quinta-feira, 31 de julho de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pel' A Seita nos últimos 5 anos!



Hoje trago-vos aquela que, na minha opinião, foi a melhor banda desenhada lançada pela editora A Seita nos últimos cinco anos!

Recordo que esta iniciativa surge pela comemoração dos 5 anos do Vinheta 2020, que me fez olhar um pouco para trás e ver a enorme quantidade de excelente banda desenhada que por cá foi publicada durante um período bastante pequeno de cinco anos.

Tendo em conta o enorme sucesso que estes artigos estão a ter aqui no blog, já tendo eu feito artigos dedicados à Ala dos Livros e à Arte de Autor, prometo fazer o mesmo tipo de artigo para a melhor banda desenhada editada por cada uma das principais editoras portuguesas de banda desenhada durante o mês de agosto. Mesmo que, pelo meio, haja uma certa quebra devido às minhas férias que se avizinham.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a "crème de la crème" de cada editora.

Chamo a atenção para o facto de eu considerar que fará sentido fazer um TOP dedicado aos lançamentos que A Seita fez em conjunto com a Arte de Autor. Mas isso ficará para outro dia. Como tal, as obras lançadas em conjunto pelas duas editoras não foram tidas em conta para este TOP. Também a Comic Heart merecerá um artigo isolado.

Bem, sem mais delongas, deixo-vos a melhor BD lançada em exclusivo pel' A Seita.

Análise: A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica

A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao - Bertrand

A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao - Bertrand
A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao

"Uma banda desenhada sobre árvores? Mas que grande seca!", poderão dizer alguns dos que me leem. Pois bem, permitam-me convidar-vos a porem de lado esse preconceito e, se o fizerem, talvez venham a ser surpreendidos por este belo livro que a Bertrand acaba de publicar.

Chama-se A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica e resulta da adaptação para banda desenhada dos autores Fred Bernard e Benjamin Flao, a partir da obra original com o mesmo nome de Peter Wohlleben. 

Esta é uma obra que surpreende pelo equilíbrio entre conteúdo informativo, apelo visual e sensibilidade ecológica. A narrativa baseia-se na experiência de vida de Wohlleben como silvicultor e no seu profundo conhecimento das florestas, aliando a ciência à emoção e o saber técnico à admiração pela natureza. Através da linguagem (mais) acessível da banda desenhada, este é um livro com o potencial de poder ser uma porta de entrada ideal para quem procura compreender melhor o funcionamento das árvores e das florestas, sem perder o encanto de uma leitura envolvente. Por outro lado, e como sucede neste tipo de livros que podem chegar a um público mais alargado, é inversamente um convite àqueles que não leem banda desenhada para que entrem no universo da 9ª arte.

A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao - Bertrand
A história começa por nos apresentar o próprio Peter Wohlleben, figura central da narrativa, e diria que a narrativa do livro aparece dividida em três grandes vertentes. 

A primeira dessas vertentes é o cunho biográfico deste trabalho, traçando a jornada do autor desde a sua infância, quando já revelava uma forte ligação com o mundo natural, até à sua carreira como silvicultor. Este percurso pessoal não só humaniza o conhecimento transmitido, como também torna mais credível e empático o discurso científico que se segue. A forma como Wohlleben é desenhado e apresentado contribui para criar uma ligação emocional entre leitor e narrador, reforçando a mensagem ecológica do livro. É uma parte que funciona especialmente bem por humanizar o livro e fazer com que o mesmo não seja apenas um livro de teor mais técnico.

A segunda grande característica da narrativa é, naturalmente, o foco nos verdadeiros protagonistas da história: as árvores. Os autores convidam-nos a mergulhar num universo pouco conhecido e absolutamente fascinante. Descobrimos que as árvores comunicam entre si, que cuidam das suas árvores vizinhas, e que possuem memória e reagem a estímulos do ambiente de formas surpreendentes. A obra apresenta estas informações com leveza e maravilhamento, quase como se estivéssemos a entrar num mundo encantado, mas sustentado por dados científicos e pela observação de décadas do autor. 

E esta parte informativa é, talvez, a mais cativante do livro. A capacidade de Fred Bernard em adaptar os conceitos científicos de forma clara e envolvente, aliada aos desenhos expressivos de Benjamin Flao, torna o conhecimento acessível sem o simplificar em excesso. É aqui que o livro brilha mais intensamente, pois combina informação relevante com uma estética visual que eleva a experiência de leitura. As ilustrações, em aguarela, acompanham perfeitamente o tom da narrativa, ora realistas, ora poéticas, criando uma harmonia entre texto e imagem rara neste tipo de obras.

