A Amiga Genial, de Chiara Lagani e Mara Cerri
A adaptação para banda desenhada do romance
A Amiga Genial, de Elena Ferrante, foi a primeira aposta no lançamento de BD, em 2023, por parte da editora
Relógio d’Água. Com efeito, em termos de lançamentos de obras da 9ª arte, a aposta da editora portuguesa tem recaído em adaptações de obras relevantes da literatura, como
1984,
O Grande Gatsby,
Fahrenheit 451 ou
Mataram a Cotovia. E, não obstante esse claro enfoque em adaptações para BD de obras relevantes da literatura, estou com especial expetativa perante a aposta da editora em obras que não são adaptações de romances da literatura, como
Patos (
Ducks: Two Years in the Oil Sands), de Kate Beaton ou
O Segredo da Força Sobre-Humana, de Alison Bechdel, autora de
Fun Home, que a Relógio D’Água devera lançar lá mais para o final do ano.
Mas, por agora, concentremo-nos neste A Amiga Genial, cuja adaptação para banda desenhada é feita pelas autoras Chiara Lagani e Mara Cerri. Sendo uma história relativamente recente – o romance original data de 2011 – pode-se, ainda assim, afirmar que rapidamente este romance contemporâneo alcançou aclamação.
Conta-nos a história da amizade entre Raffaella Cerullo e Elena Greco, Lila e Lenù. Ambientando num bairro pobre de Nápoles, durante os anos 1950, este é um romance intenso e envolvente que traça a jornada das duas amigas, desde a infância, passando pela adolescência e culminado já na idade adulta de ambas as mulheres. A história, que é narrada por uma das amigas, assume-se como uma profunda reflexão sobre amizade, identidade, aspirações e os desafios de crescer num ambiente onde imperam vários tipos de adversidades.
Lila, a “amiga genial”, é verdadeiramente talentosa, inteligente e bela, enquanto que Lenù é “apenas” uma estudante aplicada que procura, a todo o custo, acompanhar o nível da sua amiga. Mesmo os rapazes, parecem ser movidos por um qualquer dínamo que os deixa atraídos por Lila. Mas, embora tudo pareça indicar que certas pessoas são simplesmente mais beneficiadas pela natureza do que outras, nem sempre os afortunados fazem bom uso das vantagens que lhes são dadas. E o ingresso na vida adulta certamente altera muitas coisas na vida das duas amigas.
A escrita de Elena Ferrante é cativante e profunda, capturando com sensibilidade os pensamentos e as emoções das protagonistas. Os temas da educação, da desigualdade de género, com especial destaque na violência doméstica ou nas aspirações femininas numa sociedade ainda muito patriarcal, também estão bem presentes.
Relativamente a esta adaptação, começo por falar nas ilustrações. O trabalho de Mara Cerri é de uma profundidade enorme em termos de beleza, com as suas bonitas e intrigantes ilustrações a serem perfeitas para criar belos momentos de reflexão. Com um estilo que lembra a pintura em aguarela, Mara Cerri consegue fazer-nos viajar, de forma poética, para as vidas de Lila e Lenù e para a sujidade das ruas da Nápoles dos anos 50. O estilo da ilustração até me remeteu para a obra mais recente do autor português Marco Mendes,
Juventude. A maneira como Mara Cerri concebe as personagens – com expressões marcantes - e como nos vai desvendando, a ritmo lento, mas compassado, a história, com o recurso a muitos planos de pormenor que nos remetem para uma sensibilidade cinematográfica, agradou-me muito. De facto, os planos utilizados são bastante cinematográficos, fazendo com que pareça que estamos a visualizar um belo filme animado independente. Daqueles que, amiúde, ganham prémios internacionais.
Quanto à história, devo dizer que não é fácil ler esta adaptação se não se conhecer a obra original - que, aliás, é uma série com quatro volumes. Concedo que Chiara Lagani teve que adaptar e cortar alguns momentos importantes da história original, mas, pelo menos ao nível da narração, penso que teria sido mais benéfico se alguns desses elementos fossem retratados com uma menção apenas. Quem já conhece a obra original – e se já familiarizou de forma profunda com as personagens – vai adorar esta adaptação para banda desenhada. Porém, aqueles que não leram o romance de Elena Ferrante talvez tenham algumas dificuldades.
Se se compreende que numa adaptação para banda desenhada – ou cinema – há sempre muita coisa da obra original que tem que ser retirada e se até é verdade que, na essência, este
A Amiga Genial preserva a obra de Elena Ferrante, também não é menos verdade que, a meio da história, se vai perdendo o fulgor da mesma, dando-se lugar um abstracionismo que, embora poético, se afasta um pouco da essência mais essencial - permitam-me o pleonasmo - da obra.
E é pena porque, a primeira parte do livro até começa de forma exímia. Sou-vos sincero. Estava a ler o livro e, aliado às belas ilustrações, pensei: “Wow! Isto vai ser uma obra-prima da banda desenhada”. O ritmo, o ambiente, o texto não demasiado povoado de palavras, eram perfeitos. Mas, infelizmente, acho que o enredo acaba por se perder um pouco ao longo da leitura. Continua a ser um excelente livro, que se recomenda e que merece a minha vénia por ter sido uma aposta da Relógio D’Água, mas, infelizmente, vai perdendo um pouco do apelo inicial ao longo da obra. Se comecei as primeiras 40 ou 50 páginas a achar que poderíamos estar perante uma “obra-prima da banda desenhada”, a partir da página 120 ou 150 apercebi-me que, não sendo essa desejada obra especial é, ainda assim, um belo livro. Especialmente para os conhecedores e amantes da obra original.
A edição da Relógio D’Água é em capa mole com badanas e bom papel brilhante. Em termos de impressão e encadernação, o livro também apresenta uma boa qualidade.
Em suma, esta adaptação da obra A Amiga Genial foi uma bela surpresa, dado que estamos perante uma profunda e sensível história de duas mulheres que iniciam uma amizade ainda em tempos de criança. E mesmo que a adaptação seja um pouco parca em alguns dos momentos e do enredo da obra original, as belíssimas ilustrações de Mara Cerri servem para nos encher o olho enquanto nos transportam, no tempo e no espaço, para essa experiência napolitana dos anos 50.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
-/-
A Amiga Genial
Autoras: Chiara Lagani e Mara Cerri
Adaptado a partir da obra original de: Elena Ferrante
Editora: Relógio D'Água
Páginas: 264, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Abril de 2023
