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quarta-feira, 30 de julho de 2025

Análise: Un Père

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
Un Père, de JeanLouis Tripp

Por alturas em que, há pouco mais de dois meses, a Ala dos Livros lançava por cá o fabuloso livro O Meu Irmão, de JeanLouis Tripp, a editora Casterman lançava para o mercado franco-belga a mais recente obra do autor francês, que dá pelo nome de Un Père e que volta a centrar-se no passado autobiográfico de Tripp, com especial ênfase na relação deste com o seu pai.

É mais uma obra em que JeanLouis Tripp mergulha novamente com coragem na memória e na emoção, oferecendo ao leitor um álbum profundamente humano e comovente. Após a aclamação de um livro tão especial como O Meu Irmão, que abordava a perda trágica do seu irmão mais novo, Tripp vira agora o olhar para a complexa e delicada relação que teve com o seu pai. O resultado é uma obra de uma maturidade emocional impressionante, onde a ternura, a dor e a procura de sentido se entrelaçam numa narrativa que, embora fragmentada, nos conduz a uma experiência envolvente.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
A história parte de uma infância marcada por um amor pleno e exclusivo: Jean-Louis, quando em criança, viveu como filho único nos primeiros anos, experienciando um tempo dourado sob o carinho e a atenção do pai. Brincavam juntos, tinham momentos ternos a sós. No entanto, com o nascimento dos irmãos e com a degradação do casamento dos pais, essa fase idílica deu lugar a um afastamento gradual. O livro procura, qual catarse, compreender como esse vínculo inicial foi sendo corroído. E não é que tenham existido desentendimentos ou tensões tão grandes assim. Nesse ponto, a relação de ambos até foi semelhante a todas as relações de pai e filho, com os seus bons e maus momentos. E o próprio divórcio dos pais do autor, nunca sendo bom, claro, talvez também não tenha sido o responsável pelo crescimento desta alienação mútua. O que terá sido, então?

Tripp oferece-nos uma abordagem intimista, misturando lembranças aparentemente dispersas, mas que, juntas, constroem uma manta emocional sólida e sincera. A narrativa desta obra é feita de episódios, por vezes longos e marcantes, outras vezes breves e subtis, que nos transportam por várias épocas e locais, como as férias da família na Alemanha de Leste e na Roménia, espelhos da ideologia e do ativismo político do pai, um professor orgulhosamente comunista. Esses momentos, longe de meras curiosidades históricas, revelam o pano de fundo ideológico e afetivo em que se desenrolou a infância do autor.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
O álbum pode, por vezes, parecer retalhado em demasia, com uma sucessão de memórias sem uma ordem muito concreta. Nesse ponto, afasta-se bastante de O Meu Irmão, que é um livro de narrativa mais direta, que gravita todo à volta do trágico falecimento do irmão de Tripp e das eventuais consequências desse momento fatídico. Em Un Pére, tão depressa somos brindados com um momento marcante, como uma discussão mais forte entre pai e mãe, como a seguir seguimos rumo para um momento mais mundano nas férias em família dos protagonistas. E, parece-me, é precisamente nessa estrutura aparentemente solta e algo desconexa que encontramos reflexo na nossa própria memória e afeto. É que, tal como nos lembramos dos nossos entes queridos em lampejos e sensações avulsas, também Tripp nos vai contando a sua história. O fio condutor é, pois, emocional e não cronológico. Por vezes, pode parecer uma leitura mais aleatória, mas quando o leitor se deixa levar por esse fluxo, é inevitável ser tocado pela profundidade das revelações.

Se certas partes no enredo podem ser cambaleantes, o livro vai ganhando força - com a tal soma das partes, lá está - à medida que caminha para o final, com a comoção advinda a tornar-se mais densa. A distância entre pai e filho, inicialmente subtil, transforma-se numa dor surda que vai ganhando forma. O crescendo emocional conduz o leitor até à dor do afastamento, tão comum a tantas relações familiares. A força da narrativa da obra reside na capacidade de Tripp em não julgar, em não cair em ressentimentos fáceis, mas em procurar compreender e aceitar a imperfeição humana que habitou essa relação. Há toda uma sensação genuína de tentar superar as dores do passado.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
Visualmente, Un Père mantém o estilo gráfico característico do autor, com uma paleta sépia que remete para o passado, e com o uso da cor apenas no tempo presente ou em algum momento mais impactante e estilizado do passado. É um recurso simbólico eficaz, que sublinha a distância entre as memórias e a realidade atual. A arte de Tripp continua a ser um ponto forte, servindo com sensibilidade a natureza intimista do relato. As expressões, os silêncios, os olhares... tudo é tratado com grande aprumo emocional.

Em termos de edição, o livro apresenta capa mole com badanas, bom papel baço no miolo, e um bom trabalho ao nível da impressão e da encadernação, embora mereça comentário o facto de, como se trata de um livro bastante espesso (tem 360 páginas) e em capa mole, ser necessário muito cuidado no manuseamento para que a lombada não fique cheia de vincos. É uma boa edição, mas está bem atrás daquela que a Ala dos Livros nos ofereceu no seu recente O Meu Irmão. Por falar em Ala dos Livros, faço votos para que este Un Père possa ser lançado pela editora portuguesa o quanto antes. E, se não for pedir muito, que os dois livros de Extases, onde o autor aborda de forma autobiográfica a sua vida sexual, também tenham edição portuguesa. O trabalho de JeanLouis Tripp é demasiado bom para não ser integralmente editado em Portugal.

Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman
Voltando a Un Père, o grande talento de Tripp está na sua capacidade de tratar emoções complexas com delicadeza e autenticidade, não tentando encobrir as falhas, mas também não transformando os conflitos em tragédias grandiosas. Há, antes, um retrato profundamente honesto do que é crescer, afastar-se, e depois tentar compreender em retrospetiva o que se perdeu... e o que ainda pode ser resgatado, mesmo que apenas na memória.