A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao - Bertrand
A terceira vertente da obra, porém, é que seria quanto a mim mais escusada. Assenta num mergulho mais profundo em questões mais técnicas. Será um seguimento por ventura natural da segunda vertente da história que menciono mais acima, mas com a diferença de que as informações são ainda mais técnicas o que, diria, talvez o sejam em excesso. Refiro-me a várias partes da obra em que nos são dadas verdadeiras fichas técnicas de micróbios, flores, cogumelos, árvores, etc, que depois são acompanhadas pelos respetivos nomes científicos. Esta secção lembra por vezes um manual escolar, com desenhos detalhados de folhas, flores, animais e sistemas de raízes. Para alguns leitores, este momento pode parecer mais denso e até algo expositivo em demasia. Compreendo que esta parte reforça a seriedade da proposta do livro, com o mesmo a poder ser mais do que uma leitura de entretenimento. E isso não tem nada de mal, antes pelo contrário, mas é um pouco contraditório se tivermos em linha de conta que o público para uma obra deste tipo será um público menos esclarecido no tema e que procura uma porta de entrada generalista no assunto. Contudo, também tenho que referir que apesar do tom mais técnico, os autores conseguem manter o esforço visual e estético que define a obra, mesmo nesta parte, o que ajuda a suavizar a complexidade.

E para isso, conta muito o belíssimo trabalho de Benjamin Flao, que merece especial destaque. A sua arte é de uma delicadeza notável, conseguindo representar a diversidade e a beleza das florestas sem se tornar repetitiva, o que até seria, à partida, um risco natural num livro cujo tema central são as árvores. As aguarelas trazem um certo lirismo à narrativa, elevando a leitura de uma simples transmissão de conhecimento para uma verdadeira experiência sensorial. Em muitos momentos, os desenhos falam por si, dispensando palavras. São desenhos absolutamente bonitos, com um traço que ora se revela "cartoonesco" para a caracterização das personagens, ora se revela mais realista para os cenários naturais ou criados pelo Homem. Reconheço que fiquei fã de Benjamin Flao, de quem não conhecia o trabalho.

A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao - Bertrand
Quanto à edição da obra, o livro apresenta capa baça e mole, com badanas e um ligeiro brilho no título. No miolo, o papel é baço e de boa qualidade, tal como também assim o é a encadernação e a impressão. Talvez o formato pudesse ser um pouco maios, para melhor absorvermos os belos desenhos de Benjamin Flao. 

Mesmo assim, é com satisfação que vejo a Bertrand, uma das maiores editoras nacionais, a apostar numa obra de banda desenhada, pois não é algo que, lamentavelmente, o faça muitas vezes. Bem sei que esta aposta advém do simples e direto facto da editora já ter no seu catálogo os livros em prosa de Peter Wohlleben e, portanto, o lançamento desta novela gráfica é apenas um lançamento natural e complementar. Não representará, pois, uma aposta especialmente séria da editora em banda desenhada. Mesmo assim, é sempre positivo, claro, e faço votos para que a Bertrand não se quede por estes lançamentos solitários de banda desenhada.

No panorama das bandas desenhadas didáticas, este A Vida Secreta das Árvores posiciona-se, pois, como uma obra de referência. É uma leitura informativa, mas também profundamente tocante, que consegue despertar uma nova consciência ecológica no leitor. A comparação com obras de excelência deste tipo como Sapiens ou O Mundo Sem Fim, é ajustada, pois também aqui se dá uma fusão bem conseguida entre ciência, arte e narrativa.

E, mais importante que tudo, a leitura deste livro provoca uma mudança de olhar sobre a floresta e sobre o nosso papel enquanto seres humanos no planeta. Deixa-nos a sensação de que vivemos ao lado de um mundo vivo, complexo e interconectado que, durante demasiado tempo, ignorámos ou reduzimos a um mero recurso económico. Ao mostrar que as árvores têm vida interior, o livro obriga-nos a repensar profundamente a nossa relação com o ambiente. E atenção que esta tomada de consciência não é à custa de demasiados lirismos romanceados que nos sugerem abraçar árvores, mas antes a compreender o seu papel insubstituível para as nossas vidas. Notável feito, portanto!

O saldo final é extremamente positivo. Trata-se de uma obra bem pensada, bem executada e, acima de tudo, necessária num tempo de urgência ecológica. A Vida Secreta das Árvores – Novela Gráfica é uma leitura obrigatória para quem se interessa por natureza, ciência ou simplesmente quer ver o mundo com outros olhos. Com um equilíbrio admirável entre conteúdo e forma, é um livro que educa, encanta e transforma.


NOTA FINAL (1/10):
8.7


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica, de Fred Bernard e Benjamin Flao - Bertrand

Ficha técnica
A Vida Secreta das Árvores - Novela Gráfica
Autores: Fred Bernard e Benjamin Flao
Adaptado a partir da história original de: Peter Wohlleben
Editora: Bertrand
Páginas: 240, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 162 x 241 mm
Lançamento: Julho de 2025

quarta-feira, 30 de julho de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Arte de Autor nos últimos 5 anos!

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Arte de Autor nos últimos 5 anos!


Se ontem vos falei da melhor banda desenhada editada pela Ala dos Livros, hoje falo-vos daquela que considero ser a melhor banda desenhada editada pela Arte de Autor nos últimos 5 anos, a partir de 2020, em tom de celebração pelos 5 anos de existência do Vinheta 2020.

Não são muitos os anos, mas são muitos os lançamentos de boa banda desenhada por cá, o que dá eco à ideia, que eu subscrevo, que a edição de banda desenhada em Portugal vive um dos seus melhores períodos de sempre... se não for o melhor.

Já escrevi isto ontem, mas deixo novamente aqui esta informação, para o caso de ser o primeiro destes artigos que o leitor desta página encontra:

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a "crème de la crème" de cada editora.

