sexta-feira, 11 de julho de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Março de 2025 para o Vinheta 2020?


Continuando o meu atraso na nomeação do Livro do Mês, para cada um dos meses de 2025 que já findaram, hoje trago-vos aquela que, a meu ver, foi a melhor BD do mês de Março editada em Portugal.

Relembro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

É, na minha opinião, a obra que vos apresento mais abaixo.

Sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Março de 2025:

Análise: O Vento nas Areias - Edição Integral

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix

A editora Arte de Autor lançou recentemente uma edição integral da série O Vento nas Areias, de Michel Plessix. Este lançamento segue no seguimento do livro O Vento nos Salgueiros que a mesma editora chegou a editar no ano passado e que acabou até por vencer o VINHETA D'OURO 2024 para Melhor Obra Infanto-Juvenil. Se O Vento nos Salgueiros é uma obra constituída por 4 tomos e que adapta para banda desenhada a obra homónima de Kenneth Grahame, este O Vento nas Areias, reúne os 5 tomos da edição original e é uma continuação da primeira história.

Continuação essa que é verdadeiramente encantadora e que, desta vez, é guiada unicamente pela própria imaginação de Michel Plessix, embora se mantenha fiel ao espírito de Kenneth Grahame. É, pois, um livro que consegue manter o charme, humor e a inocência da obra original, ao mesmo tempo que apresenta uma nova e exótica paisagem narrativa: o Magrebe que, com a sua luz quente e os mercados coloridos, surge como palco de uma viagem inesperada e transformadora para as personagens que conhecemos tão bem.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
O trio protagonista - o impulsivo Sapo, o ponderado Rato e a amável e comilona Toupeira - continua a apresentar a mesma dinâmica afetiva e cativante. Plessix não tenta reinventar estas figuras, mas antes colocá-las em novos desafios, respeitando os seus traços essenciais. Assim, o Sapo continua a ser a figura caprichosa do entusiasmo irrefletido e motor da aventura que nos faz (sor)rir várias vezes; enquanto o Rato e a Toupeira representam o bom senso e a amizade leal. E ainda há espaço para o aparecimento de novas personagens carismáticas, em particular a de Corto Maltese sob a forma de um rato. A deslocação para o Oriente funciona como uma metáfora do crescimento, da descoberta e do confronto com o inesperado. Se os mais céticos poderiam torcer o nariz a esta ideia de transportar as personagens para um outro cenário, posso assegurar-vos que essa transição é fluida e refletida.

A narrativa pode aparentar ser simples à superfície, como convém a um livro com raízes na literatura infantil, mas a verdade é que oculta uma grande densidade simbólica, possivelmente apenas apreendida por um público mais maduro. É para crianças, sim, mas os jovens e, especialmente, os adultos encontrão significados mais profundos nesta leitura, pois esta viagem não é apenas geográfica, mas interior: cada personagem confronta-se com os seus limites, as suas ilusões e as suas forças. É este aspeto que aproxima este O Vento nas Areias de obras como O Principezinho, de Antoine Saint-Exupéry, onde a aventura é simultaneamente lúdica e filosófica, acessível à infância e ressonante na maturidade. A leitura da obra em diferentes fases da vida traz, por isso, experiências distintas, e nisso reside grande parte da sua magia. Enquanto crianças, seguimos a aventura com entusiasmo e curiosidade; em adultos, revemos nessa mesma aventura reflexões sobre a amizade, a busca pelo sentido da vida e/ou o desejo por algo maior. Esta é, sem dúvida, uma das maiores virtudes do livro: a sua intemporalidade e capacidade de tocar leitores de todas as idades.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
A ligação emocional do leitor com a história é intensificada pelo tom nostálgico e sonhador da narrativa. Há algo de profundamente reconfortante em reencontrar estas personagens numa nova aventura, e, ao mesmo tempo, sentir que elas envelhecem connosco. O livro evoca essa infância idealizada em que os perigos eram enfrentados com coragem e as amizades eram inabaláveis. É um tributo à força do espírito aventureiro, mesmo na idade adulta.

Plessix demonstra também uma grande sensibilidade na forma como lida com a memória da obra original. Não se trata de uma continuação forçada ou de uma tentativa de capitalizar uma "marca" conhecida. Pelo contrário, O Vento nas Areias é uma carta de amor à literatura de Grahame, uma extensão natural e orgânica do seu universo, que preserva a sua alma e a enriquece com novas experiências. Sou-vos sincero: embora goste muito do primeiro livro de Plessix, ainda gostei mais deste! E ressalvo que as minhas expectativas até estavam altas - o que, por vezes, é um ponto contra e não um ponto a favor.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
Além disso, parece-me que a própria escolha do Magrebe como cenário que parece extraído das Mil e Uma Noites, não é aleatório, mas acaba por funcionar a favor das personagens. É que a mudança de cenário e de cultura consegue funcionar como estímulo à imaginação e à introspeção. O oriente é espaço de um certo maravilhamento para os ocidentais, mas também de algum "estranhamento", o que acaba por ser ideal para que os nossos heróis saiam da sua zona de conforto e se redescubram. 