O livro tem, portanto, o mérito raro de falar ao leitor de forma universal, mesmo sendo profundamente pessoal. Todos os que foram filhos - e, eventualmente, todos os que são pais - encontrarão aqui algo de seu: uma dor antiga, um gesto mal compreendido, uma ausência não verbalizada. Un Père não dá respostas fáceis, mas convida-nos à reflexão, ao perdão e à reconciliação emocional, mesmo que simbólica.

Se O Meu Irmão nos confrontava com a dor da perda súbita, Un Père leva-nos por um percurso mais longo e silencioso: o da erosão lenta de uma ligação que nunca deixou de ser pautada pelo amor. Tripp mostra-nos que, mesmo onde há distância, pode haver também afeto e que, às vezes, compreender e aceitar são os únicos gestos possíveis de reconciliação. É, no fundo, uma carta de amor escrita com maturidade e dor contida, sendo um livro que se lê de uma assentada, mas que permanece connosco durante muito tempo. Pela honestidade, pela beleza do desenho, e sobretudo pela sua verdade emocional, Un Père é uma obra memorável que nos obriga a parar, a olhar para trás e, quem sabe, a repensar a nossa própria história familiar. Não há dúvidas de que JeanLouis Tripp é um dos meus autores favoritos de banda desenhada! 


NOTA FINAL (1/10):
9.7


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Un Père, de JeanLouis Tripp - Casterman

Ficha técnica
Un Père
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 360, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 19,8 x 26,1 cm
Lançamento: Maio de 2025

terça-feira, 29 de julho de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Ala dos Livros nos últimos 5 anos!


A propósito da comemoração dos 5 anos de existência do Vinheta 2020, trago-vos um especial que começa a partir de hoje e que procura celebrar e assinalar a melhor banda desenhada que cada uma das principais editoras portuguesas editou nos últimos 5 anos. Durante as próximas semanas tentarei, pois, oferecer-vos um artigo por editora.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a crème de la crème de cada editora.

Em cinco anos de edição ininterrupta de banda desenhada, há naturalmente muitos títulos editados e, como devem calcular, a tarefa não foi fácil e vi-me forçado a excluir obras fantásticas, mas, lá está, há que fazer escolhas e estas são as minhas escolhas.

Hoje começo com uma editora cujo contributo para o lançamento de boa banda desenhada em Portugal é verdadeiramente inegável: a Ala dos Livros.

Esta editora tem um catálogo que considero de extrema qualidade. São (muito!) mais as obras que adoro da editora, do que aquelas de que não gosto. Não foi fácil, mas aqui está o meu TOP

Eis, mais abaixo, as minhas obras favoritas lançadas pela editora Ala dos Livros:

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman
Tenho tanto para escrever sobre O Meu Irmão, uma das mais recentes obras publicadas pela editora Ala dos Livros - obra que se assume, facilmente, como um dos grandes livros de banda desenhada de 2025 - que este artigo terá que ser, forçosamente, um artigo diferente de todos os outros que faço aqui no Vinheta 2020.

Bem, se querem uma análise à obra, podem encontrá-la aqui, pois já analisei o livro, por altura do seu lançamento oficial em França, pela editora Casterman. Depois de reler a obra na sua edição portuguesa, dei por mim a reler também o texto que escrevi aqui previamente para o blog.

Nessa altura, também não pude, obviamente, ficar indiferente a tão fantástica obra, deixando até o seguinte apelo "quanto tempo passará até que uma editora portuguesa aposte neste livro maravilhoso?" e concluí afirmando que "esta obra traz consigo uma das leituras mais comoventes e emocionantes que fiz nos últimos anos e que, indubitavelmente, merece ser publicada por cá. (...) é um livro demasiado bom para que a aposta não seja feita. Formidável!"

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman
Dessa altura para cá, mantenho a opinião de que estamos perante um livro obrigatório, que todos deveriam ler, que nos toca no âmago do nosso ser e que é exemplo claro do quão profunda, bela e enriquecedora pode ser uma obra de banda desenhada. Portanto, talvez nada tenha mudado sobre a minha perceção sobre a obra.

Ou talvez tenha mudado algo. Mas para melhor.

O que me leva a outra questão que quero aqui abordar: o tema da tradução, da obra traduzida. Há uma corrente de pensamento que refere que quando lemos uma obra na língua original em que esta foi feita, estamos a saboreá-la, a degustá-la e a conhecê-la "como deve ser". Da forma mais correta. Concordo e discordo com esta afirmação. Concordo porque, de facto, é verdade que não há um intermediário - na pessoa de um tradutor - que possa alterar/adulterar a obra, desvirtuando-a. É, pois, o estado mais puro de mergulharmos na obra. Certo. Por outro lado, discordo no sentido em que uma boa tradução - como é o caso daquilo que acontece neste O Meu Irmão - permite-nos um mergulho menos condicionado pela questão linguística da obra.

Explico.

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman
A maioria das pessoas - excetuando da equação, e desde já, todos aqueles que têm "fluência total" de mais do que uma língua, - tem uma língua materna, uma língua em que pensa e sonha, que lhe é inata. E mesmo que essas pessoas saibam outras línguas por as terem praticado ou aprendido em contexto letivo, profissional ou lúdico, conhecem e dominam melhor, ainda assim, a língua materna. Ora, quando lemos noutra língua que não a nossa língua materna, estamos sempre a associar os vocábulos de uma língua para a outra, fazendo a transição mental entre uma e outra língua. É claro que quanto mais praticarmos ou conhecermos a língua estrangeira, mais natural e fluído será este processo. Mesmo assim, é um processo que existe sempre.

