quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

VINHETAS D'OURO 2024 "já mexem!"


Aproximando-se o fim do ano, também se aproxima a Gala dos VINHETAS D'OURO 2024, os Prémios da Crítica Portuguesa de Banda Desenhada. Como se assinala a 5ª edição destes prémios, estão prometidas algumas novidades, que vos apresento mais abaixo!

Em primeiro lugar, realiza-se um sonho meu de que os Prémios passem a ter um website exclusivamente dedicado aos mesmos, onde todos os interessados poderão obter todas as informações sobre os Prémios, nomeadamente, terem acesso ao regulamento, aos membros constituintes do Painel de Jurados, às galas anteriores, aos vencedores das edições passadas, ao Hall of Fame dos prémios, entre outras informações que se considerem relevantes.

Em segundo lugar, há novas caras entre os jurados desta 5ª edição dos prémios: Dário Duarte (AKA Derradé), Francisco Lyon de Castro e Fred Santos são os novos membros deste numeroso painel constituído por 17 jurados.

Em termos de categorias a concurso, também teremos novidades.

Depois de consultados os leitores, os editores e os autores, para melhor aferir opiniões, tomei a decisão de, pelo menos nesta quinta edição dos prémios, excluir várias categorias: a de Melhor Capa, a de Melhor Criador de Conteúdos e a de Melhor Editora. Sei que haverá sempre alguém que vai dizer: "Oh, mas essa era a minha categoria preferida". E isso é legítimo. Mas também é (mais) legítimo que os prémios tentem ir ao encontro das expectativas do público. É para esse mesmo público que os prémios são feitos.

A exclusão da categoria Melhor Capa é apenas porque me parece que a mesma tinha vindo a perder a relevância com a passagem dos anos. Já a categoria Melhor Criador de Conteúdos sai por dois motivos: por um lado, era uma das categorias menos relevantes para o público. E assim foi votada. Por outro lado, não havendo, infelizmente, tantos criadores de conteúdos assim, os prémios cairiam no risco de, ano após ano, estarem sempre a premiar/assinalar os mesmos intervenientes. Não haveria, pois, um valor acrescentado para o público.

Também por essa mesma razão, optei por deixar cair a categoria Melhor Editora. E talvez esta escolha seja mais polémica, reconheço. Desde a criação da categoria, há dois anos, que vi muita gente a contestar a própria categoria e outras tantas pessoas a defendê-la. E, neste ponto, confesso que estava dividido. Por um lado, compreendo que o somatório das boas edições, a aposta em novos autores, a relevância das edições de BD é algo digno de opinião alheia e, portanto, digno de um VINHETA D'OURO. Por outro lado, e havendo já a categoria de Melhor Edição, a categoria de Melhor Editora poderia tornar-se algo redundante. E mais importante que isso é que, do ponto de vista do público, o facto de uma editora ganhar este prémio não merece especial atenção. Já o mesmo não pode ser dito para a obra que arrecada o prémio para Melhor Edição e que vai, claro está, suscitar o interesse dos leitores. Por último, e tal como na categoria de Melhor Criador de Conteúdos, não há assim tantas editoras de banda desenhada em Portugal o que faria com que, se mantivéssemos esta categoria, ano sim, ano não, os nomeados e/ou vencedores fossem sempre os mesmos. Mais uma vez, não haveria valor acrescentado para o público.

Mas se estas são as categorias que saíram este ano - e não digo que não possam voltar no futuro, caso se justifique - há três novas categorias que as substituem: Melhor Argumento Adaptado de Autor Português, Melhor Curta de BD de Autor Português e Melhor Loja Portuguesa de Banda Desenhada.

E, já que são novidades, vamos lá falar de cada uma destas categorias.

No ano passado, uma das obras que foi nomeada a Melhor Argumento de Autor Português foi Auto da Barca do Inferno, cuja obra original de Gil Vicente foi adaptada para banda desenhada por João Miguel Lameiras. Como sabem, os VINHETAS D'OURO são prémios democráticos. Os nomeados e vencedores são apenas aqueles que alcançam mais votos por parte dos jurados. Tão simples como isso. Mesmo assim, foi uma nomeação que me fez confusão. Não que o trabalho de adaptação de João Miguel Lameiras não fosse interessante, mas porque estava-se a dar destaque a uma obra cujo argumento não era original, mas sim uma adaptação. E a "culpa" disso nem era de ninguém... apenas da omissão do Regulamento sobre o assunto. Havia, pois, a necessidade de tornar o Regulamento mais claro para melhor corresponder às necessidades. Posto isto, tomei a decisão de, quando se justificar, apresentar ter a categoria de Melhor Argumento Adaptado de Autor Nacional. Ainda para mais, num ano em que têm sido lançadas tantas adaptações portuguesas para banda desenhada, faz todo o sentido. E assim separa-se uma coisa da outra, não prejudicando ninguém.

Quanto à Melhor Curta de BD de Autor Português, parece-me relevante que se dê atenção a curtas de banda desenhada. É um subcategoria dentro da própria categoria que, quanto a mim, merece um destaque, uma oportunidade. Como tal, e porque podem não chegar aos jurados todas as curtas de banda desenhada lançadas em Portugal, convoco todos os editores e autores a submeterem, até ao dia 31 de Dezembro de 2024, as suas curtas de banda desenhada, em formato PDF, para o email vinheta2020@gmail.com

Finalmente, este ano haverá a categoria Melhor Loja Portuguesa de Banda Desenhada. Esta é uma categoria que não será anual mas que aparecerá de cinco em cinco anos. Porquê? Bem, por uma questão de coerência. Da mesma forma que já referi que nas categorias de Melhor Editora ou Melhor Criador de Conteúdos o espectro nacional não é assim tão grande e correríamos o risco de nomear/premiar sempre os mesmos... imaginem se tivéssemos a categoria de Melhor Loja Portuguesa de Banda Desenhada de forma anual. Eram sempre os mesmos a serem nomeados/vencedores. E perdia-se a ideia de informar o público. Se o público já estiver informado... não precisa que o lembremos. Então, porque é que teremos esta categoria este ano? Por cortesia. Porque achamos que, como nunca foi assinalado o bom trabalho das lojas portuguesas de banda desenhada, talvez seja agora a altura para o fazer. De forma simbólica, em jeito de comemoração dos 5 anos dos VINHETAS D'OURO. Reforço, mais uma vez, que esta categoria apenas aparecerá de 5 em 5 anos.