Se a história é bonita e gratificante, os desenhos que compõem este livro são maravilhosos! E também eles cumprem bem a dupla função de, por um lado, serem convidativos para um público mais jovem e, por outro lado, serem perfeitos para fazer os adultos viajar à sua própria infância. 

O traço de Michel Plessix é, como já era na adaptação de O Vento nos Salgueiros, absolutamente magistral! Os detalhes minuciosos nas expressões das personagens conferem-lhes uma vivacidade rara. Mesmo tratando-se de animais antropomorfizados, sentimos neles uma humanidade plena. Além disso, os cenários do Magrebe são pintados com cores quentes e bastante luz, o que ajuda a transportar o leitor para ambientes cheios de vida, exotismo e poesia.

O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor
Também a própria planificação da obra permite uma fluidez narrativa muito eficaz. As vinhetas são variadas em forma e dimensão, o que confere dinamismo às páginas e uma leitura visual muito rica. Não tenho dúvidas de que a composição de cada prancha foi trabalhada com um cuidado que revela o amor que o autor, infelizmente já falecido, tinha pela arte sequencial.

A edição da Arte de Autor é muito bela e bem conseguida, também. O livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz e com aquela textura aveludada, suave ao toque, com que a editora tem premiado outras das suas belas edições. Também capa é bem mais bonita e, acredito, consensual do que a de O Vento nos Salgueiros. Além disso, o papel utilizado, bem como a qualidade da impressão e da encadernação, é muito bom. Acaba por ser uma edição cheia de dignidade e apetecível para colecionadores de banda desenhada.

Em suma, O Vento nas Areias é uma homenagem sentida e sofisticada a um clássico intemporal, enriquecida pelo talento gráfico e narrativo de Michel Plessix. É uma obra que se recomenda não apenas como continuação, mas como uma obra autónoma. Um livro para ser relido, saboreado e guardado com carinho, como se guarda uma memória feliz da infância ou uma fotografia de um tempo mais leve e sonhador. Quer sejamos crianças a lembrar o dia de ontem ou adultos nostálgicos com uma infância feliz e distante que não deixámos morrer.


NOTA FINAL (1/10):
9.4


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O Vento nas Areias - Edição Integral, de Michel Plessix - Arte de Autor

Ficha técnica
O Vento nas Areias - Edição Integral
Autor: Michel Plessix
Editora: Arte de Autor
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 236 x 285 mm
Lançamento: Junho de 2025

Análise: Slava #1 - Depois da Queda

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont

O ano 2025 tem sido dos melhores anos da editora ASA no que à publicação de banda desenhada de qualidade superior diz respeito. São vários os bons exemplos que podemos encontrar no catálogo recente da editora portuguesa. Este Slava, da autoria de Pierre-Henry Gomont, é apenas mais um desses bons exemplos.

Slava é uma mini-série com três volumes, lançados no seu mercado nativo entre 2022 e 2024, que nos transporta para a Rússia da década de 1990, num período turbulento logo após o colapso da URSS. Foi uma época em que a utopia comunista, antes dominante, tinha-se então tornado mais num conceito teórico, alimentado por um canto débil propagandista, do que em algo que pudesse ter um real reflexo palpável na sociedade de então.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
E é com esta moldura histórico-política, que Pierre-Henry Gomont - de quem a G. Floy Studio já por cá havia editado o muito bom Afirma Pereira - nos apresenta personagens envoltas por um cenário de decadência e desilusão. O país encontra-se à deriva, tal como muitos dos seus cidadãos que não passam de sobreviventes de um império desfeito.

A história acompanha Slava, um jovem carismático, artista plástico por vocação, que tenta encontrar o seu lugar neste novo mundo que ainda não sabe como ressurgir. Ao seu lado está Dimitri Lavrine, um velho amigo com ambições duvidosas, traficante sem escrúpulos e oportunista nato. Juntos, envolvem-se numa atividade obscura: resgatar e vender velharias soviéticas a colecionadores ocidentais que veem na antiga URSS um exótico souvenir de um regime derrotado.

O contraste entre Slava e Dimitri é uma das forças do livro. Slava ainda acredita em algum tipo de idealismo perdido, enquanto Dimitri abraça o cinismo da nova ordem. Essa tensão entre passado e presente, utopia e capitalismo, nostalgia e sobrevivência, está no cerne da narrativa. E é precisamente essa dualidade que dá espessura ao enredo. Além destas duas personagens, junta-se ao enredo a personagem de Nina, uma bela mulher por quem Slava não consegue esconder uma forte atração. É, aliás, Nina quem salva Slava e Lavrine de uma morte certa, quando um dos seus negócios não corre da maneira desejada. E são esses negócios - ou a ideia de uma boa negociata - que fará com que a trama se vá adensando.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Tenho que dizer que, por vezes, o enredo me pareceu um pouco reticente, sem saber bem para onde ir, onde nos são dados alguns eventos avulsos, aparentemente pouco relevantes para a construção da narrativa principal ou das personagens. Ao contrário de certos livros que me fazem mergulhar neles até que termine a sua leitura, este Slava fez o oposto: por vezes vi-me forçado a fazer algumas pausas. Não pelo facto de o tema ser demasiadamente complexo ou desinteressante, mas porque a narrativa é algo caótica, com um ritmo um pouco ao sabor da corrente, que ora prende o leitor, ora o distrai.