Ora, os meus conhecimentos da língua francesa são bastante limitados. Diria que compreendo uma grande percentagem - quase tudo - daquilo que leio em francês, mas não serei tão bom a decifrar a língua na oralidade e, muito menos, a exprimir-me em francês. E refiro isto porque, no caso em questão, compreendi toda a obra Le Petit Frère em francês, claro, até porque o texto nem é particularmente difícil ou técnico. No entanto, depois de ler a obra em português, não tenho dúvidas de que pude mergulhar melhor na mesma. Como não tive necessidade de fazer a tal transição entre vocábulos de uma língua estrangeira para a minha língua materna, pude mergulhar de forma mais natural, mais fluída e mais genuína na leitura.

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman
E por que razão falo desta questão da tradução neste artigo dedicado a O Meu Irmão? Bem, por um lado, para referir que, de facto, é muito importante que haja em Portugal obras traduzidas para a nossa língua mãe, por muito fluentes que sejamos - ou que achemos que somos - em línguas estrangeiras. Até porque isso permite que a obra possa chegar a mais gente, o que é benéfico para o próprio setor. 

Por outro lado, ler a obra em português permitiu-me gostar ainda mais dela. Na análise que fiz à obra, que considerei praticamente perfeita, com uma nota de 9.8 em 10.0, considerei que o único ponto menos positivo da mesma era que, de alguma forma, a história da morte, velório e outros trâmites associados aos mesmos fossem contados em demasiadas páginas. Na altura, escrevi: "Se há algo que posso criticar de forma menos positiva é que, enquanto lia a obra, fiquei com a ideia que a mesma poderia ser contada em 200 páginas, em vez de 344 páginas. Com efeito, até me pareceu que Jean-Louis Tripp estava a “puxar a barra” dramática em demasia." Ora, hoje em dia, e depois de lida a obra em português, e embora concorde com todo o resto que escrevi, discordo deste ponto em concreto do livro ter demasiadas páginas. Foi por ler em português que consegui mergulhar mais densamente na história e, atualmente, acho que, sim, todas aquelas 344 páginas eram necessárias.

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman

É um livro fantástico, que nos toca no fundo e que pode mudar uma vida. A minha, mudou, sem dúvida. Perder um ente querido completamente saudável num acidente de viação obriga a família a um inesperado e doloroso luto que deixa marcas ao longo de toda a vida. E, infelizmente, as mortes em acidentes de viação são algo que se mantém presente nos nossos dias, fazendo com que este tipo de histórias se tornem em algo universal e presente. Ainda hoje, no dia em que vos escrevo, foi tornada pública a morte dos futebolistas Diogo Jota e André Silva num acidente de viação, o que faz com que a reflexão que O Meu Irmão nos traz, ressoe ainda mais. 

Sim, considero O Meu Irmão, um livro: 

NOTA 10.0 em 10.0.

Para isso, também contribui a fabulosa edição da Ala dos Livros!

Há que o dizer: há algumas editoras em Portugal - e, sem desprimor para as demais, a Ala dos Livros consegue ser o melhor exemplo disto - que fazem melhores edições para Portugal do que as edições originais francesas.

A edição de O Meu Irmão supera, a todos os níveis, a edição original da editora Casterman.

E é por isso que este artigo também é um comparativo.

Como se não bastasse o cuidado com que as edições da Ala dos Livros são feitas, para este livro em específico ainda se juntou o nome de Mário Freitas que com todo o seu perfeccionismo e conhecimento, contribuiu para que a legendagem, grafismo e design de capa fossem muito bem trabalhados.

Comecemos então por isso, pela capa.

Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


A edição portuguesa da obra apresenta uma capa diferente da capa original. Pessoalmente, prefiro a opção portuguesa que é mais equilibrada em termos visuais, permitindo que o título não seja apresentado em letras tão garrafais como na edição original da obra, embora seja, ainda assim, bastante legível e chamativo. 

A própria colocação da imagem das duas mãos que se separam é uma visão constante ao longo da obra e, portanto, coaduna-se muito bem.


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


Ao contrário da edição da Casterman, que apresenta capa mole com badanas, a edição portuguesa do livro oferece capa dura baça, com um material muito suave ao toque e ainda com detalhes a verniz. 

A lombada é em tecido e o livro ainda apresenta uma elegante fita marcadora. Uma edição de luxo e de colecionador, sem dúvida.


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


Outro detalhe deve ainda ser referido sobre a lombada do livro. O simples facto da obra ser bastante densa faz com que o livro seja espesso. Eu tenho sempre um grande cuidado no manuseamento dos livros e, ainda assim, como podem ver na imagem acima, a lombada do meu livro francês ficou com bastantes fissuras. 

Ora, na edição em capa dura isso não vai certamente acontecer. E a opção por uma lombada arredondada em detrimento de uma lombada plana, também dá mais consistência ao livro.


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


Em termos de papel utilizado, ambos os livros são bastante bons. O papel é baço, de boa textura e qualidade, o que encaixa bem no tipo de ilustração do autor e no próprio teor da obra. 

Mesmo assim, a edição portuguesa acaba por beneficiar a obra ao permitir que o formato, que é superior, possibilite uma maior mancha de impressão e consequentes vinhetas de maior dimensão.

A leitura sai beneficiada, portanto.


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


Em termos de cores, a edição portuguesa é extremamente fiel à edição original, sendo difícil encontrar diferenças entre um e outro livro.


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


O tipo de letra utilizado, não sendo exatamente o mesmo do da obra original, é-lhe muito fiel, e tem a dimensão e colocação perfeitas. Nada a objetar também, portanto.