De resto, as categorias mantêm-se as mesmas, com a exceção que a categoria Melhor Mangá publicado em Portugal passará a designar-se Melhor Obra de Estilo Mangá publicada em Portugal. É um preciosismo que permite acomodar as obras que, mesmo sendo de origem francesa ou coreana, por exemplo,. se considerem de estilo visual próximo ao do mangá. Creio que, desta forma, tornamos mais impenetrável o Regulamento dos Prémios que, como fica claro, sofre alterações e melhoramentos de ano para ano.

Sobre a GALA dos Prémios, apraz-me dizer-vos que estão a ser feitos alguns esforços para, de algum modo, fazer um evento presencial, à margem da Gala Virtual, que juntará autores, editores e público. 

Mas mais informação sobre este ponto será dada a seu tempo num futuro próximo.

Ah! E Não deixem de passar no novo site dos VINHETAS D'OURO.


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Análise: Maltempo

Maltempo, de Alfred - Devir

Maltempo, de Alfred - Devir
Maltempo, de Alfred

Geralmente mais centrada na publicação de banda desenhada de origem japonesa, bem como de alguns comics americanos, a editora Devir lançou há poucas semanas duas obras de autores europeus: Crónicas de Jerusalém, de Guy Delisle, e este Maltempo, de Alfred, de quem a editora já tinha publicado, em 2022, a obra Como Antes.

Quer Como Antes, quer este Maltempo, fazem parte de uma trilogia, da qual ainda consta Senso, que é ambientada em Itália. São histórias independentes e diferentes entre si, mas que têm em comum as paisagens e cultura italianas como pano de fundo.

Estava bastante desejoso de ler este Maltempo e posso dizer-vos que, se já tinha gostado dos trabalhos anteriores de Alfred, este Maltempo ainda consegue superar Como Antes

Maltempo, de Alfred - Devir
A história centra-se em Mimmo, um rapaz de 15 anos que vive numa pequena ilha italiana onde os dias soalheiros são uma constante. Embora as paisagens sejam de cortar a respiração, com a natureza a pontilhar a vista de verdejantes montes e vales e de um belo azul profundo, quer no céu, quer no mar, a vida nesta ilha não é fácil para os seus habitantes. A pobreza é um destino do qual não parece ser fácil de escapar e para isso também não ajuda que a máfia condicione a vida local. Ou que a calma da ilha pareça ameaçada pela construção de empreendimentos hoteleiros que as gentes locais tentam sabotar. As aspirações de um adolescente como Mimmo parecem, pois, estar mais que condicionadas. Para não dizer "condenadas". Ser-se pobre ou fazer-se parte da máfia local parecem os dois únicos caminhos possíveis.

No entanto, quando um canal de TV anuncia que vai fazer audições naquela ilha para um espetáculo musical na aldeia, Mimmo, que tem a sua guitarra como companhia omnipresente, encara esta iniciativa como a grande oportunidade da sua vida. Junta então os seus três amigos, com quem tem uma banda de rock há muito tempo, e procura resgatar essa simbiose musical com os colegas, através de ensaios, para que a apresentação perante o canal de TV possa ser um sucesso e catapultar os quatro rapazes para uma vida bem sucedida em Roma. Mas a vida local, com todas as suas dificuldades, encontros e desencontros, bons e maus timings, faz com que essa simples tarefa de reunir quatro adolescentes para ensaiar, possa não ser tão fácil quanto parece.

Maltempo, de Alfred - Devir
A forma como o autor constrói a jornada interior do protagonista é notável. Mimmo não é apenas um jovem lutando contra as forças externas; ele é um reflexo das escolhas difíceis que todos enfrentamos em algum momento da vida. O autor convida o leitor a criar empatia com a luta de Mimmo, sem julgar, mas apresentando as complexidades da sua realidade de forma honesta. Por outro lado, os outros três amigos e elementos da banda de Mimmo, também têm as suas próprias lutas individuais que o autor Alfred sabe explorar bem num livro que aborda temas como destino, livre-arbítrio e o impacto das condições sociais sobre as escolhas individuais. Alfred não oferece respostas fáceis, mas constrói uma narrativa que desafia o leitor a questionar as estruturas do poder e as alternativas disponíveis para aqueles que vivem à margem.

Em termos visuais, o autor oferece-nos uma obra verdadeiramente charmosa e elegante. Visualmente, Maltempo é impressionante. Alfred utiliza uma paleta de cores subtis e evocativas, captando a melancolia e a beleza da paisagem mediterrânica. Os cenários insulares e as figuras humanas são trabalhados com um detalhe expressivo, ainda que simples, que reforça o impacto emocional da narrativa. Cada vinheta é uma obra de arte em si, servindo tanto para avançar a história quanto para criar momentos de contemplação.

Maltempo, de Alfred - Devir
É verdade que já tinha apreciado aquilo que o autor nos deu em Como Antes, mas, pelo menos em termos de desenho, é inegável a evolução que houve dessa obra para este Maltempo  - ou mesmo para Senso, que tive a oportunidade de ler na sua versão francesa e que espero que a Devir venha a editar brevemente por cá. Face a Como Antes, o traço do autor parece mais limpo e confiante e a própria organização do espaço visual apresenta-se mais harmoniosa em termos estéticos. Cada pequena enseada, cada monte ou vale que o autor nos vai dando quando, inteligentemente, utiliza as curtas viagens de vespa de Mimmo para fazer os leitores percorrerem as plácidas e belas paisagens do sul italiano, fazem com que este seja um livro que nos faz viajar, levando-nos a esquecer o nosso dia a dia. E é bem provável que, para muitos leitores, aumente o desejo de conhecer ou voltar à bella Italia.

A edição da Devir apresenta-se de boa qualidade. O livro tem capa dura baça e bom papel baço no seu interior. Os acabamentos, a encadernação e a impressão apresentam boa qualidade.

