Mostrar mensagens com a etiqueta Asa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Asa. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Análise: As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey

Hoje debruço-me sobre a série As 5 Terras, de Lewelyn e Lereculey, que tem estado a ser editada pela ASA. Relembro que já aqui analisei os dois primeiros tomos da série e hoje falo-vos do terceiro, quarto, quinto e sexto volumes de As 5 Terras, que encerram o primeiro ciclo da série. Recordo que esta é uma série que está pensada para ser bastante grande, estando previstos, no total, 5 ciclos de 6 tomos cada um. 36(!) volumes no total.

Mas, para já, olhemos para este primeiro ciclo.

Os volumes 3, 4, 5 e 6, intitulados respetivamente O Amor de Um Imbecil, A Mesma Ferocidade, O Objeto do Vosso Ódio e Não Terei Forças, encerram o primeiro ciclo desta notável série e as intrigas que vinham sendo cuidadosamente urdidas nos volumes anteriores, atingem aqui um ponto de tensão máximo. 

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Os jogos de poder, as traições inesperadas e as alianças improváveis estão de volta, para comporem um mosaico narrativo que, ao mesmo tempo que nos surpreende, parece inevitável na lógica interna do mundo criado por Lewelyn e Lereculey. Cada volume acrescenta, pois, camadas de complexidade, conduzindo a um clímax em que os protagonistas já não são apenas peças em disputa, mas agentes ativos na redefinição das estruturas de poder em Angleon.

A riqueza deste primeiro ciclo de As 5 Terras reside também na forma como o enredo se desdobra em múltiplas frentes, sem nunca perder o fio condutor. A luta entre facções, o envolvimento dos estudantes - que reclamam por uma estrutura de poder onde os cidadãos possam participar de forma mais ativa - e a lenta, mas inexorável, transformação das personagens conferem ao ciclo uma densidade muito singular. E, já agora, o final do sexto tomo, Não Terei Forças, marca um fecho brilhante para este arco inicial, com uma reconfiguração inesperada do “jogo das cadeiras” que rege o poder político e social. A sensação que fica é a de termos acompanhado uma história complexa e coesa, que soube encerrar um ciclo ao mesmo tempo que deixa em aberto novas possibilidades para o futuro, quantas não são as personagens e quanta não é a sua sede de poder. Aliás, já que falo nisso, tenho que referir que embora o primeiro ciclo se feche no final do 6º volume, há muito por descobrir e por desvendar nos ciclos seguintes, já que os acontecimentos de um ciclo impactam os do ciclo seguinte.

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Novamente, tenho que referir que é impossível falar de As 5 Terras sem estabelecer paralelos com Game of Thrones. Tal como a célebre obra de George R. R. Martin, esta série trabalha habilmente com a imprevisibilidade, as reviravoltas e a alternância entre drama pessoal e intriga política. A comparação não é gratuita: ambos os universos colocam os leitores perante uma sucessão de eventos tão inesperados quanto inevitáveis, jogando com as nossas expectativas e deixando-nos sempre alerta. Se estamos a achar que determinada coisa pode vir a acontecer, podemos ser surpreendidos ao verificar que aconteceu exatamente o oposto da nossa suspeição.

Porém, claro está, reduzir As 5 Terras a uma simples imitação de Game of Thrones seria injusto. A obra tem uma identidade própria, assente num mundo riquíssimo e numa exploração consistente das tensões internas das várias espécies que o habitam. 

No caso deste primeiro ciclo, o foco está nos felinos, o que confere uma atmosfera muito particular, onde honra, poder e tradição se entrelaçam de forma única.

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Devo dizer que a introdução da luta dos estudantes confere um caráter ideológico à trama, colocando em evidência questões de legitimidade, contestação e herança cultural. Embora isso torne a leitura menos dinâmica em certos momentos, abrandando um pouco o ritmo da narrativa e o fulgor inicial da mesma, não deixa de ser verdade que o desenvolvimento subsequente compensa plenamente, trazendo reviravoltas que restauram a intensidade dramática que esperaríamos.

As surpresas narrativas, de facto, são um dos grandes trunfos da série. Mesmo quando o leitor se habitua ao ritmo das traições e dos jogos de poder, Lewelyn e Lereculey conseguem subverter as expetativas e criar novos cenários de tensão. Esta imprevisibilidade torna a leitura eletrizante e aproxima a série da lógica de uma tragédia clássica, em que o destino das personagens parece inevitavelmente moldado pelas escolhas que fazem.

Outro ponto de destaque é a forma como os autores Andoryss, Chauvel e Wong (sob o pseudónimo de Lewelun) trabalham as personagens. Não há heróis intocáveis ou vilões unidimensionais: cada figura é movida por motivações complexas, muitas vezes contraditórias. Isso contribui para a sensação de um realismo moral, aproximando o universo ficcional daquilo que conhecemos do mundo humano.

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Visualmente, a série mantém uma qualidade notável. O traço de Lereculey continua a ser belo, expressivo e capaz de transmitir tanto a imponência das cenas de poder como a intimidade dos momentos pessoais. As cores também são belas e os cenários são bastante cativantes. A única reserva que se pode apontar aos desenhos é a dificuldade, por vezes, em distinguir algumas personagens felinas, dada a semelhança física entre elas. Contudo, considero que essa limitação não compromete a qualidade gráfica da obra, que permanece impressionante em termos estéticos.