Comparativo: "O Meu Irmão" pela Ala dos Livros e pela Casterman


Ora, feitas as comparações mais diretas entre os dois livros, falta ainda mencionar que a edição portuguesa traz oito páginas adicionais de conteúdo extra, nomeadamente, uma página com a ilustração e arranjo gráfico da capa da edição original; outra com uma biografia de JeanLouis Tripp; e um belo texto, em estilo de reportagem sobre a feitura do livro, que se espraia por seis páginas. 


Este texto é útil para aprofundar o tema contido na obra e, ao mesmo tempo, é acompanhado de alguns belos desenhos retirados da história, que o tornam muito apelativo. É um complemento simples, mas bem-vindo e que, mais uma vez, ajuda a que a edição portuguesa supere a edição francesa da obra.



Em suma, reitero que este O Meu Irmão é um dos livros do ano, uma obra obrigatória a conhecer, que nos amargura por dentro, que nos faz sentir raiva e que persiste na nossa memória ao longo de uma vida. Como se já não fosse maravilhoso que esta obra fosse publicada em Portugal, a Ala dos Livros ainda teve o mérito de apostar numa edição de luxo, onde tudo é pensado ao pormenor, superando em todos os quadrantes a edição original da francesa Casterman.

Se este livro ainda não foi comprado por aquele que me lê neste texto, o meu conselho é simples e taxativo: faça um favor a si mesmo e acrescente este livro à sua estante.




quarta-feira, 14 de maio de 2025

Está a chegar uma das BDs do ano!!!



É um livro há muito desejado pelos leitores portugueses de (boa) banda desenhada e está próximo de chegar até nós!

Falo de O Meu Irmão, de Jean-Louis Tripp (co-autor do maravilhoso Armazém Central), que é uma autêntica obra prima da banda desenhada! Um daqueles livros de uma vida, que fica connosco para todo o sempre!

A história é real e fala-nos do modo como o autor perdeu o seu irmão. É um livro comovente, chocante, deprimente e, ao mesmo tempo, imensamente belo e impactante. 

Na altura do lançamento original da obra, tive a oportunidade de ler a versão original da mesma, intitulada Le Petit Frère, e escrever sobre ela aqui.
Ao contrário da edição original da obra da editora Casterman, que é em capa mole, a edição portuguesa da editora Ala dos Livros é em capa dura e com lombada em tecido. Além disso, a capa é diferente (e, quanto a mim, mais bela) e o livro ainda inclui um caderno de extras com o relato do autor sobre o processo de feitura da obra.

Um livro indispensável e candidato a livro do ano que deverão colocar na vossa lista de compras. 

O lançamento está previsto para o mês de Maio. Se não estiver já disponível no próximo Maia BD, deverá estar pronto para venda no Festival de Beja.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.

O Meu Irmão, de Jean-Louis Tripp

«Não se morre a meio das férias de Verão, quando se tem onze anos e meio.»


A 5 de agosto de 1976, na Bretanha, durante uma viagem nas férias de Verão da família, um condutor atropelou o irmão mais novo de JeanLouis Tripp e fugiu. Gilles não tinha ainda doze anos e não sobreviveria ao acidente. 

O autor volta atrás no tempo, desde aquele instante em que a sua vida e a dos seus familiares mudou completamente. Ao reconstituir as suas memórias, explora as emoções pessoais provocadas por este drama comovente e testemunha, através desta sua odisseia, a dor e a sua busca por apaziguamento.

A edição portuguesa, agora publicada pela Ala dos Livros, inclui um caderno adicional com o relato do autor, na primeira pessoa, das suas memórias do trágico episódio e do processo de realização de um livro comovente e impressionante que consegue marcar e tocar o leitor.

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Ficha técnica
O Meu Irmão
Autor: Jean-Louis Tripp
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 352, a cores
Encadernação: Capa dura, com lombada em tecido
Formato: 210 x 285 mm
PVP: 47,00€

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Análise: Le Petit Frère

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp

Há um conjunto de momentos na perda de alguém próximo que são de uma força enorme, devastadora e angustiante, e que não mais nos largam ao longo da nossa vida. E depois, já mesmo quando passaram muitos anos desde essa morte, ainda conseguimos vivenciar todos os momentos que compuseram esse trágico acontecimento, tal como se apenas tivessem passado dois ou três dias: a forma como soubemos que alguém estava à beira da morte, a forma como soubemos que esse alguém tinha mesmo morrido, o que sentimos na altura, quem estava lá a partilhar esse momento connosco, o funeral, as mensagens, as flores, os dias seguintes. Tudo aquilo que compõe, portanto, aquele momento em que o “tapete” nos é tirado e acabamos por ter uma enorme queda emocional. Que se arrasta por meses. Por anos.

Le Petit Frère dá-nos, num relato autobiográfico, tudo isso, mas com uma agravante: estamos perante a história real de uma criança de 11 anos, o membro mais novo de uma família, cuja vida é ceifada por um violento acidente automóvel. Conseguem imaginar? Já há muito tempo que um livro não me partia o coração desta maneira. Foram várias as vezes, ao longo destas mais de 300 páginas, que o nó na garganta se me instalou e as lágrimas acabaram por me inundar os olhos.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Jean-Louis Tripp, autor, juntamente com Régis Loisel, de Armazém Central, uma das séries da minha vida, conta-nos a história biográfica sobre a forma como perdeu o seu irmão mais novo, Gilles. E posso dizer-vos: a leitura deste livro é de uma força e de uma tristeza tal, que senti que o meu coração foi arrancado do seu lugar, pontapeado e esmurrado e depois devolvido ao seu local original. O Relatório de Brodeck, de Manu Larcenet, essa magnífica e pesada obra-prima da bd, parece uma história dos Ursinhos Carinhosos, quando comparada, pelo menos em termos de intensidade dramática, com este Le Petit Frère. É preciso estômago para ler este livro, aviso já.