Já o desenho de Gomont é um espetáculo à parte. Com um traço nervoso e rápido, mas incrivelmente elegante, remete, com as devidas distâncias, para o estilo de Christophe Blain, sobretudo na expressividade gestual e nas composições ligeiramente deformadas, que servem para acentuar o tom emocional das cenas. É um traço - nunca estático, sempre em movimento - que vibra com a energia das personagens e dos lugares.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Além disso, as cores representam aqui um papel fundamental, para que os desenhos da obra, incluindo os das suas belas capas, seja tão apelativo. É sobretudo o uso da cor que torna esta obra visualmente marcante. As tonalidades carregadas, os vermelhos ferrugem, os azuis baços e os amarelos secos conferem à narrativa uma densidade simbólica muito eficaz. As cores ajudam a situar-nos na decadência, na poeira dos tempos e no clima severo da gélida paisagem russa. Não são, por isso, cores meramente decorativas, acabando por ter uma função narrativa e reforçando emoções, atmosferas e contrastes ideológicos.

Apesar da qualidade geral da obra, mantenho alguma reserva em relação ao entusiasmo generalizado que tenho visto à sua volta. Sem dúvida, Slava #1 - Depois da Queda é bom e tem grande potencial, mas não creio que, por agora, se justifique qualquer histeria. Esta é apenas a primeira entrada de uma série de três volumes e, como tal, joga ainda com muitas cartas escondidas. Introduz personagens interessantes, sim, mas nem todas são bem desenvolvidas neste primeiro tomo. Surgem-nos várias pontas soltas que, bem tratadas, poderão fazer-nos estar diante de uma belíssima série. Mas, mal tratadas, poderão enfraquecer a obra.

Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa
Há, inclusive, certas cenas que parecem "fillers", isto é, momentos inseridos mais para dar cor ou densidade ao mundo do que para fazer a narrativa avançar de forma significativa. Isso não é necessariamente um problema, mas cria um ligeiro desequilíbrio estrutural, especialmente quando se nota que há muitos elementos deixados em suspenso.

Ainda assim, os temas lançados são promissores: o peso do passado, a crise identitária de uma geração que cresceu sob o comunismo e acordou num capitalismo selvagem, e a procura de algum sentido num mundo em ruínas. Slava é um protagonista suficientemente forte para conduzir estas questões, que podem ser muito bem exploradas nos próximos volumes.

A ambientação que nos é dada por Gomont, em que as cidades são cinzentas e plenas de ruínas monumentais e paisagens amplas, mas desoladas, reforça o sentimento constante de uma sociedade suspensa entre dois tempos. A Rússia retratada por Gomont surge-nos, pois, como um quase estado de espírito coletivo de luto, de adaptação forçada, de esperanças partidas. Nesse sentido, a obra é - ou poderá vir a ser, aguardemos pelo fim da mesma - mais do que uma simples narrativa pós-soviética, uma autêntica meditação sobre o fim de ciclos.

A edição da ASA é bem conseguida. O livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior - que casa perfeitamente com o tipo de desenho de Pierre-Henry Gomont - e boa encadernação e impressão. No início do livro, há um texto introdutório, muito interessante, do próprio autor.

Em suma, este primeiro volume do tríptico Slava é uma obra bastante apelativa em termos visuais, com uma história que começa bem, mas que ainda caminha sobre terreno instável. Pode tornar-se uma série memorável, caso os volumes seguintes desenvolvam o que aqui foi apenas sugerido. Por enquanto, é uma leitura forte e envolvente, com um pé no passado, outro no futuro e muitos dilemas no presente. Estou atento, e espero que Gomont cumpra os bons indícios que este primeiro volume acalenta.


NOTA FINAL (1/10):
8.6


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Slava #1 - Depois da Queda, de Pierre-Henry Gomont - ASA - LeYa

Ficha técnica
Slava #1 - Depois da Queda
Autor: Pierre-Henry Gomont
Editora: ASA
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 297 x 244 mm
Lançamento: Maio de 2025

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Análise: A Bela Casa do Lago #1

A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno - Devir

A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno - Devir
A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno

Entre as várias obras lançadas pela Devir, desde que a editora passou a ter os direitos de publicação para a DC Comics em Portugal, foi recentemente editado este A Bela Casa do Lago, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno. Este é o primeiro de dois volumes que compõem um ciclo "fechado" da série, embora haja um segundo ciclo que pega na história como a mesma é deixada no final do segundo volume.

A Bela Casa do Lago apresenta-se como uma narrativa misteriosa e inquietante, com um ponto de partida muito interessante. A história centra-se num grupo de amigos que, convidados por um misterioso anfitrião para passar férias numa casa de luxo isolada à beira de um lago, veem-se rapidamente envolvidos numa situação insólita e aterradora. Inicialmente, tudo parece ser uma típica reunião de velhos conhecidos, mas rapidamente se transforma num jogo psicológico marcado por revelações perturbadoras e um clima de desconfiança crescente, que levanta muitas dúvidas e poucas respostas. A premissa pode até não ser inteiramente original, pois este tipo de histórias de isolamento e catástrofes à escala global já são terreno conhecido, mas é excetuada por James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno com um tom de thriller psicológico que agarra o leitor desde o primeiro momento. Admito que rapidamente fiquei cativado.