Este ciclo é, portanto, um triunfo tanto narrativo como visual. A editora ASA merece elogios pela aposta em trazer para o público português uma obra desta envergadura, que demonstra como a banda desenhada pode rivalizar com as grandes produções literárias e audiovisuais no que toca a densidade, complexidade e impacto.

Em termos de edição, os livros apresentam capa dura baça. bom papel brilhante no miolo, e uma boa encadernação e impressão. Uma nota importante que convém referir é que cada volume abre com um resumo dos volumes anteriores para assegurar que, mesmo tendo em conta a complexidade da trama, o leitor não se perde e consegue prosseguir com a leitura. No final de cada livro também há um texto sobre uma personagem ou um evento que permite dar profundidade ao universo desenvolvido.

Em suma, As 5 Terras é mais do que uma série de banda desenhada: é um épico em construção, com identidade própria, mas capaz de dialogar com universos como o de Game of Thrones. Ao longo dos seis volumes que compõem este primeiro ciclo, a série revelou-se como uma das propostas mais sólidas e envolventes da banda desenhada atual em Portugal. A coesão da narrativa, a capacidade de surpreender e a riqueza temática conferem-lhe uma dimensão rara, que a aproxima das grandes sagas da literatura e da televisão. Verdadeiramente impressionante.


NOTA FINAL (1/10):
9.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-


As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

Fichas técnicas
As 5 Terras #3 - O Amor de um Imbecil
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Janeiro de 2025
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras #4 - A Mesma Ferocidade
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Janeiro de 2025
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras #5 - O Objeto do Vosso Ódio
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Julho de 2025
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras #6 - Não Terei Forças
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Julho de 2025

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

ASA anuncia 3 novas BDs para 2026! E todas elas são obras premiadas!


Foi durante a tarde de ontem que, num evento fechado aos media e a algumas das principais livrarias do país, a ASA anunciou o seu plano editorial para os próximos meses.

Relativamente às novidades apontadas ao que falta do ano 2025, não houve novidades, mas a confirmação daquilo que já tinha sido anunciado, em primeira mão, aqui no Vinheta 2020.

Relembrando essas novidades, teremos, então, a sair durante este mês, os livros Impenetrável, de Alix Garin, e O Homem de Negro, de Panaccione e DiGregorio. O mês de Outubro será inteiramente dedicado a Astérix na Lusitânia - o primeiro dos Astérix que ocorre em terras lusas. O mês de Novembro irá trazer-nos a publicação do primeiro integral (de quatro), de Tintin; a edição comemorativa dos 70 anos de Tintin e O Caso Girassol; Blake e Mortimer - A Ameaçã Atlante; Blake e Mortimer - Dupla Exposição e Henri Vaillant, que será um livro que reunirá 3 tomos sobre a vida do pai da personagem Michel Vaillant.

Mas foi no levantamento do véu para o primeiro trimestre de 2026 que a ASA anunciou três belas novidades, todas elas vencedoras (ou finalistas) dos últimos prémios de Angoulême, que muito empolgado me deixaram, e que passo a citar:

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

ASA prepara-se para editar BD sobre vaginismo!



O mais recente livro de Alix Garin, Impenetrável, deverá chegar às livrarias portuguesas no próximo dia 23 de Setembro, pelas mãos da editora ASA

Da mesma autora, recordo, já tivemos o fabuloso Não Me Esqueças, obra vencedora do prémio VINHETA D'OURO 2023 para Melhor Obra de Autor Estrangeiro.

Desta vez, a autora francesa regressa com uma nova obra, que está a ser muito aplaudida e aclamada em França e na Bélgica, e que aborda o tema do vaginismo, um transtorno sexual do qual a autora padeceu.

É um dos livros mais aguardados do ano e admito que tenho muita curiosidade em mergulhar nesta leitura.

Por agora, o livro já se encontra em pré-venda no site da editora.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais da edição francesa.


Impenetrável, de Alix Garin

Impenetrável é um testemunho singular pela sua sinceridade.

Alix Garin (Não me Esqueças) conta, sem concessões, a reconquista do seu corpo e do seu desejo, depois de ter sofrido de vaginismo durante dois anos - um transtorno sexual que torna a penetração impossível.

Para se curar, vai ser preciso enfrentar as obrigações, as normas, o passado. Ultrapassar a culpabilidade e a solidão impostas por uma sociedade onde não fazer amor é impensável e falar sobre isso impossível.

Além do corpo, o álbum questiona as nossas relações com o desejo, com o casal e com o mundo, desvelando uma busca de si que encoraja a que nunca nos deixemos abater.

Audaciosa e otimista, esta narrativa de cura promete.



-/-
Ficha técnica
Impenetrável
Autora: Alix Garin
Editora: ASA
Páginas: 304, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 202 x 269 mm
PVP: 32,90€

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Junho de 2025 para o Vinheta 2020?