Feita a introdução, passemos então àquela que considero como a melhor BD lançada pela Arte de Autor nos últimos 5 anos. Chamo a atenção para o facto de eu considerar que fará sentido fazer um TOP dedicado aos lançamentos que a Arte de Autor fez em conjunto com a editora A Seita. Mas isso ficará para outro dia. Como tal, as obras lançadas em conjunto pelas duas editoras não foram tidas em conta para este TOP.

Por agora, centremo-nos no TOP dedicado aos livros exclusivamente editados pela Arte de Autor.

Ora vejam:

Análise: Un Père

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
Un Père, de JeanLouis Tripp

Por alturas em que, há pouco mais de dois meses, a Ala dos Livros lançava por cá o fabuloso livro O Meu Irmão, de JeanLouis Tripp, a editora Casterman lançava para o mercado franco-belga a mais recente obra do autor francês, que dá pelo nome de Un Père e que volta a centrar-se no passado autobiográfico de Tripp, com especial ênfase na relação deste com o seu pai.

É mais uma obra em que JeanLouis Tripp mergulha novamente com coragem na memória e na emoção, oferecendo ao leitor um álbum profundamente humano e comovente. Após a aclamação de um livro tão especial como O Meu Irmão, que abordava a perda trágica do seu irmão mais novo, Tripp vira agora o olhar para a complexa e delicada relação que teve com o seu pai. O resultado é uma obra de uma maturidade emocional impressionante, onde a ternura, a dor e a procura de sentido se entrelaçam numa narrativa que, embora fragmentada, nos conduz a uma experiência envolvente.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
A história parte de uma infância marcada por um amor pleno e exclusivo: Jean-Louis, quando em criança, viveu como filho único nos primeiros anos, experienciando um tempo dourado sob o carinho e a atenção do pai. Brincavam juntos, tinham momentos ternos a sós. No entanto, com o nascimento dos irmãos e com a degradação do casamento dos pais, essa fase idílica deu lugar a um afastamento gradual. O livro procura, qual catarse, compreender como esse vínculo inicial foi sendo corroído. E não é que tenham existido desentendimentos ou tensões tão grandes assim. Nesse ponto, a relação de ambos até foi semelhante a todas as relações de pai e filho, com os seus bons e maus momentos. E o próprio divórcio dos pais do autor, nunca sendo bom, claro, talvez também não tenha sido o responsável pelo crescimento desta alienação mútua. O que terá sido, então?

Tripp oferece-nos uma abordagem intimista, misturando lembranças aparentemente dispersas, mas que, juntas, constroem uma manta emocional sólida e sincera. A narrativa desta obra é feita de episódios, por vezes longos e marcantes, outras vezes breves e subtis, que nos transportam por várias épocas e locais, como as férias da família na Alemanha de Leste e na Roménia, espelhos da ideologia e do ativismo político do pai, um professor orgulhosamente comunista. Esses momentos, longe de meras curiosidades históricas, revelam o pano de fundo ideológico e afetivo em que se desenrolou a infância do autor.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
O álbum pode, por vezes, parecer retalhado em demasia, com uma sucessão de memórias sem uma ordem muito concreta. Nesse ponto, afasta-se bastante de O Meu Irmão, que é um livro de narrativa mais direta, que gravita todo à volta do trágico falecimento do irmão de Tripp e das eventuais consequências desse momento fatídico. Em Un Pére, tão depressa somos brindados com um momento marcante, como uma discussão mais forte entre pai e mãe, como a seguir seguimos rumo para um momento mais mundano nas férias em família dos protagonistas. E, parece-me, é precisamente nessa estrutura aparentemente solta e algo desconexa que encontramos reflexo na nossa própria memória e afeto. É que, tal como nos lembramos dos nossos entes queridos em lampejos e sensações avulsas, também Tripp nos vai contando a sua história. O fio condutor é, pois, emocional e não cronológico. Por vezes, pode parecer uma leitura mais aleatória, mas quando o leitor se deixa levar por esse fluxo, é inevitável ser tocado pela profundidade das revelações.

Se certas partes no enredo podem ser cambaleantes, o livro vai ganhando força - com a tal soma das partes, lá está - à medida que caminha para o final, com a comoção advinda a tornar-se mais densa. A distância entre pai e filho, inicialmente subtil, transforma-se numa dor surda que vai ganhando forma. O crescendo emocional conduz o leitor até à dor do afastamento, tão comum a tantas relações familiares. A força da narrativa da obra reside na capacidade de Tripp em não julgar, em não cair em ressentimentos fáceis, mas em procurar compreender e aceitar a imperfeição humana que habitou essa relação. Há toda uma sensação genuína de tentar superar as dores do passado.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
Visualmente, Un Père mantém o estilo gráfico característico do autor, com uma paleta sépia que remete para o passado, e com o uso da cor apenas no tempo presente ou em algum momento mais impactante e estilizado do passado. É um recurso simbólico eficaz, que sublinha a distância entre as memórias e a realidade atual. A arte de Tripp continua a ser um ponto forte, servindo com sensibilidade a natureza intimista do relato. As expressões, os silêncios, os olhares... tudo é tratado com grande aprumo emocional.