Le Petit Frère começa praticamente com a morte do pequeno Gilles. Era o verão de 1976 e Jean-Louis, de 18 anos, encontrava-se de férias na Bretanha, com a sua família. Sem que Jean-Louis – ou alguém - o pudesse prever, ao soltar a mão do seu irmão mais novo, este acaba por ser violentamente atropelado por um carro que, lamentavelmente, opta por fugir após o embate. Ora, nos anos 70 não tínhamos telemóveis e, tendo em conta que a família se deslocava em caravanas puxadas a cavalo, bem como que este acidente aconteceu no meio do nada, o pequeno Gilles perdeu muito sangue enquanto aguardava pela assistência médica. Todos tiveram que esperar por uma ambulância num longo período de tempo que parece ter demorado horas. Eventualmente, e já no hospital, a família é confrontada com o dramático anúncio: Gilles perdera a vida. Esse pequeno momento de soltar a mão do seu irmão, que acabou por ser fatídico para Gilles, acabou por perseguir Jean-Louis Tripp ao longo de toda a sua vida.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Tripp vai ao pormenor, cobrindo cada um dos pequenos momentos vividos ao longo dos dias que circundam a morte do seu irmão, Gilles. Aliás, prova disso é que o momento do acidente que envolve o seu irmão se dá na página 17 e é só na página 150 que tem lugar o funeral do seu irmão. Portanto, são inúmeras as pranchas onde vemos personagens a chorar fortemente, abraçadas umas às outras ou em pleno choque emocional. São desenhos que falam por si e que trazem uma forte aura de drama e tristeza à obra.

O autor narra-nos com minúcia os anos que se seguem: a raiva, a sensação de injustiça, o luto. Tudo muito difícil de ultrapassar. Como encontrar algum sentido após a morte de uma criança e de uma forma tão violenta, ainda por cima? E, claro, o sentimento de culpa também parece perseguir o narrador. Se ele não tivesse largado a mão do seu irmão, a tragédia não teria acontecido? Também o processo judicial face ao motorista culpado - que fora rapidamente descoberto pelas autoridades - ou o início de carreira de Jean-Louis enquanto artista de banda desenhada, na revista Métal Hurlant, estão documentados pelo autor.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Se há algo que posso criticar de forma menos positiva é que, enquanto lia a obra, fiquei com a ideia que a mesma poderia ser contada em 200 páginas, em vez de 344 páginas. Com efeito, até me pareceu que Jean-Louis Tripp estava a “puxar a barra” dramática em demasia. Às tantas eu já sentia: “homem, pára de me deprimir com esta história”! Mas isso foi uma injustiça da minha parte. Porque ao ler este livro na íntegra, também eu tive que regressar à maior perda que tive nesta vida – a do meu pai – para relembrar que o drama não é exagerado. O drama é real e vive-se durante uma vida, até. E então percebi que o próprio Jean-Louis Tripp há-de ter tido com esta obra uma certa redenção para a sua vida. Com um resultado quiçá terapêutico. Uma forma de sarar – se tal for possível – esta enorme ferida.

Assim, e por essa razão, não me parece ser justo afirmar que o autor faz “render o peixe” ou que explora em demasia este evento da sua vida. Há, aliás, um sentido de profundidade e sinceridade que nos toca no nosso âmago. Ao leitor acaba por ser dada a possibilidade de experienciar algo real e tremendamente trágico que o próprio Tripp viveu durante a sua vida e que, estou certo, continua a atormentá-lo. E a feitura deste livro é, afinal, uma forma de tornar eterno o pequeno Gilles que, com apenas 11 anos, teve o azar de estar no sítio errado, à hora errada e com isso destruir o universo de toda a sua família. 

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Tenho que afirmar que, tirando o brilhante Armazém Central, eu não tinha lido mais nada deste autor. E digo-vos: que fantástico autor-completo é Jean-Louis Tripp! Está, segundo os meus padrões, confirmado como um autor brilhante. Depois deste Le Petit Frère, tenho que dizer que estou muito curioso por ler Extases, onde o autor se despe de preconceitos acerca de temas relacionados com a sexualidade numa autobiografia.

Mas, voltando a Le Petit Frère, visualmente, o autor oferece-nos um livro com desenhos que, mesmo ilustrando situações terríveis como a dor, o luto e a tristeza infindável, conseguem ser muito bonitos e visualmente apelativos. Os leitores que conhecem Armazém Central encontrarão, aqui e ali, algumas semelhanças com os desenhos dessa série – especialmente nos cortes de cabelo de algumas personagens e em algumas expressões faciais – mas, tal como já disse noutros artigos, Armazém Central parece ter sido desenhado por uma outra pessoa que não Loisel e não Tripp. As semelhanças com os desenhos de ambos os autores estão lá, obviamente, mas numa mistura diferente ainda assim. Como se ambos os autores tivessem criado, por fusão, um novo autor.

Le Petit Frère, de Jean-Louis Tripp - Casterman
Posto isto, e voltando novamente a Le Petit Frère, posso dizer que os desenhos expressam de forma inequívoca a dor, a devastação emocional e a deformação do momento que a própria história nos oferece. As cores são quase sempre em tons de sépia embora sejam entrecortadas por algumas cenas em cores mais vivas que tentam apontar a história e o autor no sentido da luz. Da bonança após a tempestade. Do otimismo e da redenção.

A edição da Casterman é em capa mole e em papel baço, com boa gramagem. Tenho que dizer que, sendo o livro bastante grosso, por mais que seja o cuidado que temos no manuseamento do livro, a lombada do mesmo acaba por estar sempre um pouco danificada quando chegamos ao final da leitura. Com aquele habitual vinco na lombada. É uma pena e acho que o livro merecia capa dura. Porém, também é verdade que, pela tal razão de ser em capa mole, o preço do livro em França, de 28€, é bastante simpático para uma obra a cores e com mais de 300 páginas. Opções editoriais, portanto.