Hoje trago-vos aquele que considero ter sido o melhor livro de banda desenhada lançado em Portugal no passado mês de Junho.

Relembro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

Nota para o facto de eu não anunciar aqui nenhuma obra portuguesa, por não ter sido editada nenhuma obra nacional durante o mês em análise.

Quanto a mim, foi esta o Livro do Mês de Junho de 2025:

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela ASA nos últimos 5 anos!


A propósito do 5º aniversário do Vinheta 2020, regresso hoje com mais um TOP 10 com a melhor banda desenhada lançada por uma das principais editoras de BD em Portugal nos últimos 5 anos!

E hoje, o enfoque é na editora ASA, pertencente ao grupo LeYa!

Esta é uma das editoras com maior tradição no lançamento de banda desenhada em Portugal. É verdade que esteve adormecida durante alguns anos, mas nos últimos tempos parece ter voltado à ribalta lançando muita banda desenhada de qualidade superior.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a "crème de la crème" de cada editora.

Permitam-me esclarecer que uma das obras da minha lista foi lançada pela chancela Teorema. Não é ASA, eu sei, mas como a Teorema é uma chancela do Grupo LeYa e a obra em questão é absolutamente obrigatória, achei por bem colocá-la nesta lista. 

Portanto, sem mais suspense, eis, mais abaixo, a melhor banda desenhada lançada pela ASA/LEYA nos últimos 5 anos em Portugal.

Análise: Os Filhos do Império #1

Os Filhos do Império #1, de Yudori - ASA - LeYa

Os Filhos do Império #1, de Yudori

Os Filhos do Império, da autora sul-coreana Yudori, é uma das mais recentes obras editadas pela editora ASA. Trata-se do primeiro tomo de uma narrativa que se desenrola na Coreia, em 1929, durante a ocupação japonesa, uma época marcada por intensos conflitos identitários e políticos. A cidade de Gyeongseong (que hoje conhecemos como Seul) serve como cenário para esta história onde o peso da tradição coreana se cruza com a influência crescente do Ocidente e, claro, a opressão colonial nipónica. É, pois, num contexto carregado de tensão que acompanhamos a (con)vivência das duas figuras centrais: Arisa Jo, filha de um rico comerciante, e Jun Seomoon, descendente de uma nobreza já sem poder e sem dinheiro.

E começo já por dizer que estes dois protagonistas representam mais do que apenas personagens ficcionais, pois são, em si, símbolos das forças que moldavam a Coreia do início do século XX. Arisa, com os seus modos decididos, a sua postura confiante e a recusa em aceitar as normas impostas às mulheres da sua época, é a representação máxima do espírito moderno e progressista que se insinuava, paulatinamente, na Coreia. Já Jun, preso a ideais de honra, hierarquia e moralidade tradicional extremas, espelha a dificuldade em aceitar um mundo em transformação. Não se trata, portanto, de um mero conflito de personalidades aquilo que a autora Yudori nos propõe, mas de uma colisão entre dois mundos: o velho e o novo, o masculino e o feminino, o opressor e o subjugado... a Coreia do Norte e a Coreia do Sul? 

Os Filhos do Império #1, de Yudori - ASA - LeYa
Um dos temas centrais é, com efeito, a emancipação feminina, e aqui Arisa brilha. Esta jovem é moderna, segura, e move-se com uma liberdade que desafia as convenções sociais do seu tempo. Demonstrando-se, com delicadeza e de uma forma natural, fora dos moldes tradicionais, Arisa é uma mulher que desafia os padrões e é exatamente isso que desconcerta Jun, rapaz criado num mundo onde as mulheres devem ser recatadas, obedientes e previsíveis. Hoje, o comportamento de Arisa parecer-nos-ia normal e até é provável que aquilo que consideramos mais chocante e anormal seja o comportamento do rapaz e não tanto o da rapariga... Mas à luz dos anos 20 coreanos? Arisa seria sinónimo de puro escândalo!

E Jun não consegue compreender nem aceitar a postura da bela rapariga. Ela é, para ele, uma anomalia. Mas é precisamente nesse choque, nessa tensão constante entre repulsa e fascínio, que a narrativa ganha força. Por vezes, até pode parecer que o comportamento das personagens, especialmente o de Jun, é bastante exagerado nas reações, o que pode tornar a obra mais infantil. No entanto, devo dizer que a dinâmica entre as personagens vai agarrando o leitor. Dado o ritmo lento da obra, comecei a leitura com pouco entusiasmo, reconheço, mas também me vejo obrigado a admitir que me fui interessando cada vez mais pelo desenlace da relação destas duas personagens, tendo acabado por ler este livro num sopro, de forma sôfrega.

Apesar da ausência de grandes reviravoltas, a leitura acabou por ser envolvente, portanto. Há algo de hipnótico na forma como Yudori constrói o ambiente e as relações entre personagens. Aquilo que ao início parecia leve, quase juvenil, foi ganhando densidade à medida que progredia na leitura. Conforme as páginas vão passando, o leitor começa a perceber as camadas que estão a ser construídas. E o que parecia um relato leve revela-se uma história com implicações (mais) sérias, emocionais e políticas. Não é que nos prenda pela ação, que é quase inexistente, mas agarra-nos pela atmosfera e pelas questões que levanta. 