Em termos de edição, o livro apresenta capa mole com badanas, bom papel baço no miolo, e um bom trabalho ao nível da impressão e da encadernação, embora mereça comentário o facto de, como se trata de um livro bastante espesso (tem 360 páginas) e em capa mole, ser necessário muito cuidado no manuseamento para que a lombada não fique cheia de vincos. É uma boa edição, mas está bem atrás daquela que a Ala dos Livros nos ofereceu no seu recente O Meu Irmão. Por falar em Ala dos Livros, faço votos para que este Un Père possa ser lançado pela editora portuguesa o quanto antes. E, se não for pedir muito, que os dois livros de Extases, onde o autor aborda de forma autobiográfica a sua vida sexual, também tenham edição portuguesa. O trabalho de JeanLouis Tripp é demasiado bom para não ser integralmente editado em Portugal.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
Voltando a Un Père, o grande talento de Tripp está na sua capacidade de tratar emoções complexas com delicadeza e autenticidade, não tentando encobrir as falhas, mas também não transformando os conflitos em tragédias grandiosas. Há, antes, um retrato profundamente honesto do que é crescer, afastar-se, e depois tentar compreender em retrospetiva o que se perdeu... e o que ainda pode ser resgatado, mesmo que apenas na memória.

O livro tem, portanto, o mérito raro de falar ao leitor de forma universal, mesmo sendo profundamente pessoal. Todos os que foram filhos - e, eventualmente, todos os que são pais - encontrarão aqui algo de seu: uma dor antiga, um gesto mal compreendido, uma ausência não verbalizada. Un Père não dá respostas fáceis, mas convida-nos à reflexão, ao perdão e à reconciliação emocional, mesmo que simbólica.

Se O Meu Irmão nos confrontava com a dor da perda súbita, Un Père leva-nos por um percurso mais longo e silencioso: o da erosão lenta de uma ligação que nunca deixou de ser pautada pelo amor. Tripp mostra-nos que, mesmo onde há distância, pode haver também afeto e que, às vezes, compreender e aceitar são os únicos gestos possíveis de reconciliação. É, no fundo, uma carta de amor escrita com maturidade e dor contida, sendo um livro que se lê de uma assentada, mas que permanece connosco durante muito tempo. Pela honestidade, pela beleza do desenho, e sobretudo pela sua verdade emocional, Un Père é uma obra memorável que nos obriga a parar, a olhar para trás e, quem sabe, a repensar a nossa própria história familiar. Não há dúvidas de que JeanLouis Tripp é um dos meus autores favoritos de banda desenhada! 


NOTA FINAL (1/10):
9.7


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman

Ficha técnica
Un Père
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 360, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 19,8 x 26,1 cm
Lançamento: Maio de 2025

terça-feira, 29 de julho de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Ala dos Livros nos últimos 5 anos!


A propósito da comemoração dos 5 anos de existência do Vinheta 2020, trago-vos um especial que começa a partir de hoje e que procura celebrar e assinalar a melhor banda desenhada que cada uma das principais editoras portuguesas editou nos últimos 5 anos. Durante as próximas semanas tentarei, pois, oferecer-vos um artigo por editora.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a crème de la crème de cada editora.

Em cinco anos de edição ininterrupta de banda desenhada, há naturalmente muitos títulos editados e, como devem calcular, a tarefa não foi fácil e vi-me forçado a excluir obras fantásticas, mas, lá está, há que fazer escolhas e estas são as minhas escolhas.

Hoje começo com uma editora cujo contributo para o lançamento de boa banda desenhada em Portugal é verdadeiramente inegável: a Ala dos Livros.

Esta editora tem um catálogo que considero de extrema qualidade. São (muito!) mais as obras que adoro da editora, do que aquelas de que não gosto. Não foi fácil, mas aqui está o meu TOP

Eis, mais abaixo, as minhas obras favoritas lançadas pela editora Ala dos Livros:

Análise: O Corcunda de Notre Dame

O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess - A Seita

O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess - A Seita
O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess

Depois das fantásticas adaptações para banda desenhada de Drácula e Frankenstein, do autor francês Georges Bess, chegou-nos recentemente a sua terceira adaptação de clássicos da literatura mundial. Desta vez, a obra em questão é O Corcunda de Notre Dame (no original Notre Dame de Paris), de Victor Hugo, que, à semelhança das obras acima referidas, é publicada por cá pela editora A Seita, na sua coleção Nona Literatura.

Esta banda desenhada mergulha-nos na atmosfera sombria e intensa da Paris medieval, onde a catedral de Notre Dame se impõe como uma personagem quase viva, testemunha silenciosa das tragédias humanas que ali se sucedem em catadupa. Georges Bess opta por uma abordagem profundamente fiel ao original, distanciando-se das versões mais ligeiras e populares, como a dos estúdios Disney, o que confere à narrativa um peso e uma densidade que a tornam uma experiência mais exigente, mas também, diria, mais recompensadora.