A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno - Devir
O argumentista Tynion IV apresenta-nos uma série de perguntas que mantêm o mistério vivo. Quem é realmente este anfitrião? O que está a acontecer no mundo lá fora? Qual o verdadeiro propósito daquela reunião? Este jogo de adivinhação constante dá ritmo à narrativa e garante um envolvimento emocional imediato com as personagens cujo passado nos vai sendo desvendado através do recurso a flashbacks. Contudo, é também aqui que surgem as minhas primeiras dúvidas em relação à obra... é que apesar de existirem na mesma momentos muito fortes, com cliffhangers eficazes e cenas visualmente poderosas, a história por vezes oscila em termos de coerência e fluidez. 

Com efeito, há uma certa dualidade na forma como a narrativa é conduzida. Em alguns momentos, o enredo apresenta desenvolvimentos ousados e criativos, gerando verdadeiro impacto emocional. Noutras ocasiões, no entanto, parece recorrer a soluções algo forçadas, que soam artificiais e menos inspiradas. Já para não falar que certas atitudes de algumas personagens seriam pouco verosímeis numa situação como aquela que nos é dada. Esta oscilação dificulta uma leitura completamente fluida, criando uma sensação de que o livro ainda está a encontrar o seu tom ideal. Isso não retira mérito à obra, mas coloca-a numa posição ambígua: ainda pode revelar-se uma obra-prima… ou perder-se na sua própria ambição. Espero que aconteça a primeira opção.

A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno - Devir
Mas, enfim, por estes motivos que aponto, acaba por ser difícil e prematuro formular uma opinião definitiva sobre A Bela Casa do Lago. Há muito potencial, sim, mas também há o risco de alguma dispersão em termos de enredo. E só a leitura do próximo volume da série poderá resolver as pontas soltas remanescentes da leitura deste primeiro número.

No que toca à componente visual, o trabalho de Álvaro Martínez Bueno é, sem dúvida, um dos maiores trunfos da obra. Os seus desenhos são evocativos, ricos em detalhe, e dotados de uma atmosfera muito própria. Há um equilíbrio entre modernidade e um certo classicismo no traço, o que ajuda a acentuar tanto os momentos de introspeção como os de tensão. O estilo gráfico é muito personalizado e ousado, com composições que potenciam a imersão no espaço narrativo da casa, do lago, e do mundo suspenso em que tudo acontece.

A forma como o "terror" é representado visualmente é também digna de nota. Não se trata de um terror explícito ou gratuito, mas antes de um desconforto subtil e crescente, que é construído com grande sensibilidade artística. É um terror mais psicológico do que visual, mas que se torna marcante justamente por isso - e fica na memória do leitor.

A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno - Devir
Também a planificação, bastante inventiva e original, é um ponto alto da obra. É frequente que a ordem das vinhetas ou a sua disposição nos surpreendam ao longo da leitura. 

A paleta de cores, a cargo de Jordi Bellaire, complementa o trabalho gráfico com grande eficácia. As cores são bem escolhidas, variando entre tons suaves e tons mais sombrios conforme o ambiente o exige. Há uma lógica cromática que contribui para a ambientação e para o ritmo da narrativa, ajudando a enfatizar contrastes emocionais. 

Contudo, nem tudo é perfeito do ponto de vista visual. Um dos problemas que senti durante a leitura foi a dificuldade em identificar, de forma imediata, algumas das personagens. Por vezes, os rostos ou os traços distintivos não são suficientemente diferenciados, o que leva a alguma confusão nas interações. Isso pode comprometer um pouco a fluidez da leitura, já que se perde tempo a tentar perceber "quem é quem" em determinadas cenas - e isso afeta o ritmo, principalmente numa história que depende tanto das relações entre os protagonistas.

Em termos de edição, a Devir faz aqui um bom trabalho com o livro a apresentar capa dura baça, papel brilhante no interior, e uma boa encadernação e impressão.

No seu conjunto, A Bela Casa do Lago #1 é uma obra com muito potencial, tanto narrativo quanto visual. O universo criado por Tynion IV é intrigante e oferece muito espaço para crescer, mas este volume inicial ainda não permite uma avaliação definitiva. As fundações estão lançadas e há momentos verdadeiramente impactantes, mas também algumas fragilidades que podem - ou não - ser ultrapassadas e/ou corrigidas no volume seguinte. Neste momento, é uma leitura recomendável, mas com a expectativa suspensa, por isso, resta-nos ver para onde nos leva esta viagem. Se a promessa inicial for cumprida, poderemos estar perante uma obra relevante e memorável no panorama da BD contemporânea. Se, por outro lado, a história se perder nas suas próprias complexidades ou deixar de sustentar a tensão que construiu, poderá acabar por ser apenas mais uma boa ideia mal explorada. Por agora, ficamos com um thriller intrigante, visualmente deslumbrante, e à espera de respostas.