No entanto, mantenho alguma contenção na análise a esta obra, pois "o jogo" ainda está bastante em aberto, com este primeiro volume a ser mais uma preparação do que um desenvolvimento. Pouca coisa acontece, o ritmo é lento, e temos a sensação de que a autora está a montar o "palco", mais do que a dar início ao "espetáculo". Isso pode frustrar alguns leitores, mas para mim foi um convite à imersão. Um lento mergulho numa época histórica complexa. Pode vir algo mais fantástico com o desenvolvimento da trama no futuro, mas também pode ser algo que fica pela rama. Como tal, estou otimista, mas com um otimismo contido.

Os Filhos do Império #1, de Yudori - ASA - LeYa
Visualmente, o uso de ilustração digital resulta em cenários algo crus e numa textura que pode parecer artificial. A ausência de detalhe em certos momentos e o contraste entre personagens e fundos criam uma sensação de estranhamento que poderá prejudicar a imersão inicial. No entanto, esta impressão tende a suavizar-se à medida que avançamos na leitura. Além de que há muitas ilustrações belíssimas, especialmente no tratamento das personagens e das suas expressões, que parecem extraídas de um filme de Miyazaki. Essa parte é tão boa que, se na parte dos cenários houvesse mais detalhe e aprumo, poderíamos estar a falar de uma obra verdadeiramente perfeita em termos visuais. Seja como for, na componente gráfica, há uma harmonia que se vai revelando, gradualmente, com o tempo. Há ali uma elegância discreta, que se impõe sem fazer alarde. O cuidado da autora no tratamento do vestuário de época também merece menção positiva.

Em termos de desenho, torna-se portanto evidente, com o tempo, que há uma elegância própria nos desenhos de Yudori. O estilo, ainda que contido, tem coerência. A composição das cenas obedece a uma lógica visual clara, e há um equilíbrio entre simplicidade e intenção, o que revela uma maturidade estética considerável. 

Quanto à edição, o livro apresenta-se muito apelativo. Tem capa dura baça, um bom grafismo, bom papel baço no interior e boa encadernação e impressão. No final do livro há um conjunto de notas da autora, em que a mesma nos oferece, através de uma banda desenhada a preto e branco, e num registo mais divertido, despreocupado e esboçado, relevantes informações sobre a época, indumentárias e personagens do livro. Já agora, refiro que no final de cada capítulo também costuma haver uma página com estas informações adicionais. Algo que acrescenta boas informações à experiência global de leitura. Uma nota menos positiva para a balonagem que utilizando muitas transparências e uma font menos apropriada, quanto a mim, para as legendas, quebrou um pouco da imersão na obra.

Em suma, Os Filhos do Império é uma daquelas obras que ainda não revelou tudo o que pode ser. O potencial está lá: há personagens interessantes, um contexto histórico rico e vários temas relevantes. Mas "a missa ainda vai no adro" e é o segundo volume que ditará se esta série se tornará memorável ou não. Ainda assim, esta introdução deixou-me curioso e, mais importante, envolvido.

NOTA FINAL (1/10):
8.1


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Os Filhos do Império #1, de Yudori - ASA - LeYa

Ficha técnica
Os Filhos do Império 1
Autora: Yudori
Editora: ASA
Páginas: 224, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 241 x 170
Lançamento: Junho de 2025

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Análise: Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994), de Riad Sattouf

Foi recentemente que a editora ASA nos fez chegar Eu, Fadi - O Irmão Raptado, de Riad Sattouf, que volta a dar-nos a história biográfica da família Sattouf. Se, nos seis volumes de O Árabe do Futuro, a história nos era contada através da perspetiva do próprio Riad Sattouf, que nos revelou a sua experiência desafiante de ser filho de pai sírio e mãe francesa, nesta nova série, que funciona como spinoff da série principal, acompanhamos a experiência direta de Fadi, o irmão mais novo de Riad, quando o pai de ambos decide voltar para a Síria levando o seu filho mais novo consigo. 

A base de argumento para este livro resultou das entrevistas que, em 2011 e 2012, Riad fez ao seu próprio irmão Fadi e é a personagem de Fadi quem assume o papel de narrador, reconstituindo os momentos marcantes da sua infância entre a Bretanha, em França, e a Síria, país para onde foi levado pelo pai. É esperado que esta mini-série seja concluída ao cabo de três volumes. 

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Há, sem dúvida, uma sensação de déjà vu ao voltarmos a visitar os acontecimentos que marcaram a vida da família Sattouf, especialmente para quem acompanhou a série principal. No entanto, esta repetição tem o seu mérito: ao vermos tudo pela perspetiva de Fadi, a narrativa ganha um novo sabor e uma segunda leitura, revelando aspetos emocionais e psicológicos diferentes dos que foram relatados por Riad. Por conseguinte, a obra não atinge a mesma capacidade de espantar o leitor como O Árabe do Futuro conquistou, mas funciona como uma espécie de complemento ou expansão do universo narrativo criado por Sattouf. E, por esse motivo, é bem-vinda.