Em resumo, Maltempo é uma obra que combina uma narrativa envolvente com uma arte expressiva, oferecendo uma reflexão profunda sobre as escolhas individuais face às circunstâncias sociais e económicas adversas. É um livro com o potencial de transcender as barreiras da BD, já que pode apelar tanto a leitores de banda desenhada como a amantes da literatura em geral devido à sua história que, embora profundamente enraizada numa realidade específica, possui uma universalidade que ressoa amplamente. Alfred mostra-nos que, mesmo nas circunstâncias mais sombrias, a esperança e a resistência humana podem encontrar formas de se manifestar. Um doce embalo de viagem e, a par do fabuloso Bairro Distante, de Jiro Taniguchi, o meu livro preferido da Devir lançado durante 2024!


NOTA FINAL (1/10):
9.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Maltempo, de Alfred - Devir

Ficha técnica
Maltempo
Autor: Alfred
Editora: Devir
Páginas: 324, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 14,8 x 21 cm
Lançamento: Novembro de 2024

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Análise: Senhor Apothéoz

Senhor Apothéoz, de Julien Frey e Dawid - ASA - Grupo LeYa

Senhor Apothéoz, de Julien Frey e Dawid - ASA - Grupo LeYa
Senhor Apothéoz, de Julien Frey e Dawid

Entre os numerosos lançamentos de banda desenhada que, durante o ano 2024, a editora ASA fez, um dos que mereceu a minha curiosidade foi Senhor Apothéoz, da autoria de Julien Frey e Dawid, que a editora portuguesa publicou há algumas semanas.

Lembro-me que já tinha folheado a edição original francesa e tinha ficado muito bem agradado com as ilustrações de Dawid que se apresentavam verdadeiramente apelativas, enquanto que a história prometia ser interessante e original. Depois de feita a leitura, confirma-se que as ilustrações são uma pequena maravilha, sim. Mas já no que diz respeito à história arquitetada por Julien Frey, e mesmo podendo a mesma ser original, há certas opções que a tornam algo infantil e inverossímil em demasia, impedindo que a mesma seja tão boa quanto poderia ser. Imaginem um filme aparentemente adulto e sério que, nas últimas cenas, opta por não ser sério e por se tornar um pouco silly... é assim que este Senhor Apothéoz funciona.

A premissa da história é bastante interessante. O protagonista é Théo Apothéoz, um jovem que tem deixado a vida passar por si sem que tenha tentado alcançar os seus sonhos. E tudo isso por causa de uma "maldição". Nas gerações que o antecederam, os seus familiares acabaram por morrer sempre em condições funestas quando procuravam alcançar algum feito. Théo passou, pois, a acreditar que o seu nome de família trazia má sorte e que o melhor seria não tentar coisa nenhuma. Simplesmente sobreviver no lugar de viver. Tem 30 anos e vive com o seu pai, um alcóolico que vendeu a casa da família na modalidade de anuidade vitalícia. Ou seja, quando o pai de Théo morrer, a casa onde ambos vivem passará a ser posse de outro proprietário.

Senhor Apothéoz, de Julien Frey e Dawid - ASA - Grupo LeYa
A par disto tudo, Théo continua a amar Camile à distância. Desde os seus tempos de escola que Camille era a sua paixão, mas pelo tal medo de que algo corresse mal, Théo acabou sempre por não revelar nada a Camille, fazendo lembrar o heterónimo de Fernando Pessoa, Ricardo Reis, que, antevendo a indubitável tragédia e perda, preferia não avançar na vida, na busca pelos sonhos e por uma plenitude existencial.

O que nos leva a uma componente muito filosófica neste Senhor Apothéoz. A narrativa gira em torno de questões existenciais e humanísticas, propondo uma reflexão profunda sobre o sentido da vida e da morte, a natureza humana e a busca por propósito. Deveremos, afinal de contas, sucumbir aos próprios demónios que temos na nossa mente ou devemos ir à luta pela busca da felicidade, com unhas e dentes, porque, na maior parte das vezes, a verdadeira razão para que não a encontremos reside em nós mesmos?

Entretanto, Théo dá de caras com Antoine Pépin, um célebre escritor em crise criativa, que acaba por ser o propulsor para que algo mude na vida de Théo e este tente dar um passo na conquista da sua amada de sempre, Camille, que entretanto tem agora uma relação amorosa que não a deixa feliz. A partir daqui, a história começa a mudar de forma radical. O fio condutor, verossímil ao início, transforma-se numa sucessão de eventos que parecem saídos de um filme para adolescentes imberbes.

A história parecia uma coisa, mas acaba por se revelar outra, pois, sensivelmente a meio da trama, parece que o argumentista tomou qualquer substância psicotrópica que faz com que a história passe a ser uma comédia negra, com cadáveres por esconder à mistura. Se gosto de ser surpreendido nas leituras que faço e se reconheço que, por vezes, as histórias até são bastante expectáveis, não havendo muito lugar a surpresas narrativas, também acho que o preço a pagar por enredos que mudam bruscamente é que, a história acabe por nem ser "peixe", nem ser "carne". E é assim que é Senhor Apothéoz: nem é uma história série a profunda que nos faz pensar e refletir - embora o tente fazer um bocadinho - nem é uma história para rir à séria, carregada de humor negro - embora também o tente ser um bocadinho. O resultado é interessante e, sem dúvida, original, mas torna a obra mais esquecível do que o esperado e os dois universos, pelo menos da forma como nos são apresentados, não casam muito bem entre si. E é uma pena, pois parece-me que o livro tinha todos os ingredientes para ser um dos meus favoritos do ano.

Senhor Apothéoz, de Julien Frey e Dawid - ASA - Grupo LeYa
Até porque o arranque do livro é verdadeiramente promissor. Com a história contada na primeira pessoa, facilmente o leitor sente empatia com o protagonista. E a forma como a história e a já referida "maldição" vão sendo apresentadas, é muito boa. Contudo, à medida que a leitura vai avançando, o livro acaba por desiludir em termos de história. É verdade que é claro que a intenção do autor é que o próprio livro seja leve - e não há qualquer mal nisso -  e também é verdade que há aqui várias alegorias presentes que não devem ser levadas à letra, mas sim reinterpretadas para a vida que levamos. Mesmo assim, achei que houve uma certa incoerência ou mesmo infantilidade na forma como a história vai sendo desabotoada. Continua a ser um livro bom, não nego, mas falha em ser um livro mais especial do que aquilo que poderia ter sido. E, portanto, é uma obra que vai para aquelas mais olvidáveis. Quando, daqui a uns meses, me perguntarem se li Senhor Apothéoz, o mais provável é que a minha resposta seja: "Sim, li. Tinha boas ideias, mas o argumentista enterrou-se. Porém, os desenhos são lindos".