NOTA FINAL (1/10):
7.8



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A Bela Casa do Lago #1, de James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno - Devir

Ficha técnica
A Bela Casa do Lago #1
Autores: James Tynion IV e Álvaro Martínez Bueno
Editora: Devir
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Abril de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Fevereiro de 2025 para o Vinheta 2020?



Hoje regresso à rubrica "BD do Mês" trazendo-vos a obra que, quanto a mim, foi a melhor BD do mês de Fevereiro.

Relembro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

É, na minha opinião, a obra que vos apresento mais abaixo.

Curiosamente, quer o livro estrangeiro, quer o nível nacional, são histórias curtas, sem o recurso a legendagem/balões.

Sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Fevereiro de 2025:

Análise: Não Eras Tu Quem Eu Esperava

Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé - ASA - LeYa

Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé - ASA - LeYa
Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé

Se há bandas desenhadas que são bons convites para trazer para o universo da 9ª arte pessoas que não têm o hábito de ler BD, este Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé, recentemente publicado pela ASA, é um ótimo exemplo.

Esta é uma obra autobiográfica que conta a história do nascimento da segunda filha de Fabien Toulmé, Julia, diagnosticada com trissomia 21 (síndrome de Down). O livro começa com o autor a narrar o momento da gravidez da esposa, os exames médicos, a ansiedade e a expectativa da chegada de um filho saudável. Essa expectativa será comum a todos os pais, diria. No entanto, após o parto, Fabien é confrontado com uma realidade inesperada: a filha nasceu com a condição genética da síndrome de Down, que não foi detectada durante a gestação. É a partir deste ponto que o livro se desenrola, mergulhando o leitor num relato íntimo e sincero sobre a aceitação, o medo e o amor entre pai e filha.

Desde as primeiras páginas, torna-se evidente que Toulmé não pretende adoçar a sua experiência perante o leitor. Longe de oferecer um retrato idealizado da vida com uma criança com necessidades especiais, o autor opta por uma abordagem honesta e, por vezes, brutal. Este posicionamento é, quanto a mim, o que torna a obra tão poderosa: ao invés de criar um conto inspirador repleto de superações milagrosas, Fabien tem a coragem suficiente de partilhar as suas dúvidas, as suas revoltas e as suas falhas com uma franqueza desarmante.

O livro é, pois, especialmente belo, não porque camufla a dor, mas porque a reconhece e lhe dá espaço. O autor descreve momentos em que se sente distante da filha, em que se recusa a aceitá-la, e até em que se envergonha por não conseguir amá-la de imediato. Lembro-me que, enquanto lia o livro, o momento em que o autor nos revela que não tinha coragem de dar banho à sua filha me deixou especialmente impactado. Estes sentimentos, que poderiam ser condenáveis se não fossem partilhados com tamanha transparência, revelam a complexidade da experiência da parentalidade perante uma situação inesperada e transformadora. É possível que um público menos vivido ou mais em linha com a (infeliz) nova mentalidade do "politicamente correto" até possa ficar desavindo com a obra. Mas, creio, isso só acontecerá a quem ler o livro à superfície, sem a maturidade que a verdadeira apreensão do mesmo exige.

Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé - ASA - LeYa
Ao longo da narrativa, Toulmé revela-se vulnerável. E isso só dá força inspiradora à própria obra. Lembro-me que tive o privilégio de, na passada Feira do Livro de Lisboa, ter participado no painel de apresentação do livro, onde o próprio autor esteve presente, e Fabien Toulmé ter abordado esta questão dizendo que esta opção de um retrato real, sem tentar ser um pai perfeito ou um herói, foi totalmente intencional, pois não era objetivo de Toulmé ser um exemplo idealizado, mas uma voz realista com a qual outros pais se pudessem identificar.

Essa sinceridade é, sem dúvida, um dos maiores trunfos do livro. Um pai que se vê confrontado com um diagnóstico inesperado para um(a) filho(a) que se prepara para nascer pode encontrar nesta obra um espelho das suas angústias, uma validação das emoções que talvez tenha vergonha de admitir. Fabien Toulmé oferece um caminho, não de superação fácil, mas de transformação interior. Não nega o sofrimento, mas mostra como ele pode ser atravessado com coragem e amor. E tudo isto, meus caros, não é assim tão comum de encontrar num objeto artístico, seja uma música, um filme, um quadro, um ensaio, um romance ou, claro, uma banda desenhada.

A estrutura emocional do livro é muito bem construída. O início é fortíssimo e carregado de tensão e assim que Julia nasce, sentimos a frustração e até um certo desespero por parte do autor. Mas, à medida que Toulmé vai conhecendo a filha e se aproximando dela, a narrativa vai ganhando ternura, empatia e uma calma serena. O final, tocante e comovente, mostra uma família que encontrou uma nova forma de ser feliz, diferente da que esperava, mas não menos bela. Daí que embora o título da obra seja "Não Eras Tu Quem Eu Esperava", o seu título mais completo, conforme disso somos testemunha assim que abrimos o livro, será "Não Eras Tu Quem Eu Esperava... Mas Estou Contente Por Teres Vindo".

Se todo este processo de aceitação e aproximação é o ponto alto da obra, outro aspeto relevante é a forma como o autor aborda a trissomia 21. Embora o livro não seja um tratado científico, consegue explicar de maneira acessível o que é esta condição genética, evitando, ainda assim, um tom demasiado didático. A educação do leitor surge pelas conversas com médicos e especialistas, pelos monólogos do autor e, principalmente, pela convivência com Julia, que vai-se mostrando, gradualmente, como uma criança cheia de personalidade.