E é inegável que o estilo narrativo de Riad Sattouf continua a cativar. A forma como o autor conjuga texto e imagem, humor e tragédia, inocência e crítica social, é magistral. É fácil perdermo-nos nas páginas, seguindo as emoções do jovem Fadi, sentindo a sua confusão, a sua saudade pela mãe, a sua adaptação forçada a uma realidade cultural e familiar tão diferente daquela que conhecia. Nessa vertente, talvez este Eu, Fadi - O Irmão Raptado até seja uma obra mais dura e dramática do que O Árabe do Futuro.

Mesmo assim, o humor é um elemento que vai aparecendo até nos momentos mais dolorosos. Esta é uma característica que Sattouf domina como poucos. Há uma ironia subtil, muitas vezes expressa nos diálogos infantis ou nas observações ingénuas do narrador, que torna a leitura mais leve sem nunca desvalorizar o sofrimento real por detrás dos acontecimentos.

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Mas, lá está, vista pelos olhos de Fadi, até diria que a figura do pai sai ainda mais manchada. Se nos volumes da série principal, o pai de Riad e Fadi me fez rir muito com a sua postura, aqui o seu retrato é mais cru e obviamente errado, levando o leitor a questionar ainda mais o porquê de tamanho egoísmo e maldade em raptar o próprio filho. Acaba, pois, por ser um livro mais deprimente do que os da série principal.

E é impossível não destacar o que o livro revela sobre os laços familiares, os choques culturais e o trauma da separação parental: Fadi, como qualquer criança, é apanhado no meio de decisões adultas, sem entender completamente as razões nem os impactos. É essa incompreensão, aliada à sinceridade do olhar infantil, que torna o livro comovente e que justifica plenamente a sua existência dentro do universo Sattouf.

Para quem já é fã da série, como eu, este livro é um regresso mais do que bem-vindo ao universo de Riad Sattouf. A familiaridade com as personagens e com os contextos geográficos e históricos só enriquece a experiência. E ver os mesmos eventos sob o olhar do irmão mais novo proporciona novos ângulos, novas interpretações, e uma camada adicional de emoção e empatia.

No entanto, para aqueles que leram, mas não se apaixonaram pela série principal, este volume talvez não tenha a força suficiente para os reconquistar. A ausência da característica "novidade" pode tornar a leitura menos impactante para esses leitores.

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa
Quanto aos que ainda não conhecem a série, talvez não seja este o melhor ponto de partida, também. A esses, eu recomendaria que fossem ler primeiro O Árabe do Futuro, pois Eu, Fadi - O Irmão Raptado funciona melhor como uma leitura complementar, que aprofunda personagens já conhecidas. Portanto, para quem quer mergulhar pela primeira vez no mundo narrativo de Sattouf, a recomendação mais lógica continua a ser começar por O Árabe do Futuro

Escrito assim, posso estar a dar-vos a falsa ideia de que não gostei deste livro ou que não o li com uma enorme avidez como li os livros anteriores. Mas não foi o caso, pois, na verdade, também adorei este livro. Simplesmente o acho um pouco mais redundante. É bom, mas é um pouco "mais do mesmo". Portanto, se são como eu e adoram a série, não percam mais tempo e leiam também este Eu, Fadi - O Irmão Raptado.

De resto, permitam-me ainda referir que, em termos gráficos, o livro mantém a qualidade visual a que Sattouf já nos habituou. O traço é expressivo, simples, mas extremamente eficaz. A paleta de cores, em que há uma cor dominante que vai mudando ao longo do livro, e a expressividade das personagens contribuem para uma leitura fluida e emocionalmente envolvente. Volta a ser "mais do mesmo", mas no melhor sentido da expressão.

Quanto à edição da ASA, o livro é semelhante ao da restante coleção de O Árabe do Futuro, apresentando capa mole baça, com badanas, e bom papel baço no interior do livro, além de boas encadernação e impressão. O destaque vai para o facto de a chancela que publica esta coleção ter deixado de ser a Teorema para passar a ser a ASA. É claro que o grupo editorial LeYa se mantém o mesmo, mas parece-me que esta alteração da Teorema para a ASA é uma prova clara do envolvimento, especialização e reposicionamento da ASA no lançamento de banda desenhada. Quanto a mim, faz todo o sentido, pois permite que os leitores não se percam face aos lançamentos que são dedicados à banda desenhada.

Portanto, em suma, embora haja uma certa sensação de redundância neste Eu, Fadi - O Irmão Raptado, não se pode dizer que o livro seja um derivado oportunista da série principal, pois é uma obra emocional, honesta e artisticamente cuidada, que oferece uma nova lente sobre eventos já narrados, provando mais uma vez que a qualidade narrativa de Riad Sattouf é uma constante garantida. Recomenda-se.