Sim, focando na questão das ilustrações de Dawid, há que dizer que as mesmas são absolutamente belas e cativaram-me da primeira à última vinheta. O traço do autor apresenta um estilo bastante "cartoonesco", mas com as expressões das personagens a irradiarem uma humanização e uma certa poesia visual que nos aquece a alma. E para isso também contam as cores, em tons acastanhados a aguarela, que embrulham o grafismo da obra numa certa sensação outonal que, não só é singular, como é verdadeiramente bela e contribui para a tal sensação de conforto que a história respira. Pelo menos, na parte inicial da história, lá está. Do ponto de vista da ilustração, até considero este um dos meus livros favoritos do ano.

A edição da ASA apresenta capa dura baça, bom papel brilhante no miolo e uma boa encadernação e impressão. No final, há um breve caderno gráfico com esboços e estudos de capa de Dawid.

Em suma, Senhor Apothéoz, em gíria futebolística, é um belo remate que... não só não dá golo, como sai bastante ao lado. Poderia ser muito mais do que aquilo que é se o argumentista tivesse uma ideia mais clara daquilo que pretendia para a história. Não há dúvidas de que a bipolaridade do enredo torna a experiência de leitura original, mas no final da mesma é bem possível que fiquemos com uma mão cheia de nada - ou com uma mão meio vazia, vá - quando a história tinha potencial para tanto mais. Além disso, refira-se com justiça que os desenhos de Dawid tornam este livro verdadeiramente acolhedor e belo. Pena que a história não esteja ao nível dessa qualidade superior.


NOTA FINAL (1/10):
7.5




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Senhor Apothéoz, de Julien Frey e Dawid - ASA - Grupo LeYa

Ficha técnica
Senhor Apothéoz
Autor: Julien Frey e Dawid
Editora: ASA
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 206 mm
Lançamento: Outubro de 2024

Ala dos Livros edita mais dois "Mercenários" de uma só vez!


A pouco e pouco, a coleção de luxo dedicada à obra O Mercenário, de Vicente Segrelles, que a Ala dos Livros tem vindo a publicar, vai-se aproximando do seu fim!

Desta feita, a editora portuguesa publicou recentemente os volumes 12 e 13 da coleção, que constituem uma história em dois volumes.

Recordo que a série conta com 14 volumes. Por agora, a Ala dos Livros já publicou 10 livros da coleção, ficando apenas a faltar a edição dos volumes 7, 8, 9 e 14.

Já faltou mais!

Por agora, deixo-vos com as sinopses destes dois livros, que se encontravam inéditos em Portugal, bem como com algumas imagens promocionais.

O Mercenário #12 - O Resgate I, de Vicente Segrelles

O Mercenário é um guerreiro sem passado e, se o tem, ninguém o conhece.

As jovens tripulantes do balão que conhecemos na Aldeia do Fogo Sagrado foram presas e condenadas à morte. Nan-Tay não pode aceitar esta situação e não hesitará em socorrê-las, mas o tempo não joga a seu favor, pois, todos os dias, uma delas é executada. Nan-Tay e o Mercenário acorrem à terra do sultão e misturam-se com os seus súbditos, para elaborar um plano e tentar resgatar as suas amigas. Nesta missão difícil, terão a ajuda de um estranho pequeno ser que irá revelar-lhes um mundo subterrâneo inesperado, no qual os habitantes são tudo menos normais.
Acompanhamos as aventuras de um Mercenário, que percorre um mundo imaginado por Segrelles onde dragões e criaturas voadoras existem sobre as nuvens. Com um universo de personagens de inspiração Medieval, retratados com enorme realismo, esta é uma série surpreendente que se tornou num clássico inesquecível da BD europeia. Obra-prima da banda desenhada de fantasia, “O Mercenário” é uma série essencial que ressurge numa edição última, revista e aumentada com a chancela da Ala dos Livros.

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Ficha técnica
O Mercenário #12 - O Resgate I
Autor: Vicente Segrelles
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
PVP: 21,90€

O Mercenário #13 - O Resgate II, de Vicente Segrelles

O Mercenário é um guerreiro sem passado e, se o tem, ninguém o conhece.

Uma enorme nave espacial aproxima-se da Cratera e não o faz com boas intenções. Desta vez, todos os habitantes do mosteiro correm perigo, a ponto de temerem pela sua vida. Um plano improvisado pelo Lama consegue adiar a morte, mas não evita que sejam feitos prisioneiros.

Graças a um estratagema do Lama, apenas Ky e o Mercenário conseguem escapar. Dependerá dos dois, ajudados por Wor, a salvação de todos, embora, para os monges da Cratera, nada volte a ser como dantes.

Obra-prima da banda desenhada de fantasia, “O Mercenário” é uma série essencial que ressurge numa edição última, revista e aumentada com a chancela da Ala dos Livros.

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Ficha técnica
O Mercenário #13 - O Resgate II
Autor: Vicente Segrelles
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
PVP: 21,90€

20 Livros de BD Portuguesa para oferecer no Natal 2024!


Se há uns dias vos trouxe o meu Guia de Compras de Natal, em que dei ênfase às três obras de cada editora que mais considero "obrigatórias" para a vossa coleção de banda desenhada, hoje trago-vos as 20 obras nacionais de banda desenhada lançadas em 2024 que considero imprescindíveis.

Aqui não me centrei nas editoras, pois nem todas editam banda desenhada nacional, mas sim num conjunto alargado de obras com autores nacionais que marcaram este ano que está quase a chegar ao fim. Todas elas me parecem boas compras de natal, portanto.

Este foi um ano absolutamente fantástico em termos de lançamentos nacionais de banda desenhada. Tivemos quantidade e qualidade. Com pena minha, até tive que deixar algumas boas obras nacionais de fora deste artigo. 