As ilustrações, com um traço “cartoonesco”, contribuem para tornar a leitura leve, apesar da carga emocional. A estética simples e expressiva remeteu-me bastante, com as devidas diferenças, para o estilo de Guy Delisle, especialmente pela forma como capta as emoções nos gestos e expressões das personagens e pela utilização de uma cor dominante ao longo dos vários capítulos da obra. 

Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé - ASA - LeYa
A opção por este estilo gráfico acessível também reforça o caráter universal da história. Não estamos perante uma biografia pesada ou sombria, mas sim uma narrativa fluida, que se lê com facilidade mesmo deixando marcas profundas. A leveza visual serve de contraponto ao peso emocional, equilibrando a leitura e permitindo que o leitor prossiga sem se sentir sobrecarregado.

O livro também nos faz refletir sobre as expectativas que projetamos nos nossos filhos antes mesmo de nascerem. O título Não Eras Tu Quem Eu Esperava é profundamente simbólico, pois espelha a decepção inicial do autor que não é tanto com a filha em si, mas com a quebra de uma idealização. Com o desmoronamento de um sonho. No fundo, é uma narrativa sobre como o amor verdadeiro nasce quando deixamos de lado as idealizações e aprendemos a amar quem está realmente diante de nós.

Apesar do tom confessional e das emoções cruas, este é um livro profundamente positivo. A mensagem final é clara: o amor de um pai ou de uma mãe não nasce necessariamente no instante do parto, mas pode crescer aos poucos, superar obstáculos e florescer de forma inesperada e poderosa. 

Em termos de edição, o livro apresenta capa mole baça com badanas. No interior, o papel é bom e a encadernação e a impressão também estão bem feitas. Relembrando que no estudo feito pelo Vinheta 2020 a mais de 600 pessoas, há coisa de três anos, este livro ocupou o TOP 15 dos livros mais desejados pelos leitores portugueses, é sempre bom ver que as editoras não "dormem" e estão atentas às apetências do mercado nacional. Sim, o livro chegou-nos com mais de 10 anos de atraso, mas chegou. E isso, no fim de contas, é o mais importante.

Em suma, Fabien Toulmé oferece-nos com este Não Eras Tu Quem Eu Esperava um livro comovente e necessário. Um testemunho corajoso, que educa, emociona e provoca reflexão. É uma leitura essencial para pais, educadores e todos aqueles que acreditam que o amor, mesmo nas vezes em que não vem no formato esperado, é capaz de transformar vidas. Uma verdadeira pérola da banda desenhada e uma ótima entrada para quem não lê BD.


NOTA FINAL (1/10):
9.5



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Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé - ASA - LeYa

Ficha técnica
Não Eras Tu Quem Eu Esperava
Autor: Fabien Toulmé
Editora: ASA
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 240 x 173 mm
Lançamento: Maio de 2025

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Janeiro de 2025 para o Vinheta 2020?


Tendo andado em falta, eu sei.

De há uns meses para cá, tem-me sido difícil manter a rubrica "BD do Mês" atualizada. Simplesmente porque não tenho tido tanto tempo. 

Mas o meu compromisso para com os meus leitores e para com os editores é sério e, portanto, tentarei repor nos próximos dias esta ausência, anunciando quais os livros que considero ser a Melhor BD de cada mês de 2025.

Deixem-me relembrar que esta rubrica - que tem muito sucesso em termos de visitas aqui no blog, já agora - procura anunciar a BD que, quanto a mim, é mais "obrigatória".

Tento trazer-vos também a obra nacional cuja compra considero mais adequada em cada mês.

É claro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

É, na minha opinião, a obra que vos apresento mais abaixo.

Sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Janeiro:


As novidades de BD da Escorpião Azul para o segundo semestre de 2025!


Hoje trago-vos as novidades de banda desenhada que a editora Escorpião Azul espera publicar durante o segundo semestre de 2025!

Aviso-vos desde já que são apenas duas as bandas desenhadas que a editora decidiu, por agora, anunciar.

No entanto, posso avançar-vos que a editora está a preparar dois livros que, à semelhança do Muitos Anos a Virar Páginas, não são de banda desenhada, mas sobre banda desenhada. Coisa que aplaudo e que me faz ficar motivado para mergulhar nessas leituras.

Mas, até lá, resta-nos olhar para as novidades que a editora acaba de divulgar: uma delas marca o regresso do autor João Mascarenhas ao catálogo da Escorpião Azul - que já publicou Burpszila.

Saliente-se também a aposta da editora numa obra clássica italiana, originalmente publicada em 1978, dos autores Guido Buzzelli e Alexis Kostandi.

Sem mais demoras, são estas as duas obras em questão:

Análise: 1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne

Estava particularmente entusiasmado em ler este segundo volume do díptico 1629, dos autores Xavier Dorison e Thimothée Montaigne, que foi recentemente editado em Portugal pela Arte de Autor, por uma razão muito simples: é que adorei o primeiro volume deste épico marítimo!