NOTA FINAL (1/10):
8.6



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



-/-

Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994) - O Árabe do Futuro, de Riad Sattouf - ASA - LeYa

Ficha técnica
Eu, Fadi - O Irmão Raptado - Tomo 1 (1986-1994)
Autor: Riad Sattouf
Editora: ASA
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 240 x 171
Lançamento: Maio de 2025

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Análise: Vertigeo

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa
Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry

Se há coisas que, nos muitos comentários que recebo, sinto que os leitores portugueses de banda desenhada pedem, é que se editem mais BDs de ficção científica. E a verdade é que, apesar disso, não são muitas as obras deste género que vão chegando às livrarias portuguesas. Especialmente nos últimos anos.

Todavia, e por ventura em sentido contrário à tendência dos últimos tempos, a editora ASA lançou recentemente o livro Vertigeo, da autoria dos franceses Amaury Bündgen e Lloyd Chéry, que adaptaram para banda desenhada o romance original de Emmanuel Delporte.

Vertigeo apresenta-se como uma distopia apocalítica em estado puro. Clássica na sua génese, a narrativa parte de um cataclismo global que apaga o sol e extingue a maior parte da vida no planeta, obrigando os últimos sobreviventes a construir uma colossal torre, a Vertigeo, como último reduto de sobrevivência. Esta torre vertical é, desde logo, símbolo e palco da nova ordem social que se estabelece, que é baseada na produtividade, na exploração e na estratificação acérrima entre os que trabalham e os que mandam.

É essa estrutura social da torre Vertigeo que considerei um dos aspetos mais interessantes na obra. Com uma hierarquia rígida, os trabalhadores vivem em níveis inferiores da torre, sempre tentando fazê-la crescer, não sabendo bem para onde. Há um constante objetivo de crescimento propagandístico que é passado entre os habitantes/trabalhadores da torre. Mas onde estarão os ricos, os abastados, os beneficiados pelo sistema? Nos andares cimeiros da torre? Não haverá ricos, de todo, ou não estão visíveis face aos trabalhadores? Estamos perante uma representação hiperbolizada - mas não totalmente irreal - das desigualdades do mundo contemporâneo, que nos oferece uma crítica à alienação e à exploração laboral. A metáfora é clara: o trabalho tornou-se uma condenação, com cada um a ser escravo do mesmo, tenha ou não noção disso mesmo. O que faz ecoar Working Class Hero, de John Lennon.

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa
Apesar da densidade temática e do potencial desta premissa, Vertigeo sofre com uma execução narrativa que fica, quanto a mim, aquém do desejado. As ideias são interessantes, mas a abordagem acaba por ser superficial. A obra lança várias pistas, levanta dilemas importantes, mas raramente os desenvolve em profundidade. Há personagens que surgem e desaparecem com pouca justificação e alguns dos momentos que pareciam ser pontos de viragem interessantes, acabam por ser abafados por um desenvolvimento apressado. Encontramos, pois, várias pontas soltas que comprometem a coesão da história, como as ligações afetivas entre personagens ou as motivações de determinados atos de rebelião a não serem suficientemente exploradas. Isso dá ao enredo uma sensação de esboço vazio e de que estamos perante uma história que tinha matéria-prima para muito mais, mas que foi encerrada antes de atingir a sua maturidade.

É um daqueles casos em que um maior número de páginas - ou de volumes - poderia ter surtido um melhor efeito. Ou então, poderia ter sido feito exatamente o contrário: para esta história, assim como ela está, pouco desenvolvida e que só lança para o ar uma ideia interessante, bastariam menos páginas. A sensação é dual: por um lado, o livro é demasiado grande para uma história que assenta numa premissa que, embora interessante, é vaga; e, por outro lado, é demasiado pequena para uma história que até teria um fundo para ser melhor explorado. Nem sempre a virtude está no meio das coisas.

E, já agora, a introdução de monstros, semelhantes a dinossauros, lá mais para o meio da narrativa, é um exemplo de como a construção do universo nem sempre se alinha com a verosimilhança pretendida(?) da narrativa. E quem me lê já sabe bem da minha opinião assertiva sobre obras de ficção científica: só me conseguem realmente agradar e prender, quando conseguem ser coerentes e minimamente verosímeis. Ora, a presença dessas criaturas não é contextualizada de forma eficaz, e acaba por parecer deslocada num cenário que se quer pautado pela crítica social e pelo realismo distorcido da distopia. Ao invés de enriquecer o mundo, este elemento tende a distrair e a esbater, ainda mais, o foco temático da obra.

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa
Ainda assim, o final de Vertigeo oferece uma lufada de ar fresco. Sem fazer nenhum spoiler, posso dizer-vos que o desfecho introduz um elemento de reviravolta que relança o sentido da história. Embora não redima completamente as falhas anteriores, esse momento final consegue revalorizar parte do caminho percorrido até então. 

Visualmente, Vertigeo é uma experiência impactante. O desenho do autor Amaury Bündgen remeteu-me, com as devidas distâncias, para a arte de François Schuiten na sua obra As Cidades Obscuras. 

Sobretudo nas primeiras páginas da obra, apresenta um realismo quase fotográfico, com um uso dominante do preto e branco que reforça o sentimento de opressão e desespero. As primeiras pranchas que retratam a destruição do mundo são particularmente arrepiantes, e o trabalho de sombras dá uma densidade atmosférica que dialoga bem com o tom da narrativa. Lá mais para o final do livro, também temos direito a algumas páginas a cores, em linha com o desenvolvimento da história.