Destaque também para a reedição de algumas obras nacionais "obrigatórias", como a Trilogia Filipe Seems, o Cogito Ego Sum, o 7 Senhoras ou o A Revolução Interior - À Procura do 25 de Abril. Obras que optei por não considerar para este artigo, devido a serem obras já conceituadas e, também, porque procuro dar destaque às novidades do ano que agora chega ao fim.

Ofereçam BD e, claro, presenteiem-se a vós mesmos com livros da 9ª Arte!

Sem mais demoras, deixo-vos mais abaixo com as minhas recomendações.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Passatempo Especial Luís Louro - O Vencedor!




Já temos vencedor para o passatempo especial Luís Louro que o Vinheta 2020 organizou em conjunto com a editora Polvo e com o autor Luís Louro, que autografou o seu mais recente livro intitulado Cogito Ego Sum, que é a reedição integral de (mais) uma das suas séries de sucesso!

Foram várias e boas as participações recebidas, mas só uma podia ganhar.

E, desta vez, deleguei totalmente no próprio autor a árdua tarefa de escolher a frase vencedora.

A sua escolha recaiu na participação da leitora Ângela Magalhães da Costa, cuja frase foi a seguinte:




"O meu "coração de papel" não aguenta tamanha emoção: o Vinheta 2020, tal "Alice na cidade das maravilhas" vai permitir-me gritar: "Cogito Ego Sum" e a melhor BD da Polvo conquistar!"

Muitos parabéns à vencedora e obrigado a todos os participantes. 

Fiquem atentos a mais passatempos.


As Novidades da ASA para o primeiro trimestre de 2025!



A editora ASA já fez um avanço ao Vinheta 2020 dos lançamentos de banda desenhada que prepara para os primeiros três meses de 2025! E há propostas verdadeiramente apetecíveis!

Seguindo aquele que foi um dos melhores anos editoriais da ASA nos últimos tempos, a editora portuguesa promete continuar a sua aposta em boa banda desenhada.

Das obras apresentadas, o meu destaque vai para Um Oceano de Amor, de Panaccione e Lupano, uma obra muito referenciada, que há muito quero ler! Mas há outras novidades que me estão a suscitar o interesse, como Hoka Hey! ou Bobigny 1972. Entre outras.

Deixo-vos, mais abaixo, com as obras previstas pra o primeiro trimestre da editora.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Guia de Compras de Natal 2024 - 3 Livros por Editora



Já vem sendo uma tradição desde que o Vinheta 2020 existe que, assim que chega a quadra natalícia, seja aqui publicada uma lista com as obras que, lançadas no ano em questão, constituem as melhores compras de natal. Quer para que aqueles que acompanham este espaço possam oferecer boas prendas de natal aos que os rodeiam, quer para que eles mesmos possam rechear a sua biblioteca pessoal com a melhor banda desenhada lançada durante o ano.

Este tem sido um ano absolutamente fenomenal em termos de quantidade e qualidade de lançamentos, pelo que tenho que vos dizer que foi dos anos em que tive mais dificuldades para eleger a melhor banda desenhada lançada durante o ano, vendo-me forçado a deixar de fora alguns livros que também considero obrigatórios. Mas, mesmo assim, esforcei-me para manter a regra de apenas poder escolher 3 livros por editora. 

Não quer dizer que os livros que apresento abaixo sejam aqueles que considero os "melhores" livros de cada editora. São apenas 3 livros (ou séries) que foram lançados em 2024 e que considero excelentes compras por serem, a meu ver, belíssimas adições a uma boa biblioteca de banda desenhada. Simplesmente, impus-me a regra de 3 livros/séries por editora. E, em alguns casos, foi difícil deixar de fora algumas obras de muita qualidade, acreditem!

Aqui está, então, o meu Guia de Compras de Natal para 2024.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Análise: Chumbo

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público
Chumbo, de Matthias Lehmann

Uma das obras lançadas na mais recente Coleção de Novelas Gráficas da Levoir e do Público que mais curiosidade estava a despertar em mim, era este Chumbo, do autor brasileiro Matthias Lehmann, que tem sido aclamada por público e crítica e que a Levoir optou por editar para o mercado nacional em dois volumes.

Depois de lida esta obra de grande fulgor, com quase 400 páginas, em que o autor nos leva numa grandiosa viagem que perpassa os últimos 60 anos da história político-social do Brasil, enquanto nos aproxima de uma saga familiar em duas gerações, posso dizer que fiquei encantado e muito bem impressionado! Eis o livro que, a par com o igualmente impressionante Kobane Calling, de Zerocalcare, está entre as duas melhores obras lançadas pela Levoir em 2024.

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público
Este é, afinal de contas, um daqueles livros que nos dá muito, quer em quantidade, quer em qualidade, deixando-nos mais ricos após finalizarmos a sua leitura. E embora haja aqui uma forte componente histórica, em que o autor, que é filho de pai francês e de mãe brasileira, nos mergulha de forma profunda, apreciei especialmente o facto do foco da obra ser a caminhada da família Wallace que, pela sua influência, timing e longevidade, percorre uma fase tão relevante do Brasil como os chamados "anos de chumbo", em que a ditadura instalada em terras de Vera Cruz tomava conta dos desígnios do país. 

A história arranca com uma primeira parte a focar-se na personagem de Oswaldo Wallace, o patriarca da família, que, curiosamente, é inspirado no avô do autor. Estamos na época em que Getúlio Vargas se encontra no poder. Oswaldo, por sua vez, é dono de uma influente mineradora que o faz tomar contacto com as mais eminentes personalidades do topo social da sociedade local. À medida que nós, leitores, vamos acompanhando a mão firme com que Wallace desenvolve os seus negócios, vamos igualmente mergulhando na vida da sua mulher e dos seus filhos, que são cinco, com especial destaque para os dois irmãos Ramires e Severino que as circunstâncias da vida e os próprios valores pessoais basilares de cada um, colocam em polos opostos. Com efeito, os dois irmãos não poderiam ser mais diferentes: Severino é jornalista e escritor, opondo-se ao regime militar e desenvolvendo um pensamento comunista. Já Ramires, apresenta-se com ideias mais conservadoras e próximas do militarismo então reinante. As circunstâncias da vida de ambos vão, depois, colocá-los muitas vezes frente e frente e, em casos mais raros, a remar no mesmo sentido. Pelo meio, ainda acompanhamos a vida das suas três irmãs que também seguem caminhos diferentes entre si.