O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess - A Seita
E ao contrário da célebre adaptação da Disney que se centra quase exclusivamente na personagem do corcunda Quasimodo, esta adaptação, à semelhança do texto original, divide-se mais irmãmente  entre as personagens de Quasimodo, o corcunda que vive enclausurado na catedral, Esmeralda, a jovem cigana de beleza hipnótica, e Dom Frollo, o arquidiácono atormentado por desejos reprimidos e consequentes culpas. Aparecem ainda várias outras personagens que acabam por reclamar para si mesmas mais peso e relevância para o desenlace da história. A teia de sentimentos contraditórios, paixões proibidas e impossíveis, bem como os variados conflitos morais, habilmente arquitetada por Victor Hugo, é trazida à 9ª arte por Georges Bess, que consegue reproduzir todo esse peso narrativo, revelando-se, novamente, um mestre na forma como conduz a narrativa visual, equilibrando a grandiosidade do texto com uma componente visual notável.

Não posso negar que sou um verdadeiro fã destas adaptações de Georges Bess. Gostava do trabalho do autor em O Lama Branco ou Juan Solo, mas é nestas grandiosas adaptações a preto e branco que o virtuosismo do autor mais sobressai. Autor que, já agora, divide os créditos da criação da obra com a sua esposa, Pia Bess - embora essa informação não conste na capa da obra.

O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess - A Seita
Do ponto de vista gráfico, este álbum é verdadeiramente uma obra de arte! O domínio do preto e branco por parte de Bess mantém-se fulgurante. As sombras profundas, os contrastes intensos e a expressividade das personagens conferem à obra um caráter dramático, ao mesmo tempo belo e perturbador. Os detalhes da arquitetura gótica de Notre Dame, os rostos marcados pelo sofrimento ou pela obsessão, tudo está meticulosamente desenhado, revelando um cuidado quase obsessivo com a fidelidade estética e emocional, por parte do autor.

Os desenhos do autor já me tinham arrebatado em Drácula e Frankenstein e voltam a fazê-lo neste O Corcunda de Notre Dame, embora reconheça que, em certos momentos deste livro - não tantos assim - se sinta uma ligeira oscilação no aprumo visual. Nada de muito gritante, mas um olho atento encontrará algumas vinhetas que aparentam ter recebido menos tempo ou atenção, com fundos mais vazios e traços menos elaborados e mais rabiscados. Reitero que são ligeiras oscilações e que, olhando para o todo, não comprometem a obra, mas fazem-se notar, sobretudo porque o padrão geral é tão elevado. 

Há momentos particularmente memoráveis nesta adaptação como certas cenas de grande tensão dramática ou passagens visuais que nos tiram o fôlego pelo seu impacto artístico. A cena da execução iminente de Esmeralda, por exemplo, é retratada com uma intensidade visual que encapsula perfeitamente o desespero e a injustiça da situação. Da mesma forma, a solidão de Quasimodo ganha vida nas sombras do campanário, numa representação comovente e profundamente humana.

Em termos de adaptação narrativa, a densidade da história original de Hugo impõe-se de forma clara. A complexidade dos enredos secundários, os múltiplos pontos de vista e as reviravoltas constantes podem tornar a leitura algo desafiante, reconheço. Mas se isso puder ser considerado como menos positivo, não será por culpa de Georges Bess, que opta deliberadamente por manter a estrutura e a profundidade da obra original, mas da própria história de Victor Hugo que, quanto a mim, tem alguns volte faces algo rebuscados. Enfim, convém não esquecer que a obra foi originalmente escrita em 1831, há quase 200 anos.

O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess - A Seita

Portanto, será nesse sentido, na tal componente narrativa e não tanto na visual, que na comparação com as anteriores adaptações de Georges Bess, este O Corcunda de Notre Dame fica uns ligeiros furos abaixo. Quer Drácula, quer Frankenstein, apesar da sua densidade temática, apresentavam uma fluidez narrativa ligeiramente superior. Talvez isso suceda pelo facto de O Corcunda de Notre Dame ser mais enraizado em conflitos humanos e menos centrado em elementos fantásticos.

Seja como for, estamos aqui a falar de detalhes, importando destacar também o respeito quase reverencial com que Georges Bess trata a obra de Victor Hugo. Sente-se que o autor tem um gosto especial por esta história, o que se reflete na forma cuidadosa como a representa. E ao contrário de adaptações mais livres, esta é um tributo fiel, onde as palavras e os silêncios são igualmente poderosos. A escolha de manter o tom trágico, sem aligeirar a narrativa, é uma decisão corajosa e honesta, que dá credibilidade à obra.

Em termos de edição, o livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz, bom papel baço no miolo e um bom trabalho em termos de encadernação e impressão. Há ainda um caderno extra de 10 páginas que nos oferece um magnífico conjunto de ilustrações de Georges Bess.

Em suma, neste O Corcunda de Notre Dame, Bess entrega-nos mais uma vez uma obra de primeira linha, marcada por uma estética requintada e uma fidelidade intransigente ao texto de origem. Pode não ser a sua adaptação mais acessível ou imediata, e ficar uns pontos abaixo de Frankenstein ou Drácula, mas é um trabalho de elevado mérito artístico, que alia a qualidade gráfica à densidade literária, e que, por isso, é fortemente recomendado. 


NOTA FINAL (1/10):
9.2



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Corcunda de Notre Dame, de Georges Bess - A Seita

Ficha técnica
O Corcunda de Notre Dame
Autor: Georges Bess
Editora: A Seita
Páginas: 216, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 225 x 290 mm
Lançamento: Maio de 2025

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Monster está de volta!