Não obstante, à medida que a leitura avança, sente-se, porém, uma quebra no nível de detalhe das ilustrações. Embora nunca se torne medíocre, o traço torna-se menos minucioso e por vezes mais apressado, especialmente no tratamento de algumas personagens, seja na conceção dos seus rostos, com algumas expressões menos bem conseguidas, seja no tratamento da linguagem corporal, por vezes bastante amarrado a si mesmo. 

A edição da ASA é bastante apelativa. O livro apresenta capa dura baça. No seu interior, o papel utilizado é brilhante e de boa qualidade - creio que o tipo de ilustrações aqui presentes teriam saído beneficiadas se o papel utilizado fosse baço - e boa encadernação e impressão.

No balanço final, Vertigeo é uma obra que fascina mais pelo que promete do que pelo que entrega. As suas críticas sociais têm força simbólica, as ilustrações, quando vistas a olho nu, conseguem impressionar e a premissa é cativante. Contudo, o desenvolvimento narrativo e a construção de mundo falham em atingir o nível de complexidade que a história pedia. Fica a sensação de que este universo poderia ter dado origem a algo mais robusto. Assim, Vertigeo é uma obra algo agridoce ou, utilizando a própria metáfora da torre, uma construção que sobe demasiado depressa e não solidifica as suas fundações. 


NOTA FINAL (1/10):
6.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



-/-

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa

Ficha técnica
Vertigeo
Autores: Amaury Bündgen e Lloyd Chéry
Editora: ASA
Páginas: 144, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 320 x 23
Lançamento: Junho de 2025

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Análise: Zorro - O Regresso de Entre os Mortos

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa
Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy

Quando soube que a editora ASA iria apostar no lançamento de uma obra de Sean Murphy, do qual sou bastante admirador, fiquei muito contente com esta notícia. Relembro que, por cá, já três obras do autor foram lançadas, nomeadamente: Jesus Punk Rock e Batman: Cavaleiro Branco (pela editora Levoir) e Off Road (pela editora Kingpin). Foram todos livros bastante diferentes entre si, mas que tinham em comum a capacidade de ilustração do autor que é muito personalizada e, a meu ver, impressionante. Além de histórias que me agradaram, claro. Portanto, as minhas expectativas para este Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, estavam em altas! E, mais uma vez, o trabalho do autor encheu-me as medidas!

Este livro é uma reinvenção ousada, moderna e estilisticamente exuberante da lendária figura do Zorro, com Sean Murphy a conseguir fundir a tradição do herói mascarado com uma estética de ação contemporânea e o subtema do narcotráfico, criando uma narrativa tão intensa quanto visualmente impressionante. É um Zorro reinterpretado e reintroduzido ao tempo presente em que vivemos. Há cavalos, mas também há automóveis. Há espadas, mas também há armas automáticas.

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa
A história centra-se em Diego, um que, juntamente com a sua irmã, testemunha em criança o assassinato brutal do seu pai pelas mãos de um barão da droga da cidade. O seu pai era o ator que fazia de Zorro, sendo um grande fã do herói. Já órfão, Diego é salvo e educado por Alejandro, o velho amigo do seu pai que também era um fanático pela lenda de Zorro. Para lidar com o trauma vivido, Diego refugia-se na figura do Zorro, convencendo-se de que o seu objetivo é ressuscitar o herói lendário para combater os males modernos e, claro, para vingar o seu pai. Por sua vez, a sua irmã Rosa acaba a ter que trabalhar para o próprio homem que assassinou o seu pai.

Ora bem, sejamos sinceros, o argumento que nos é dado não tem propriamente grande originalidade. Já vimos, ouvimos e lemos histórias semelhantes, sim. Aliás, é impossível não lermos este livro sem recordarmos Antonio Banderas, não só no próprio filme A Lenda de Zorro, em que protagonizou o herói de mascarilha, mas também noutros filmes de Robert Rodriguez ambientados no México como Era uma Vez no México ou Desperado. Com as devidas diferenças, obviamente. 

Mas cedo se percebe que o intuito da proposta de Sean Murphy neste livro não é a de ser um trabalho existencial ou filosófico, mas - apenas e só - algo que, mesmo sem que o admitamos muitas vezes - quiçá por uma tentativa de nos acharmos mais intelectuais do que aquilo que realmente somos -,  muitos de nós adoram: uma boa história de ação e aventura, onde o entretenimento é servido em bandeja de prata. É isso que este Zorro - O Regresso de Entre os Mortos é... um livro que nos diverte, que nos entretém, que nos maravilha. 