No fim, o meu pensamento é apenas este: quanto tempo passará até que uma editora portuguesa aposte neste livro maravilhoso? Esta obra traz consigo uma das leituras mais comoventes e emocionantes que fiz nos últimos anos e que, indubitavelmente, merece ser publicada por cá. Sei que o tamanho do livro é grande, o que poderá trazer consigo custos avultados e consequentes receios das editoras portuguesas. Mas é um livro demasiado bom para que a aposta não seja feita. Formidável!


NOTA FINAL (1/10):
9.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Le Petit Frère
Autor: Jean-Louis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa, original)
Páginas: 344, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 20 x 26,3 cms
Lançamento: Maio de 2022

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Análise: Armazém Central (Série Completa)

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp

Quando na apresentação do último volume de Armazém Central, que inclui os últimos tomos da série, As Mulheres e Notre-Dame-des-Lacs, e que ocorreu na última edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, a editora da Arte de Autor, Vanda Rodrigues, contou o porquê da aposta nesta série, fiquei de boca aberta e, mesmo sem lágrimas, com um brilho especial nos olhos, certamente. Dizia a editora que, por altura da publicação em França, no Festival de Angoulême, do último volume de Armazém Central, ficou apaixonada pela capa do álbum e, mesmo sem conhecer o livro ou a série, o decidiu comprar, embora várias pessoas lhe tivessem dito que esta era uma série longa e que não a perceberia lendo apenas o último álbum. Foi, mais tarde, ao ler um artigo meu sobre as bandas desenhadas que lamentavelmente tinham sido abandonadas por cá, e em que Armazém Central era uma das séries apontadas por mim, que Vanda Rodrigues ganhou novo ímpeto para apostar na série! Caramba! Nem imaginam o prazer e orgulho que me deu saber isto pela editora da Arte de Autor. Porque mesmo que eu tenha tido apenas 1% (ou menos) de responsabilidade em trazer a série para Portugal, é um autêntico prémio pessoal saber que contribui um pouco para que tal acontecesse, acreditem. Claro que para um "crítico de banda desenhada" como eu é fácil dizer que certas coisas são boas. No entanto, e para além dos autores, logicamente, são os editores é que merecem os nossos agradecimentos pelas boas apostas que fazem. E, portanto, acho que todos os leitores de (boa) banda desenhada deverão estar gratos à Vanda Rodrigues, pela sua bela aposta.

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Já muito escrevi sobre Armazém Central e, por esse motivo, convido os leitores do Vinheta 2020 a revisitarem, pelo menos, as duas primeiras análises que fiz à série. Quer aqui, como aqui. Mas agora que, há poucas semanas, foi publicado, pela Arte de Autor, o último volume da série, da autoria de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp, é tempo de fazer uma última análise à série.

E pego na frase que aqueles que me seguem já me ouviram dizer/escrever muitas vezes e da qual eu não fujo: "Armazém Central está entre as minhas três séries de banda desenhada preferidas de sempre!" Não comparo as séries com os álbum one-shot. Desses, também há tanta, tanta coisa que eu adoro e onde se calhar até terei mais dificuldades em fazer um top 3. Mas, em termos de séries de bd, que necessitam de um sentido de continuidade sempre cativante e impactante… então coloco Armazém Central no meu TOP 3, incluindo Blacksad, de Juanjo Guarnido e Juan Diáz Canales, que adoro da mesma forma. Qual será a minha outra terceira série a figurar neste top 3? Bem, normalmente esse lugar é mais mutável. O que até pode ser compreendido como a certeza de que Armazém Central e Blacksad são as minhas duas séries preferidas de sempre.

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Bem, mas falando menos de mim e mais da série Armazém Central, que posso ainda dizer sobre esta fantástica obra-prima da banda desenhada mundial? Pode uma banda desenhada mudar uma vida? Ensinar-nos o que é a aceitação do outro? Isso, de aceitar os outros, que ainda parece ser tão difícil para todos nós? Armazém Central anda lá perto! E fá-lo com subtileza, com maturidade e de uma forma despretensiosa. Não é, por isso, uma daquelas obras que assume uma função pregadora, de nos estar sempre a (tentar) incutir maneiras de pensar ou de ver as coisas de uma ou outra forma. E, também por isso, todas as belas mensagens que aqui nos são dadas, são através dessa forma, que todos deveríamos usar nas nossas vidas, que é a de colocar em perspetiva todo o tipo de preconceitos que ainda temos em nós. E só assim, alcançaremos um mundo mais humano, onde cada um de nós, seja uma mulher livre, um padre inseguro quanto à sua vocação, um doente mental, um homossexual, um adultero, um homem amargurado, um ex-soldado desfigurado, um conjunto de homens rudes ou um conjunto de mulheres presas à sua devoção religiosa… neste mundo há – só pode haver e tem de haver! – espaço para todos. E nesta vida passageira, que devíamos encarar como um único bilhete num carrossel que, dando voltas durante alguns anos, depressa chega ao fim. Não temos tempo suficiente neste mundo para o gastar a odiar os outros. Ou, como diria Matthew Bellamy, dos Muse, “don’t waste your time or time will waste you”.