A editora Devir prepara-se para fazer chegar às livrarias o quinto volume da série Monster, de Naoki Urasawa!

Por agora, o livro já pode ser encontrado em pré-venda no website da editora.

Este é o ponto em que a série vai a meio, sendo que a mesma é constituída por 9 volumes.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.


Monster #5, de Naoki Urasawa

Tenma tenta entrar clandestinamente na Checoslováquia para procurar a mãe de Johan.

É apanhado em flagrante delito pela polícia da fronteira, mas escapa por pouco com a ajuda de Grimmer, um jornalista freelancer. 
Os dois homens separam-se sem perguntar um ao outro o que os trouxe à Checoslováquia. Na verdade, Grimmer também está profundamente interessado no kinderheim 511 que existiu em tempos na Alemanha de Leste.

Prémios:
Prémio de Manga de Excelência, no 1º Japan Media Arts Festival, 1997.
Grande Prémio Cultural Tezuka Osamu, 1999
Prémio Manga Shogakukan, 2001
Melhor série mangá, Lucca Comics, 2004
Prémio de Melhor série de manga, Lucca Comics, 2004
Nomeado para o Prémio Eisner, nos E.U.A., na categoria de Melhor Edição Americana de Adaptação Internacional – Japão, em 2007 e 2009; e Melhor Série, em 2007, 2008 e 2009

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Ficha técnica
Monster #5
Autor: Naoki Urasawa
Editora: Devir
Páginas: 406, a preto e branco
Formato: 14,8 x 21 cm
PVP: 20,00€


Análise: Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994), de Riad Sattouf

Foi recentemente que a editora ASA nos fez chegar Eu, Fadi - O Irmão Raptado, de Riad Sattouf, que volta a dar-nos a história biográfica da família Sattouf. Se, nos seis volumes de O Árabe do Futuro, a história nos era contada através da perspetiva do próprio Riad Sattouf, que nos revelou a sua experiência desafiante de ser filho de pai sírio e mãe francesa, nesta nova série, que funciona como spinoff da série principal, acompanhamos a experiência direta de Fadi, o irmão mais novo de Riad, quando o pai de ambos decide voltar para a Síria levando o seu filho mais novo consigo. 

A base de argumento para este livro resultou das entrevistas que, em 2011 e 2012, Riad fez ao seu próprio irmão Fadi e é a personagem de Fadi quem assume o papel de narrador, reconstituindo os momentos marcantes da sua infância entre a Bretanha, em França, e a Síria, país para onde foi levado pelo pai. É esperado que esta mini-série seja concluída ao cabo de três volumes. 

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Há, sem dúvida, uma sensação de déjà vu ao voltarmos a visitar os acontecimentos que marcaram a vida da família Sattouf, especialmente para quem acompanhou a série principal. No entanto, esta repetição tem o seu mérito: ao vermos tudo pela perspetiva de Fadi, a narrativa ganha um novo sabor e uma segunda leitura, revelando aspetos emocionais e psicológicos diferentes dos que foram relatados por Riad. Por conseguinte, a obra não atinge a mesma capacidade de espantar o leitor como O Árabe do Futuro conquistou, mas funciona como uma espécie de complemento ou expansão do universo narrativo criado por Sattouf. E, por esse motivo, é bem-vinda.

E é inegável que o estilo narrativo de Riad Sattouf continua a cativar. A forma como o autor conjuga texto e imagem, humor e tragédia, inocência e crítica social, é magistral. É fácil perdermo-nos nas páginas, seguindo as emoções do jovem Fadi, sentindo a sua confusão, a sua saudade pela mãe, a sua adaptação forçada a uma realidade cultural e familiar tão diferente daquela que conhecia. Nessa vertente, talvez este Eu, Fadi - O Irmão Raptado até seja uma obra mais dura e dramática do que O Árabe do Futuro.

Mesmo assim, o humor é um elemento que vai aparecendo até nos momentos mais dolorosos. Esta é uma característica que Sattouf domina como poucos. Há uma ironia subtil, muitas vezes expressa nos diálogos infantis ou nas observações ingénuas do narrador, que torna a leitura mais leve sem nunca desvalorizar o sofrimento real por detrás dos acontecimentos.

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Mas, lá está, vista pelos olhos de Fadi, até diria que a figura do pai sai ainda mais manchada. Se nos volumes da série principal, o pai de Riad e Fadi me fez rir muito com a sua postura, aqui o seu retrato é mais cru e obviamente errado, levando o leitor a questionar ainda mais o porquê de tamanho egoísmo e maldade em raptar o próprio filho. Acaba, pois, por ser um livro mais deprimente do que os da série principal.

E é impossível não destacar o que o livro revela sobre os laços familiares, os choques culturais e o trauma da separação parental: Fadi, como qualquer criança, é apanhado no meio de decisões adultas, sem entender completamente as razões nem os impactos. É essa incompreensão, aliada à sinceridade do olhar infantil, que torna o livro comovente e que justifica plenamente a sua existência dentro do universo Sattouf.

Para quem já é fã da série, como eu, este livro é um regresso mais do que bem-vindo ao universo de Riad Sattouf. A familiaridade com as personagens e com os contextos geográficos e históricos só enriquece a experiência. E ver os mesmos eventos sob o olhar do irmão mais novo proporciona novos ângulos, novas interpretações, e uma camada adicional de emoção e empatia.

