Há livros que nos apanham de surpresa e este Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy, recentemente editado pela Iguana, é um deles. A capa é curiosa, o título ainda mais, e quando damos por nós, já estamos a rir com as desventuras deste herói improvável.
Começo até por esse ponto: o facto de este ser um livro de banda desenhada humorística., coisa não tão comum assim no mercado nacional. Ainda menos se tivermos perante uma obra de estreia, como é o caso.
A história que o autor português Ozzy arquitetou conta-nos a caminhada de Amável - sim, chama-se mesmo "Amável" - que é alguém que, à semelhança de muitas outras pessoas que, está preso a um trabalho de que não gosta e procura, nos entretantos da sua existência, arranjar redenção e felicidade para a sua vida. No caso de Amável, é na prática da luta no ringue que ele se sente bem. É o seu hobby, o seu escape.
Um dia, herda uma fita vermelha, semelhante à de John Rambo, que era do seu pai, o que o leva a embarcar numa viagem, algo sensorial - e completamente rocambolesca! -, numa procura por identidade com base no legado do seu pai.
É uma história com contornos meio loucos, meio inspiradores. O autor português Ozzy constrói uma narrativa divertida, cheia de peripécias e um belo ritmo narrativo, onde o humor anda de mãos dadas com a reflexão. Ozzy oferece-nos boas mensagens, bons trocadilhos, bons momentos e um conjunto de what a fucks inusitados, que nos agarram à leitura, fazendo-nos sorrir e deixando-nos com o seguinte pensamento: "para onde me está a querer levar esta história?". Ora, essa é sempre uma coisa que me agrada num livro. Gosto que não seja óbvio - e às vezes é - o destino para onde uma qualquer obra nos leva.
O que me prendeu logo foi o humor independente do livro. É aquele tipo de humor que não tenta agradar a toda a gente, mas que resulta pela originalidade e pelo ritmo visual. Ozzy brinca com clichets, faz trocadilhos visuais e usa o exagero de forma criativa. É o tipo de comédia que lembra certas animações fora da caixa, com um toque de nonsense e uma piscadela de olho ao leitor mais atento.
E é claro que esta história de tom rocambolesco, talvez um pouco rebuscado por vezes, funciona muito bem nesse registo. Há situações absurdas, coincidências improváveis e até momentos de pura comédia física, mas tudo isso é equilibrado com temas mais profundos como o luto, a herança familiar ou, especialmente, a sensação de estarmos presos a um papel que não é o nosso. O resultado é uma narrativa divertida, mas com coração. Dá para rir e, de vez em quando, pensar um bocadinho também.
Em termos de arte, o desenho de Ozzy mostra que há aqui muito potencial. Nota-se que é uma primeira obra e que o autor ainda está a encontrar o seu estilo, mas há páginas em que o belo desenho salta à vista, revelando-se expressivo, dinâmico e cheio de energia. Há outros casos, todavia, em que se sente que faltou algum polimento, algum cuidado com os desenhos, principalmente nas proporções das personagens e na fluidez da linguagem corporal.
Acaba por haver um certo desequilíbrio nos desenhos de Ozzy. Quando o autor acerta, acerta mesmo. Algumas vinhetas, especialmente nas cenas de ação, têm uma energia que faz lembrar o cinema, e não é por acaso, já que o livro tem algumas referências cinematográficas e o próprio autor tem experiência em animação. Por outro lado, há que ser justo e reconhecer que muitos dos desenhos presentes neste livro não alcançam esse patamar que o autor demonstra conseguir atingir, o que dá um aspeto um pouco menos profissional ao todo.
Um outro ponto bastante positivo é, porém, o uso das cores. Os tons de azul dominam e dão à obra uma atmosfera muito própria que me agradou.
Em termos de edição, o livro apresenta um bom aspeto, com capa dura baça, com detalhes a verniz, e um bom papel baço no miolo. A encadernação e impressão também são de boa qualidade. Contudo, há algumas arestas que ficaram por limar. A edição tem alguns problemas técnicos, sobretudo na disposição dos balões e na organização das vinhetas. Há momentos em que o sentido de leitura se perde um pouco, obrigando o leitor a recuar para perceber o que está a acontecer. Também a balonagem poderia ter sido tratada com mais cuidado, por vezes, o texto parece apertado dentro dos balões ou mal posicionado. Nada que destrua a obra, diria, mas são detalhes importantes que se notam e que condicionam um pouco a boa fruição da leitura. Menos positivo ainda é a existência de uma página em duplicado, por lapso da editora que, entretanto fez uma divertida errata a esse propósito. Dado o tom desbragado da obra até passaria bem, digo eu, mas, claro, é pena, pois põe em causa o intento artístico original de Ozzy.
Apesar disso, Amável – O Pugilista Gentil é uma obra cheia de vida e autenticidade. Num panorama onde a banda desenhada portuguesa tende a ser muito séria ou introspectiva, é ótimo ver surgir algo mais leve, divertido e visualmente ousado, com um cariz meio independente que é bem-vindo. Ozzy arrisca, ri-se de si próprio e do mundo à sua volta, e convida o leitor a fazer o mesmo. E isso é sempre um sinal de maturidade criativa, mesmo em quem está a dar os primeiros passos na banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
7.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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