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público
Se no início da obra acompanhamos os anos em que era o conservadorismo militar que governava o país, numa segunda fase, assistimos à tomada do poder por parte do comunismo que, indubitavelmente, agitou as estruturas mais conservadoras da sociedade brasileira. É verdade que, por vezes, o livro se pode tornar algo denso, com muita informação a ser-nos dada em barda e com muitas personagens que, a certo momento, poderemos confundir entre si. Além disso, também senti que, em alguns casos, o autor deu muito destaque a algumas personagens secundárias que, depois, acabaram por ficar esquecidas com o desenrolar da história. Mas, lá está, isto são coisas menores numa obra tão grandiosa que, quanto a mim, todos deverão ler.

É-me difícil falar mais da história deste livro, pois sinto que este é um daqueles casos em que a história é tão completa/complexa que ou falamos de tudo e mais alguma coisa, destruindo, com isso, o prazer de leitura daqueles que lerão a obra depois deste meu texto, ou então parece que não contamos nada de especial, pois os acontecimentos estão demasiada e organicamente bem encadeados entre si. Como acontece com a vida real. Mesmo assim, posso dizer-vos que aquilo que se retira da leitura desta grandiosa obra é o detalhado retrato, repleto de nuances e idiossincrasias, que o autor consegue fazer de toda a sociedade brasileira. Com as coisas boas e com as coisas más, como um bom retrato que se preze deve possuir.

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público
Nota ainda, positiva, para as personagens imaginadas pelo autor que são profundas e bidimensionais, tornando-se mais verossímeis. Todas elas têm algumas qualidades, mas todas elas têm profundos vícios e defeitos que fazem com que a imersão do leitor seja ainda maior.

O traço a preto e branco puro do autor - que até marcou presença no último Amadora BD para o lançamento desta obra - apresenta-se bastante "cartoonesco" e rico em detalhes, que dão riqueza visual à obra. Este não é um daqueles livros em que nos basta olhar para três ou quatro páginas para percebermos "ao que vamos". Não, porque o autor tenta constantemente recriar-se, através de uma muito inventiva planificação, que desconstrói alguns dos cânones clássicos da banda desenhada, enquanto que, noutros casos, os desenhos também se apresentam diferentes, através de grandes ilustrações de página dupla que contrastam com outras páginas onde as vinhetas são mínimas em dimensão. Não se pode dizer que, apesar do volumoso número de páginas, Lehmann não se esforce - com sucesso - para que a leitura não fique repetitiva. Dou destaque a uma longa cena muda, sem o recurso a qualquer balão de fala, onde o autor nos apresenta o romance vivido por Severino. Verdadeiramente brilhante!

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público
Muito relevante também é a forma como o autor reproduz visualmente este período histórico brasileiro, com a introdução de cartazes publicitários, artigos de jornal e documentos históricos que, naturalmente, aumentam o cariz documental da obra e a sua dinâmica visual.

Em termos de edição, relembro a opção da editora Levoir por dividir a obra original em dois volumes. Algo que, bem sei, desagradou a muita gente. Podemos fazer um esforço para compreender que a editora tenha optado por dividir a obra em duas partes de modo a não tornar o livro demasiadamente extenso para a coleção que, relembro, não costuma ter livros tão volumosos em número de páginas - e, mesmo assim, recordo que, na mesma coleção, a Levoir editou, há uns anos, e num só volume, a obra O Idiota, de André Diniz, que tinha mais páginas do que este Chumbo. Não obstante essa tentativa de compreensão da nossa parte, e tendo em conta que a editora tem estado a editar algumas obras fora da coleção das novelas gráficas, como Dissident Club, Kobane Calling ou A Árvore Despida, com um preço diferente e mais elevado do que os da coleção, parece-me que teria sido mais apropriado que a editora lançasse Chumbo num só volume e fora da coleção. Mesmo que o preço da mesma fosse mais elevado, a edição e a fidelidade perante a obra original acabaria por sair beneficiada. Mas são opções. Compreendo que, por outro lado, a introdução desta obra na coleção também aumentou a qualidade e appeal comercial da mesma.

De resto, os dois livros apresentam capa dura baça, bom papel baço no interior e boa impressão e encadernação. No final do segundo volume, há um texto adicional do autor Matthias Lehmann. Nota positiva para a segunda capa do livro que, quanto a mim, até é bem mais apelativa do que a capa do primeiro volume, igual à versão original da obra.

Em suma, Chumbo é mais outra das grandes obras de banda desenhada editadas em Portugal durante o ano de 2024 que, provavelmente, se assume com um dos melhores anos de sempre no nosso país, no que à quantidade de obras com enorme qualidade intrínseca diz respeito. Chumbo é pesado como chumbo em termos de qualidade e deve ser lido por todos!


NOTA FINAL (1/10):
9.7



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Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público

Fichas técnicas
Chumbo - Parte 1
Autor: Matthias Lehmann
Editora: Levoir
Páginas: 224, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270 mm
Lançamento: Setembro de 2024

Chumbo, de Matthias Lehmann - Levoir e jornal Público

Chumbo - Parte 2
Autor: Matthias Lehmann
Editora: Levoir
Páginas: 168, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 mm x 270 mm
Lançamento: Outubro de 2024

Análise: O Punhal


O Punhal, de Nuno Duarte, João Lemos, Osvaldo Medina, Rita Alfaiate e André Caetano

O único lançamento que este ano a Kingpin Books fez no Amadora BD foi este O Punhal, um álbum que marca o regresso de Nuno Duarte ao lançamento de banda desenhada. E, desta feita, o reverenciado autor faz-se acompanhar por um pequeno "exército" de confirmados talentos nacionais nas ilustrações: João Lemos, Osvaldo Medina, Rita Alfaiate e André Caetano.

Na prática, o livro é dividido por quatro histórias, cada uma delas ilustrada pelos autores supramencionados, que têm em comum o facto de orbitarem em torno de um objeto físico: o punhal que dá nome à obra.