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Esta é uma história maravilhosa sobre a vida e as pequenas (grandes) insignificâncias que a tornam humana. Que fazem de nós animais racionais e emotivos. Passando-se no ano de 1926 e sendo localizada em Notre-Dame-des-Lacs, uma pequena aldeia pertencente ao Quebeque, no Canadá, Armazém Central conta-nos a história das gentes desta aldeia. A personagem principal é Marie que, após perder o seu marido, que era o responsável pelo Armazém Central – uma loja que fornecia à aldeia todo o tipo de produtos que possamos imaginar - se vê confrontada com necessidade (obrigatoriedade?) de continuar com a sua vida. Da melhor forma que puder e conseguir. Acaba, pois, por ter que trocar de vida. Mesmo que até não o quisesse fazer. A partir daqui, surgem novas personagens na aldeia que a vão alterando. Porque, afinal de contas, a vida não é algo que seja imutável, certo? Pelo contrário, estamos sempre a mudar, mesmo que não demos conta disso. As mudanças são graduais, naturalmente, mas estão sempre à acontecer. E mesmo havendo resistência à mudança, porque há um enorme medo nos humanos perante o diferente e perante tudo aquilo que coloca em causa a normalidade reinante, a verdade é que, mais cedo ou mais tarde, de forma mais ou menos voluntária, todos acabamos por o fazer.

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Embora esta seja uma série com uma dimensão considerável de 9 tomos, a meu ver é apenas uma história longa com princípio, meio e fim. Não há aqui fillers para encher, só porque sim. Não. O que aqui há é uma história contada no ritmo certo, que não é muito rápido, é certo. Mas compreende-se o porquê disto se pensarmos que esta é uma história sobre a mudança numa sociedade. E uma mudança a sério na sociedade nunca acontece de um dia para o outro, certo? Portanto, nunca penso nesta série em volumes. Nunca penso algo como: “ah, aquele tomo é espetacular e aquele é mais fraco”. Não, nada disso. Olho sempre para Armazém Central como uma história apenas. É, pois, justo, analisá-la, descrevê-la, catalogá-la e mencioná-la sempre como um todo. Por isso, compreendam que falar de um tomo ou de outro será sempre muito semelhante para mim e é por isso que transcrevo o que escrevi na análise ao volume duplo Confissões e Montreal e que é transmissível a toda a série:

"Como sintetizar a vida humana, as relações que criamos, os medos que desenvolvemos, a necessidade de aceitação, a construção de valores - e respetivo reajuste dos mesmos? E como ultrapassar o luto com que nos vamos deparando ao longo das nossas vidas? E a propensão de ultrapassar as barreiras que se vão colocando na nossa jornada? Como adocicar a existência de vidas amargas? O que é que nos diferencia verdadeiramente dos animais? Será (apenas) a inteligência ou, também, o facto de criarmos relações intensas entre nós? Qual é, então, o papel de cada pessoa numa sociedade? Armazém Central propõe-nos, senão uma resposta a todas estas questões, pelo menos, um cuidado vislumbre para que, na pele de algumas personagens fictícias inesquecíveis, possamos ver o reflexo de nós mesmos. Esta é uma rara e singular obra-prima da banda desenhada. Como que um poema em que os versos são vinhetas e os sonetos são pranchas. O coração enche-se, o nó na garganta instala-se e o resultado desta leitura é algo que, dificilmente, deixará leitores insatisfeitos. Diria que, para conseguir apreciar este portento da 9ª arte, apenas é solicitado uma coisa aos leitores: que tenham sensibilidade e maturidade. Sem isso, talvez esta banda desenhada não possa ser apreciada. Afinal, aqui não há uma ação rápida. Nem pensar! As coisas vão acontecendo de forma lenta, suave e subtil. Assim são as mudanças numa sociedade, certo?

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Não me interessa, portanto, falar mais sobre a história que nos é dada pois acho que não é nos eventos que eu aqui poderia expor que está o maior interesse da série. É nas entrelinhas. Nas mensagens sempre presentes, embora mascaradas no quotidiano, aparentemente, mundano, daquilo que é vivido por estas personagens. Como escrevi previamente, “é nas entrelinhas, naquilo que fica por dizer, que Armazém Central sobe ao Olimpo das melhores bandas desenhadas que já li. Afinal, esta é uma história magnífica, adulta, profunda, madura e que se pode comparar a uma boa telenovela ou série de tv, daquelas em que criamos uma relação profunda com as personagens. E onde o enredo é tecido de forma magistral pelos autores Loisel e Tripp. O ritmo de ação é lento e comedido, convidando o leitor a mergulhar naquilo que aqui se passa. E o que se passa é de tudo um pouco: temas como a emancipação das mulheres, o desafio dos valores impostos, as opções sexuais, os problemas de foro psicológico, a luta entre homens e mulheres, o papel da religião, a solidão, etc.”

Olhando para o desenho, encontramos uma coisa bastante rara em banda desenhada. O álbum é escrito e desenhado por Loisel e Tripp "a meias". Já algumas pessoas me têm dito que isto é uma coisa bastante comum na banda desenhada, uma vez que há um autor que esboça e outro que arte-finaliza. Discordo. E discordo porque não é bem isso que aqui temos. O que aqui temos são dois autores que, unindo esforços, criam um novo autor. Um "Régis Tripp". Ou um "Jean-Louis Loisel", como preferirem. Isto porque os belos desenhos que aqui temos não são bem o desenho tipo de Loisel (embora o seu estilo se faça notar) nem são bem o desenho tipo de Tripp (embora, também neste caso, o seu estilo se faça notar). Portanto, há toda uma simbiose nas ilustrações dos autores que nos dá algo fresco, belo e único e envolto em muitas camadas gráficas que dão profundidade aos desenhos.