Embora a minha expetativa estivesse alta e, tenho boas notícias para vos dar: este segundo volume, intitulado A Ilha Vermelha, em nada fica atrás do primeiro volume da obra. Na verdade, até é capaz de superar o primeiro tomo, pois consegue aprofundar ainda mais a tragédia e a tensão psicológica instauradas no primeiro volume. Se o início da história tinha como palco principal o navio Jakarta, baseada em factos reais, este novo volume muda radicalmente de cenário ao acompanhar os sobreviventes do naufrágio numa ilha remota no Pacífico, onde se desenrola uma luta pela sobrevivência que rapidamente se transforma numa guerra moral e espiritual. A narrativa concentra-se na degradação da ordem e na ascensão da tirania, com o personagem Jéronimus Cornélius a revelar-se um verdadeiro mestre da manipulação e do terror psicológico. A bela e perspicaz Lucrécia Hans ou o destemido Hayes até podem ser personagens impactantes, mas é Cornélius, com toda a sua grotesca maldade e maquinações, que é a grande estrela da obra.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Já o tinha dito na análise que fiz ao primeiro volume e volto a afirmá-lo: "Dorison tem o mérito de nos oferecer um daqueles vilões que, pela sua personalidade e crueldade, facilmente causa impacto no leitor. Aliás, esta capacidade do argumentista para esculpir excelentes vilões não é, de todo, uma novidade, se tivermos em conta que o autor também deu vida aos cruéis vilões de Long John Silver, O Castelo dos Animais, Undertaker ou O Terceiro Testamento."

Como tal, a história ganha um tom ainda mais sombrio e intenso, explorando os limites da condição humana quando privada de civilização. O ambiente fechado e isolado da ilha serve como uma metáfora poderosa para os conflitos internos e sociais que se instalam. Cornélius, cada vez mais maquiavélico e carismático, constrói uma teia de supostas alianças, mas carregada de medos e traições, entre os náufragos, gerando uma atmosfera sufocante. As tensões pessoais vão sendo exploradas de forma brilhante pelo argumentista Dorison, criando nesta ilha um microcosmo de desonestidade e maldade, que prende o leitor, levando-o a não conseguir desligar-se desta luta pela instauração de um poder que nos remete, inevitavelmente, para obras como O Deus das Moscas, de William Golding, adaptada recentemente para banda desenhada por Aimée de Jongh, onde a ausência de regras rapidamente dá lugar ao caos.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Há também paralelos interessantes com a série televisiva Lost, não só pela presença de náufragos numa ilha inóspita, mas sobretudo pela forma como o passado das personagens influencia o presente e como os grupos se fragmentam em torno de medos e segredos. Tal como em Lost, há um jogo psicológico em curso, um líder carismático, alianças frágeis, um mistério latente e uma sensação constante de que algo pior está sempre prestes a acontecer. Essa tensão narrativa, construída com grande eficácia por Dorison, mantém o leitor num estado de alerta permanente.

Visualmente, o trabalho de Thimothée Montaigne é de uma beleza impressionante! Os desenhos são detalhados e expressivos, com personagens de forte presença visual, marcadas tanto fisicamente como emocionalmente pelo sofrimento que atravessam. As paisagens da ilha, por sua vez, são absolutamente deslumbrantes, alternando entre o paraíso natural de cortar a respiração e o inferno psicológico e brutal em que as personagens se veem forçadas a mergulhar. As cores, ricas e bem equilibradas, aplicadas por Clara Tessier, reforçam essa dualidade, ajudando a criar contrastes visuais fortes entre momentos de aparente calma e explosões de violência.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Já agora, também a planificação das pranchas merece destaque: é dinâmica, fluida e nunca repetitiva, o que (também) contribui para a imersão do leitor na história. Cada página é cuidadosamente composta para servir o ritmo da narrativa, ora mais contemplativo, ora frenético, e Montaigne demonstra um controlo excecional sobre o espaço e o movimento das personagens. 

O que me deixou muito feliz com este álbum, é que mesmo que a narrativa já não tenha o navio Jakarta para explorar - pois quando este segundo livro arranca, o Jakarta já naufragou - o álbum consegue viver muito bem por si mesmo, continuando a demanda das personagens, sendo, pelo menos em termos de intensidade dramática, profundidade psicológica e complexidade narrativa, superior ao primeiro. É verdade que o primeiro volume serve como uma introdução sólida ao contexto histórico, às personagens principais e à tensão latente a bordo do Jakarta, mas é no segundo tomo que a história realmente ganha fôlego e densidade, com o foco do enredo a mudar do perigo externo do mar e do naufrágio para o perigo interno, ou seja, para a degradação moral dos náufragos e para a ascensão da figura tirânica de Cornélius.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Falando ainda da edição deste livro, devo dizer-vos que a mesma é belíssima. A capa não só é verdadeiramente linda, com um aspeto que nos remete para outro tempo e outro lugar, como é detentora de acabamentos nobres que são um deleite para os olhos. A capa dura apresenta uma textura suave ao toque e numerosos detalhes a dourado. É dos livros com a capa mais bonita e apelativa da minha vasta coleção, asseguro-vos! O livro apresenta papel brilhante de primeira qualidade e boa impressão e encadernação. 