Cada uma das histórias ocorre em tempos diferentes: em 1916, período em que o mundo estava (mais uma vez) dividido ao meio devido à Primeira Guerra Mundial; em 1974, em vésperas do 25 de Abril num Portugal ainda controlado pela PIDE; em 2001, no exato momento em que as Torres Gémeas, em Manhattan, foram alvo de um ataque terrorista; e em 2222, num futuro relativamente longínquo onde as (des)humanas relações entre os intervenientes são assunto principal. 

Em cada uma destas histórias, constituídas escrupulosamente por 14 pranchas, o mesmo punhal marca presença. Gosto desta ideia de unir várias histórias, no tempo e no espaço, através de um artefacto e lembro-me de ter sido algo que, recentemente, pude especialmente apreciar no livro Go West - Young Man, de Tiburce Oger e vários outros autores, que a Gradiva publicou por cá há pouco mais de um ano, e que também tinha em comum a todas as suas histórias o facto de todas elas serem atravessadas por um objeto físico. Nesse caso, era um relógio de bolso.

Neste O Punhal, devo dizer que, infelizmente, não me parece que Nuno Duarte tenha conseguido explanar todo o potencial que este interessante conector narrativo tinha à partida. Na verdade, a presença do artefacto punhal acaba por parecer mais um engodo, uma interligação forçada entre histórias, do que um real elemento fulcral para o desenvolvimento da obra no seu todo. E é apenas por isso que, de algum modo, este livro fica um pouco aquém de outros trabalhos de Nuno Duarte, como O Baile e, especialmente, A Fórmula da Felicidade, dos quais sou confesso admirador.

Mas não me entendam mal. As histórias e temas trazidos por Nuno Duarte parecem-me interessantes e dignos de nota. A "cola" que os une é que me parece menos espessa, menos credível. E se o livro fosse apresentado como uma simples antologia, um livro de contos de Nuno Duarte, provavelmente não só eu não apontaria esta fraqueza à obra, como ainda enalteceria o facto da quarta história fazer uma ponte direta aos eventos vividos na primeira história. Sim, aí sim, há uma ligação direta entre histórias. Na primeira e na quarta. 

Lá pelo meio, há duas histórias que me parecem avulsas e desconectadas do suposto tema central mas que, ainda assim, são as mais interessantes do álbum. Falo da história ilustrada por Osvaldo Medina, que nos remete para o ambiente pesado e assustador de uma sala de interrogatório da PIDE, tema sempre atual e que Nuno Duarte resgata muito bem; e da história ilustrada por Rita Alfaiate - de longe, a melhor das quatro - onde, através de um estilo slice of life, o argumentista nos pinta um belo retrato de uma época mais contemporânea - embora ocorrida há mais de 20 anos(!) -  quando, em 2001, o mundo se chocou perante o ataque ao centro nevrálgico financeiro dos Estados Unidos - e do mundo ocidental - que levou à queda das Torres Gémeas de Nova Iorque e à morte de alguns milhares de pessoas. E tal como as torres foram abaixo, também a relação das duas protagonistas desta história parece estar a sucumbir. O paralelismo encetado por Nuno Duarte é muito bem conseguido.

A primeira história assume uma aura mais fantástica e a última, a que é ambientada no futuro, é de ficção científica que, à boa maneira do género, levanta boas questões sob a forma de uma distopia. A escrita de Nuno Duarte é, como habitual, bastante boa e inspirada.

Em termos de ilustração, cada um dos autores nos oferece um bom trabalho. Osvaldo Medina dificilmente entrega um trabalho mal concebido em termos de desenho; João Lemos dá-nos belas e familiares personagens, cuja expressividade cria empatia com o leitor; e André Caetano, num registo de traço "mais cartoonesco" premeia-nos com pranchas muito dinâmicas na planificação e com um desenho que muito me agrada. 

Se os três autores que refiro são bons e competentes, é Rita Alfaiate, com o seu traço fino e inspirado, que utiliza muitas e belas tramas, quem, na minha opinião, mais brilha neste O Punhal. Acho que o leitor português de banda desenhada já não tem dúvidas quanto a isto mas, de facto, Rita Alfaiate é um autêntico tesouro da 9ª Arte em Portugal. Quando penso que a autora já não me pode impressionar mais pela positiva, sou confrontado com algo novo que me surpreende e me faz ser um verdadeiro fã do seu trabalho. E acho até que, depois de outras duas curtas feitas por Nuno Duarte e Rita Alfaiate, igualmente muito boas, a pergunta sacramental que se impõe é apenas esta: quando é que teremos uma história longa da autoria de Nuno Duarte e Rita Alfaiate cuja criação conjunta em banda desenhada é tão boa e tem tanto potencial?

Todas as histórias são a preto e branco, com os autores a explanarem as potencialidades que essa opção dá. Neste tema, considero que a primeira história, aquela que é ilustrada por João Lemos, não funciona tão bem como as demais, já que a sensação que dá é que a mesma foi feita a cores e depois impressa a preto e branco, com demasiados tons a cinza que retiram algumas potencialidades dos bons desenhos do autor, tornando-os escuros em demasia. Tirando isso, Osvaldo Medina, André Caetano e Rita Alfaiate revelam-se muito à vontade com o preto e branco.

A edição da Kingpin é bastante boa, com o livro a apresentar capa dura baça e bom papel baço no miolo. A impressão, encadernação e design do livro também são igualmente bons, bem ao jeito das edições de Mário Freitas que, para além do design, também assegura a boa legendagem da obra.

Em suma, O Punhal prima especialmente por marcar o regresso de Nuno Duarte ao lançamento de nova banda desenhada e por este trazer consigo uma quase mão cheia de ilustradores. Fica um pouco aquém do enorme potencial que a premissa de usar um punhal como elemento agregador das quatro histórias teria, mas é, ainda assim, um interessante livro de BD que vale a pena conhecer.