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
"O resultado é uma ilustração bastante detalhada, embora muito “riscada”, numa base de esquisso, que acentua as sombras de forma muito demarcada e rabiscada, conseguindo obter uma aura muito artística. E a este processo magnífico e cuidado de ilustração ainda se juntam umas cores suaves [da autoria de François Lapierre] que atenuam a força das sombras dos desenhos. É um estilo de ilustração que serve perfeitamente o tom humanizante e dramático das situações que habitam esta narrativa. O universo rural está magnificamente retratado. O estilo de desenho, típico na arte de Loisel, acentua as feições da cara, oferecendo-lhes um aspeto algo caricatural, mas sério no trato. Como se fosse um próprio mundo, extraído da mente dos autores. A forma como as emoções das personagens são tratadas é verdadeiramente excecional. Se um olhar diz muitas coisas, os olhares destas personagens dizem-nos mil coisas e, muitas vezes, um simples silêncio está repleto de muitas nuances e significados. E isso só é conseguido quando a arte da ilustração se transcende."

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Quanto à edição, a Arte de Autor fez um belo trabalho em toda a série. As capas são duras e com uma bela textura aveludada, tão suava ao toque. Bom papel, boa encadernação e boa impressão. Tudo bem feito. Vou ser sincero… quando a obra é excecional, como é o caso, mesmo que fosse impressa em papel de mercearia e em capa mole, eu já ficaria satisfeito. Mas, como uma cereja no topo do bolo, a edição da Arte de Autor para este Armazém Central está muito bem conseguida. 

Bem, talvez eu desejasse que a obra tivesse sido lançada em três volumes que reunissem os 9 tomos. Mas também compreendo que houve alguns riscos com esta coleção. A editora viu-se forçada a começar a publicar a série a partir do quarto e quinto volume (porque os primeiros três volumes já haviam sido publicados há uns anos pela ASA, relembro) e isso foi a forma conseguida para uma aposta algo arriscada. Felizmente, é com prazer que vejo que a série está a vender bem. 

Ainda falando na edição, apraz-me ver que, tratando-se de 4 álbuns duplos (mais o primeiro) que, logicamente, havia duas hipóteses para cada uma dessas quatro capas. E, felizmente, a editora (quase)  sempre escolheu a melhor capa. A capa do segundo volume é melhor do que a do terceiro e foi essa a escolhida; a capa do sexto volume é melhor do que a capa do sétimo volume e foi essa a escolhida; e a capa do nono volume é melhor do que a capa do oitavo volume e foi essa a escolhida. Bem, só mesmo a capa do quinto volume, Charleston, é, quanto a mim, melhor do que a capa do quarto volume, Confissões. Bem, mas isto sou eu a ser picuinhas e a emitir uma opinião meramente subjetiva. 

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Finalmente, tenho que dizer ainda que o último livro da série, As Mulheres e Notre-Dame-des-Lacs é complementado, no final, por um álbum de fotografias que sintetiza alguns dos momentos vividos ao longo da história e que, para além disso, ainda nos dá fotografias legendadas de eventos futuros que acontecem após o final do álbum! Mas que ideia tremenda dos autores e que bom tacto da Arte de Autor em ter incluído este importantíssimo extra, que vale quase como se houvesse um 10º volume da obra! Admito que me emocionei a ler este álbum de fotografias.

Voltando ao parágrafo inaugural desta análise, deixem-me ainda dizer que é com grande satisfação que vejo que duas das três séries que eu mais lamentei por não terem sido integralmente publicadas em Portugal, num dos primeiros artigos que fiz no Vinheta 2020, se encontram finalmente publicadas! Falo de Peter Pan, também de Loisel, que no ano passado foi integralmente publicada pela ASA por cá, e deste Armazém Central que agora também está integralmente publicada por cá. Dos meus três desejos, apenas falta a publicação integral da fantástica série Sambre, de Yslaire. Quem se chega à frente?

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor
Enfim, o meu texto já vai longo, portanto deixem-me concluir desta forma: que mais posso dizer sobre esta série? É autêntica poesia. Saibamos nós termos a sensibilidade, experiência de vida e maturidade para poder absorver essa poesia. “Estamos perante uma série maravilhosa, uma autêntica carta de amor à sensibilidade de cada um de nós e que merece ser (re)conhecida por mais leitores de (boa) banda desenhada. Sendo magnífica nas ilustrações, no argumento e nas questões que levanta, é uma obra fantástica que (também) nos ensina a ser mais humanos, tolerantes e a saber aproveitar e guardar as coisas boas da vida. E de quantas bandas desenhadas podemos dizer isso, afinal?

É uma série perfeita. Perfeita na sua feitura, perfeita nos seus intentos narrativos, perfeita na sua mensagem, perfeita nas suas personagens que todos parecemos conhecer sem, no entanto, conhecermos. Perfeita no seu todo, portanto. Uma série que sempre terá um lugar de honra na minha coleção. Tenha eu 38, 48, 58, 68, 78 ou a idade a que conseguir chegar nesta vida. Mudou a minha vida para melhor. Obrigado, Loisel. Obrigado, Tripp. E obrigado à Arte de Autor, nomeadamente à editora Vanda Rodrigues, por ter publicado na íntegra esta obra-prima da banda desenhada mundial.


NOTA FINAL (1/10):
10.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens dos álbuns. www.instagram.com/vinheta_2020



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Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor

Fichas técnicas
Armazém Central #1 - Marie
Autores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 80, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 227 x 302 mm
Lançamento: Março de 2021

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Armazém Central #2 e #3 - Serge | Os Homens
Autores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 227 x 302 mm
Lançamento: Julho de 2021

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor

Armazém Central #4 e #5 - Confissões | Montreal
Autores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2020

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor

Armazém Central #6 e #7 - Erneste Latulippe | Charleston
Autores: Loisel e Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 227 x 302 mm
Lançamento: Setembro de 2021

Armazém Central – Série Completa, de Régis Loisel e Jean-Louis Tripp - Arte de Autor

Armazém Central #8 e #9 – As Mulheres | Notre-Dame-des-Lacs
Autores: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp
Editora: Arte de Autor
Páginas: 194, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 227 x 302 mm
Lançamento: Maio de 2022