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa
Murphy consegue equilibrar muito bem o tom da narrativa, criando uma aventura de vingança clássica que, embora não pretenda reinventar a roda, acerta em cheio na execução. A história é ritmada, cheia de ação e momentos de tensão, mas também pontuada por episódios mais ligeiros e cómicos, graças à personalidade peculiar de Diego. Com o seu comportamento antiquado, os seus gestos teatrais e o seu vocabulário florido, Diego acaba por ser uma personagem carismática e divertida, com um carisma muito próprio, que vive num tempo que não é o seu, tanto mental como culturalmente, e isso gera situações de fricção e humor que dão um toque especial à narrativa. É um herói deslocado, mas determinado, que combate com uma espada contra armas automáticas... e fá-lo com convicção. E é aqui que se nota a inspiração clara em figuras como Dom Quixote, pela sua visão idealista e anacrónica do mundo, ou Jack Sparrow, pela forma algo tresloucada e imprevisível de agir. O facto de Diego pensar de uma forma que não está em conformidade com o tempo presente, faz com que diga e faça muitas coisas desadequadas à realidade... e isso é um ponto bastante divertido na história.

Mesmo assim, num campo mais profundo, talvez possamos igualmente afirmar que a premissa de termos um jovem traumatizado que se convence ser o Zorro, para além de ser cómica, também tem um lado mais trágico, fazendo com que o leitor sinta empatia pelo protagonista, mesmo quando os seus métodos e convicções roçam o insano ou o caricato.

As outras personagens secundárias, especialmente Rosa, também são um ponto alto da obra, revelando carisma e servindo bem a história. E mesmo as personagens mais protótipo na história, também as há, ganham vida no traço expressivo de Murphy e nos diálogos bem escritos, que nunca resvalam para o banal. 

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa
Apesar de tocar em temas duros e de ter boas doses de ação e violência, o livro nunca se torna excessivamente pesado. Isso deve-se em grande parte ao tom aventureiro da narrativa, que opta pelo entretenimento puro e duro, sem nunca perder o foco na diversão do leitor. E é aí que reside um dos grandes méritos desta obra: não se propõe a ser profunda ou filosófica, mas sim um prato cheio de emoção, ritmo e espetáculo. E consegue-o com brilhantismo.

Como reinterpretação moderna de uma lenda clássica, Zorro - O Regresso de Entre os Mortos é uma obra notável. Respeita a essência da figura original, mas traz-lhe uma nova vida, um novo contexto e uma roupagem artística verdadeiramente deslumbrante. 

Em termos visuais, o livro é absolutamente arrebatador! O traço de Sean Murphy é inconfundível: enérgico, expressivo, cheio de textura e movimento. Cada página é uma composição visual rica, com uma planificação criativa e dinâmica que torna a leitura num verdadeiro espetáculo visual. As cenas de ação são coreografadas com maestria, transmitindo impacto e emoção de forma cinematográfica. Há vinhetas que, sem exagero, dariam excelentes quadros para emoldurar.

Um dos aspetos mais marcantes do estilo de Murphy é a sensação constante de movimento e urgência. As cenas de ação, por exemplo, são verdadeiras coreografias visuais, com enquadramentos ousados e perspetivas dramáticas que nos colocam no meio do combate, como se estivéssemos a assistir a uma sequência cinematográfica em câmara lenta e rápida ao mesmo tempo.

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa
Outro ponto forte está na planificação das páginas. Murphy não se limita a uma grelha convencional de vinhetas; pelo contrário, brinca com a estrutura narrativa visual, quebrando molduras, sobrepondo imagens e construindo composições que surpreendem e desafiam o olhar do leitor. Esta abordagem confere à obra um ritmo único e envolvente, que faz com que cada página tenha impacto narrativo e estético. 

Vale ainda destacar que Murphy, enquanto ilustrador, tem uma capacidade rara de fundir o detalhe com a legibilidade. Apesar da complexidade dos desenhos e do grande número de elementos visuais por página, nunca se perde o fio narrativo. Há sempre uma orientação clara do olhar, o que demonstra um domínio notável sobre a linguagem da banda desenhada. Por todos estes motivos, considero Sean Murphy um verdadeiro mestre!

E se o desenho de Sean Murphy é fantástico, as cores de Simon Gouch também contribuem para dar um belo aspeto à obra. Em termos visuais, é, quanto a mim, um livro que se aproxima da perfeição.

Quanto à edição da obra por parte da ASA, também vos posso dizer que estamos perante um belo trabalho. O livro apresenta capa dura baça e bom papel brilhante no interior. O trabalho de encadernação e impressão também é bem executado. No final, há ainda um generoso caderno de extras, que inclui um texto do autor Mathieu Lauffray sobre a obra, vários esboços e capas alternativas e biografias de autor. É, pois, uma bela edição também na vertente do material extra incluído.

Em suma, Zorro - O Regresso de Entre os Mortos é uma das mais excitantes e visualmente arrebatadoras bandas desenhadas do ano. Pode não ser uma história para refletir profundamente sobre a existência humana, mas é um exemplo perfeito de como a narrativa gráfica pode ser envolvente, bem construída e esteticamente arrebatadora. Às vezes, tudo o que precisamos é de um herói mascarado, uma espada afiada e uma boa dose de ação. E Sean Murphy oferece-nos isso como ninguém! Adorei!


NOTA FINAL (1/10):
9.6



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Zorro - O Regresso de Entre os Mortos, de Sean Murphy - ASA - LeYa

Ficha técnica
Zorro - O Regresso de Entre os Mortos
Autor: Sean Murphy
Editora: ASA
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 326 x 212 mm
Lançamento: Junho de 2025