No entanto, para aqueles que leram, mas não se apaixonaram pela série principal, este volume talvez não tenha a força suficiente para os reconquistar. A ausência da característica "novidade" pode tornar a leitura menos impactante para esses leitores.

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Quanto aos que ainda não conhecem a série, talvez não seja este o melhor ponto de partida, também. A esses, eu recomendaria que fossem ler primeiro O Árabe do Futuro, pois Eu, Fadi - O Irmão Raptado funciona melhor como uma leitura complementar, que aprofunda personagens já conhecidas. Portanto, para quem quer mergulhar pela primeira vez no mundo narrativo de Sattouf, a recomendação mais lógica continua a ser começar por O Árabe do Futuro

Escrito assim, posso estar a dar-vos a falsa ideia de que não gostei deste livro ou que não o li com uma enorme avidez como li os livros anteriores. Mas não foi o caso, pois, na verdade, também adorei este livro. Simplesmente o acho um pouco mais redundante. É bom, mas é um pouco "mais do mesmo". Portanto, se são como eu e adoram a série, não percam mais tempo e leiam também este Eu, Fadi - O Irmão Raptado.

De resto, permitam-me ainda referir que, em termos gráficos, o livro mantém a qualidade visual a que Sattouf já nos habituou. O traço é expressivo, simples, mas extremamente eficaz. A paleta de cores, em que há uma cor dominante que vai mudando ao longo do livro, e a expressividade das personagens contribuem para uma leitura fluida e emocionalmente envolvente. Volta a ser "mais do mesmo", mas no melhor sentido da expressão.

Quanto à edição da ASA, o livro é semelhante ao da restante coleção de O Árabe do Futuro, apresentando capa mole baça, com badanas, e bom papel baço no interior do livro, além de boas encadernação e impressão. O destaque vai para o facto de a chancela que publica esta coleção ter deixado de ser a Teorema para passar a ser a ASA. É claro que o grupo editorial LeYa se mantém o mesmo, mas parece-me que esta alteração da Teorema para a ASA é uma prova clara do envolvimento, especialização e reposicionamento da ASA no lançamento de banda desenhada. Quanto a mim, faz todo o sentido, pois permite que os leitores não se percam face aos lançamentos que são dedicados à banda desenhada.

Portanto, em suma, embora haja uma certa sensação de redundância neste Eu, Fadi - O Irmão Raptado, não se pode dizer que o livro seja um derivado oportunista da série principal, pois é uma obra emocional, honesta e artisticamente cuidada, que oferece uma nova lente sobre eventos já narrados, provando mais uma vez que a qualidade narrativa de Riad Sattouf é uma constante garantida. Recomenda-se.


NOTA FINAL (1/10):
8.6



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa

Ficha técnica
Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994)
Autor: Riad Sattouf
Editora: ASA
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 240 x 171
Lançamento: Maio de 2025

As novidades de BD d' A Seita para o segundo semestre de 2025!



Hoje trago-vos as novidades de banda desenhada que a editora A Seita tem preparadas para o segundo semestre de 2025! E que belas novidades são elas!

Será um semestre especialmente apetitoso, pois a editora prepara-se para lançar várias obras de qualidade superior! Habitualmente, o segundo semestre d' A Seita costuma ser mais forte, pelo menos em termos de quantidade de lançamentos, e, mais uma vez, parece que é isso que vai acontecer, com boas propostas ao nível de obras franco-belgas, de mangá e de autores nacionais.

Ora vejam, em primeira mão, que novidades são essas, num discurso na primeira pessoa, que um dos editores responsáveis da editora, José Hartvig de Freitas, gentilmente me cedeu!

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Análise: Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor

Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor, de Achdé e Patrick Sichère - Ala dos Livros


Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor, de Achdé e Patrick Sichère - Ala dos Livros
Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor, de Achdé e Patrick Sichère

Houve um tempo - não tão longínquo assim - em que eram publicadas em Portugal variadíssimas obras de banda desenhada franco-belga de humor. Eram livros leves e de humor fácil, muitas vezes com histórias curtas de uma ou várias páginas. Considero que o maior "Rei" deste tipo de histórias continua a ser Gaston Lagaffe, de André Franquin, mas poderia citar inúmeras outras obras como Bruce Kid, Agente 212, Campeões, Dirty Henry, E Deus Criou a Eva, O Inferno dos Concertos, Cubitus, O Exterminador, Ligue-me ao Céu, entre muitas, muitas, muitas - e muitas! - outras séries. 

E eram variadíssimas as editoras portuguesas a apostar neste tipo de obras - embora possa dizer que as editoras Booktree ou a ASA eram das que mais editavam este tipo de BD humorística. Posso admitir que talvez se tenha exagerado um pouco na quantidade de obras deste género lançadas nesta altura, algures no início dos anos 2000, posso dizer-vos que foram muitos os livros que me divertiram e que continuam a merecer um destaque na minha estante quando quero uma banda desenhada mais divertida e despretensiosa para me divertir.