NOTA FINAL (1/10):
7.4



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Ficha técnica
O Punhal
Autores: Nuno Duarte, João Lemos, Osvaldo Medina, Rita Alfaiate e André Caetano
Legendagem e design: Mário Freitas
Editora: Kingpin Books
Páginas: 64, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 19,5 x 27 cm
Lançamento: Outubro de 2024

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Análise: O Arauto

O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford) - A Seita e Comic Heart

O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford) - A Seita e Comic Heart
Análise: O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford)

O Arauto é uma das mais recentes apostas das editoras A Seita e Comic Heart e foi recentemente lançado no Amadora BD. Sendo da autoria de Ruben Mocho, que se estreia no lançamento do seu primeiro álbum - embora já tenha vários trabalhos de banda desenhada publicados para o mercado americano - este trabalho é um ótimo cartão de visita, apresentando-se moderno, refrescante e exportável.

Aliás, pegando nesta última afirmação, e talvez por ser claro que Ruben Mocho tem já experiência a trabalhar para o mercado estrangeiro, é bom de ver que, cada vez mais, as obras portuguesas parecem menos cativas dessa própria condição de serem mais direcionadas para o pequeno mercado nacional, apresentando-se com características - quer em terma, quer em argumento, quer em ilustrações - que as aproximam do que se faz lá fora. E O Arauto é uma dessas obras muito exportáveis.

O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford) - A Seita e Comic Heart
Este é o primeiro de três livros e, para o bem e para o mal, dá-nos apenas um leve "cheirinho", um breve vislumbre do que pode ser a história. É, pois, difícil de antever, para já, aonde nos pode levar este O Arauto, mas não deixa de ser verdade que a perceção deste primeiro livro é positiva e apresenta-se com bastante potencial.

A história, que conta com a colaboração de Allen Dunford, decorre na aridez das paisagens do faroeste e apresenta-nos como protagonista um pistoleiro dotado de vários poderes especiais. Mas que não caminha sozinho. Na sua demanda por alguma coisa que, pelo menos para já, não ficou muito definida, este pistoleiro conta com um cavalo vindo de um tempo imemorial, um monstruoso cão de proporções colossais e um corvo que aparenta ser a chave para o mistério que envolve este primeiro livro.

A história abre com a clássica cena típica de um western, com a chegada de um forasteiro a uma cidade desconhecida e posterior entrada no saloon local onde uma violenta briga entre o recém-chegado e as gentes locais toma lugar.  São elementos clássicos do género, mas que Ruben Mocho repesca com graciosidade para esta história que procura ser mais do que um habitual conto do faroeste. Para tal, ajuda que nos seja dado um interlúdio que nos remete para o passado, para a Grécia Antiga, onde fica claro que o nosso pistoleiro já (sobre)viveu a essa era, sublinhando portanto, e desta forma, o cariz fantástico da obra e da personagem que está munida de superpoderes e de uma vida de vários séculos. Estaremos perante um ser imortal? Será ele a própria morte? Não sabemos exatamente as respostas a estas questões, mas sabemos que é uma personagem poderosa.

O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford) - A Seita e Comic Heart
Há, depois, uma clara abordagem religiosa à coisa, com cada um dos dois capítulos que compõem este livro a abrirem com uma citação de um dos livros da bíblia. Isso permite aumentar os níveis de leitura, simbolismo e profundidade do que nos é dado, embora também não deixa de ser verdade estes elementos sejam, para já, algo latos. Se certas pontas soltas forem bem unidas pelo autor nos dois próximos livros, a experiência será ainda mais gratificante, não tenho dúvidas.

No meio disto tudo, se há coisa que impera nesta primeiro livro de O Arauto é a violência, demonstrada quer por tiroteios quer por longas cenas de combate entre as personagens. São cenas em que há poucos diálogos e onde o leitor mergulha de cabeça nos combates corpo a corpo. Ruben Mucho parece dominar com especial à vontade este tipo de cenas.

Não obstante, onde O Arauto salta mais à vista é mesmo na sua componente visual, muito estilizada e cinematográfica, onde as cores são garridas e carregadinhas de personalidade, fazendo a obra ficar com um aspeto muito moderno e "flashy". O desenho, de traço rápido e confiante, consegue ser muito bom, especialmente nas cenas com mais dramatismo ou nos momentos de ação, onde a linguagem corporal e expressividade facial das personagens é muito boa. É verdade que há alguns desenhos que se apresentam rabiscados um pouco mais à pressa, não apresentando a beleza de outros que se sente terem sido mais aprimorados pelo autor, e os cenários também beneficiariam mais se fossem menos despidos de detalhes. Mesmo assim, e quiçá para colmatar esse vazio cénico, as cores vibrantes já mencionadas permitem que o aspeto geral das pranchas seja muito convidativo.

O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford) - A Seita e Comic Heart
Em termos de edição, o livro apresenta capa dura baça, com uma belíssima ilustração, já agora, e, no miolo, o livro é composto por papel brilhante. Em muitos casos, sou um adepto incondicional do papel baço em detrimento do papel brilhante, mas este é um claro exemplo onde o papel mais adequado para a arte visual de Ruben Mocho seria o brilhante, pelo que a escolha da editora me pareceu bastante adequada. De resto, quer a encadernação, quer a impressão, são muito boas. Em termos de extras, o livro também é bem composto. Podemos encontrar esboços das personagens, capas alternativas de autores convidados e ainda uma antevisão, com três pranchas, do próximo volume dois que deverá sair em 2025, por alturas do próximo Amadora BD.

Em suma, e mesmo admitindo que, relativamente a este O Arauto, ainda a procissão vai no adro, com tantas mais coisas por descobrir e desvendar, a obra assume-se como portadora de um enorme potencial. Quer pela história, que junta coboiada, antiguidade clássica, religião e criaturas mitológicas, quer pela componente visual que, com os seus desenhos plenos de dramatismo e uma paleta de cores garridas e impactantes, deixam água na boca para o que ainda pode vir nos próximos dois volumes. Resta-nos tentar que a espera seja paciente.


NOTA FINAL (1/10):
8.2



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Arauto #1, de Ruben Mocho (participação no argumento de Allen Dunford) - A Seita e Comic Heart

Ficha técnica
O Arauto #1
Autor: Ruben Mocho (com a participação no argumento de Allen Dunford)
Editoras: A Seita e Comic Heart
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18,5 x 27,5 cm
Lançamento: Setembro de 2024