa temos um desenho lindíssimo e detalhado, como na vinheta ou na página seguinte, temos um desenho mais mal concebido ou algo tosco nos pormenores.

Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público
Assumindo um estilo que parece remanescente da pintura clássica entre o impressionismo e o expressionismo, Bastien Loukia consegue, como já referi, momentos de verdadeira beleza visual. Há várias expressões e enquadramentos que me deixaram a acenar positivamente, mesmo sendo verdade que, em tantos outros casos, também acenei reprovadoramente.

As cores, em aguarela, são espírito e vida da concepção visual desta obra e captam especialmente bem o lado sombrio e sujo da cidade de São Petersburgo, que Dostoiévski tão bem representa no texto da obra original.

Também interessante é a planificação, bastante dinâmica, que Loukia utiliza, com vinhetas de todo o estilo e feitio, que fazem com que o leitor não se canse tanto perante a densidade da história. Nota ainda para a alteração de estilos de desenho, como na cena do assassinato ou na representação dos sonhos de Raskólnikov, que oferecem uma certa frescura ao todo.

A edição da obra é em capa dura baça, com bom papel baço no interior do livro. Detetei um balão sem texto que, por lapso, deve ter sido esquecido, e achei que as primeiras três páginas do livro, com a ficha técnica, título e introdução da obra, poderiam ter sido organizadas de forma diferente. Todavia, tirando estas questões, pequenas, estamos perante uma boa edição.

Em suma, esta corajosa adaptação de uma obra tão singular e conhecida como Crime e Castigo, de Dostoiévski acaba por resultar de forma convincente, centrando-se no mais relevante da obra original que é o levantamento de questões filosóficas atemporais sobre a natureza do bem e do mal, da justiça e da redenção. Bastien Loukia consegue oferecer-nos uma nova e mais acessível - embora completa na essência - leitura deste clássico ao público contemporâneo.


NOTA FINAL (1/10):
7.3


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Crime e Castigo, de Bastien Loukia - Levoir e Público

Ficha técnica
Crime e Castigo
Autor: Bastien Loukia
Adaptado a partir da obra original de: Fiódor Dostoiévski
Editora: Levoir
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270mm
Lançamento: Julho de 2024