Ora, toda esta introdução serve-me para vos falar de um dos lançamentos mais recentes da editora Ala dos Livros que dá pelo nome de Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor e é da autoria de Achdé e Patrick Sichère. Esta é uma banda desenhada que casa perfeitamente bem no conjunto de obras por mim elencadas mais acima: é leve e humorística, com algumas histórias curtas que nos deixam bem dispostos. Parece algo simples e fácil, eu sei, mas a verdade é que, se excluirmos o regresso pouco consensual de Gaston Lagaffe no ano passado, estivemos anos e anos sem nenhum lançamento deste tipo em Portugal. E, só por isso, saúdo a aposta da Ala dos Livros.

Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor, de Achdé e Patrick Sichère - Ala dos Livros
Este livro que conta com desenho do atual ilustrador da série Lucky Luke e com argumento de Patrick Sichère, que é reumatologista especialista em dor, é uma banda desenhada invulgar e surpreendente, que junta duas áreas à partida pouco compatíveis: medicina e humor em BD. Talvez por isso, vá até um pouco mais longe do que algumas das séries humorísticas franco-belgas que referi acima. É que, para além de fazer rir, de causar boa disposição, este Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor também procura informar-nos acerca das diferentes patologias que nos causam dor física, bem como a sua origem ou a resposta dada pela medicina, ao longo da história, a esses mesmos tipos diferentes de dor, tentando atenuar as mazelas que nos incomodam. 

Partindo, então, da premissa de que a dor, ainda que real e frequentemente debilitante, pode (e talvez deva) ser alvo de um olhar bem-humorado, a obra apresenta-se como uma coletânea de oito pequenas histórias nas quais os autores nos apresentam variados tipos de dores, como enxaquecas, dores de dentes, dores em membros-fantasma, fibromialgia, dores nas costas, entre várias outras. O livro percorre uma série de episódios e tópicos relacionados com a dor, explicando as suas origens, sintomas e possíveis tratamentos. E ainda nos fala de personagens relevantes da nossa história. Sempre com um registo cómico e exagerado, claro.  

A aparentemente inusitada dupla de autores acaba por funcionar de forma exemplar: Sichère fornece o conhecimento clínico e técnico sobre as várias manifestações da dor e Achdé traduz tudo isso em sequências visuais cheias de energia, humor e expressividade. A estrutura quase enciclopédica de algumas informações que nos são dadas a conhecer é rapidamente contrariada por uma piada visual, uma caricatura ou uma vinheta absurda que desarma o leitor e o convida a rir... mesmo quando o tema é uma hérnia discal ou uma enxaqueca insuportável. O efeito é desconcertante no melhor sentido: aprendemos e divertimo-nos ao mesmo tempo.

Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor, de Achdé e Patrick Sichère - Ala dos Livros
E é precisamente esta fusão entre conteúdo educativo e humor que torna Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor um trabalho duplamente bem conseguido. Raramente uma banda desenhada informativa consegue manter o leitor tão envolvido, e raramente uma banda desenhada humorística consegue transmitir tanta informação sem se tornar maçadora. Aqui, os autores encontram um equilíbrio eficaz, onde o conhecimento serve o riso e o riso serve o conhecimento.

À medida que ia lendo, senti-me não só entretido como verdadeiramente instruído. De certa forma, desejei que o livro fosse maior: quando dei por mim a terminar a leitura, tive vontade de continuar, de aprender mais sobre a origem de outras dores específicas, e de o fazer neste registo tão peculiar e refrescante. São apenas 8 temas que aqui são tratados, mas bem que poderiam ser 20 ou 30. Ou mais.

No plano visual, Achdé revela um belo jogo de cintura. Embora o autor seja amplamente conhecido  pelo seu trabalho em Lucky Luke, neste livro o ilustrador opta por um estilo mais solto, mais adequado ao tom desbragadamente cómico da narrativa. No entanto, há momentos – expressões faciais, gestos exagerados, certos enquadramentos – que parecem piscar o olho ao universo do cowboy solitário. São apenas subtis reminiscências que, diria, conseguem trazer um charme adicional à leitura, sobretudo para os fãs de longa data do autor.

A edição da Ala dos Livros é em capa dura baça, com detalhes a verniz, e, no miolo, podemos encontrar um bom papel brilhante e um bom trabalho ao nível de impressão e encadernação. Pode parecer - e é - um preciosismo da minha parte, mas parece-me que em vez de se chamar "Aii!", a obra deveria chamar-se, simplesmente, "Ai!". Julgo que ficaria mais inequívoca essa interjeição de dor. Mas também compreendo que isto implicaria um certo ajuste gráfico da capa.

Em suma, termino dizendo que este tipo de banda desenhada – informativa, cómica e temática – tem estado notoriamente ausente das livrarias portuguesas. Há muito que não se via uma obra que abordasse um tema específico com esta leveza humorística e simultaneamente com tanta seriedade no conteúdo. Por isso, Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor não só cumpre plenamente aquilo a que se propõe, como preenche uma lacuna no panorama editorial português. Um manual ilustrado de dores humanas que, em vez de nos fazer sofrer, nos leva a rir. Uma leitura que, ironicamente, até nos pode ajudar a que certas dores nos doam menos.


NOTA FINAL (1/10):
8.3



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor, de Achdé e Patrick Sichère - Ala dos Livros

Ficha técnica
Aii! - A Dor Também Se Trata Com Humor
Autores: Achdé e Patrick Sichère
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 60, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Maio de 2025