Teria sido simpático se  tivesse algum caderno de conteúdo extra, com esboços de Montaigne, por exemplo, mas creio que isso também não acontece na edição original da obra. Ainda assim, é uma bela e cuidada edição.

Finalizando, é justo afirmar que, no conjunto, ambos os tomos de 1629 nos revelam uma obra que é muito mais do que uma recriação histórica e que consegue oferecer-nos uma poderosa reflexão sobre o poder, a moralidade e os instintos mais profundos e irascíveis do ser humano quando empurrado para os seus limites. A dupla formada pelos autores Dorison e Montaigne demonstra um domínio notável da linguagem da banda desenhada, presenteando-nos com uma obra que é visualmente arrebatadora e narrativamente inquietante! A não perder!


NOTA FINAL (1/10):
9.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor

Ficha técnica
1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha
Autores: Xavier Dorison e Thimothée Montaigne
Editora: Arte de Autor
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Abril de 2025

terça-feira, 8 de julho de 2025

Análise: As Águias de Roma - Livro VII

As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini - ASA - LeYa

As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini - ASA - LeYa
As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini

Depois da edição portuguesa da série As Águias de Roma ter ficado demasiado tempo em banho-maria, entre o quinto e o sexto volume da série, é de louvar que a editora ASA não tenha perdido muito tempo até ao lançamento deste Livro VII, assegurando, deste modo, que os leitores portugueses estão alinhados com a edição original da série que conta com os mesmos sete volumes.

Afinal de contas, As Águias de Roma é uma das mais impactantes séries da banda desenhada histórica europeia. 

Este Livro VII retoma a narrativa num ponto de grande tensão política e emocional, centrando-se na escalada do conflito entre Roma e as tribos germânicas. O pano de fundo mantém-se com a crescente hostilidade entre os antigos amigos e  irmãos, Marco e Armínio, cujas lealdades colidem de forma irreversível. Nesta fase do enredo, Armínio mantém em seu poder Hraban, o filho de Marco, enquanto Marco, por sua vez - e tentando alcançar algum poder de negociação - passa a ter em sua posse a mulher grávida de Armínio. Enquanto isso, o conflito militar entre a população germânica e os romanos adensa-se.  

As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini - ASA - LeYa
Neste volume, Marini aprofunda ainda mais o conflito central da saga: o embate entre dois mundos, duas culturas, duas formas de viver e governar. Armínio, dividido entre a honra romana que o criou e a liberdade do seu povo germânico, está cada vez mais decidido a cortar os laços com o Império. Já Marco, por seu turno, continua a representar o ideal romano, embora comece a revelar algumas fissuras emocionais e ideológicas. 

O enredo revela uma melhoria face ao álbum anterior, que, embora visualmente belo, parecia hesitante em termos de ritmo narrativo. Neste novo volume há uma sensação mais clara de direção, com as peças do tabuleiro a moverem-se em preparação para um confronto inevitável que, acredito, surgirá no próximo volume. No entanto, também tenho que admitir que ainda se nota uma certa tendência de Marini em retardar propositadamente(?) o desenvolvimento da história., pois embora o crescimento das tensões seja bem conduzido, sente-se que poderia haver mais acontecimentos concretos a avançar o enredo. 

Há uma sensação de que Marini está a preparar o terreno com meticulosidade, talvez até em demasia, o que pode ser interpretado como um desejo de alongar a narrativa em detrimento da ação imediata. Mesmo assim, repito, este volume melhora bastante em relação ao anterior, possivelmente o menos bom da série.

As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini - ASA - LeYa
Este Livro VII revela-se, pois, positivo e satisfatório, especialmente pela forma como o conflito entre as duas fações é intensificado. A relação entre Marco e Armínio, ganha novas camadas emocionais e políticas com este rapto da mulher de Armínio, já por mim referido. 

Uma coisa que aprecio bastante na série é que a mesma nos oferece uma certa ambiguidade moral que, aliás, sempre esteve presente na série, e que mostra que não há heróis ou vilões puros, apenas homens presos entre o dever, o amor e a ideologia. Tão depressa parecem ser Armínio e os germânicos os vilões, como parecem ser Marco e os romanos os "maus da fita". E o mesmo se sente em relação a quem parece ser herói.

No campo visual, Marini volta a provar por que razão é considerado um dos grandes mestres da banda desenhada europeia. O seu trabalho gráfico é simplesmente deslumbrante. As composições de página são dinâmicas, a paleta de cores é rica e atmosférica e o detalhe dos cenários e figurinos transporta-nos de imediato para o universo romano. Falando da questão dos detalhes, aqui e ali podemos encontrar algumas vinhetas que não são tão aprimoradas como eram nos primeiros álbuns da série. O traço e finalização dos desenhos no tempo atual da série, parecem feitos de um modo um pouco mais rápido. Mas, mesmo que isto aconteça, a beleza dos desenhos é tão grandiosa que a obra continua a ser majestosa e a permitir que para além de ser lida, também mereça ser contemplada com prazer demorado.

As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini - ASA - LeYa
As personagens continuam extremamente expressivas, com rostos e posturas que comunicam emoções complexas mesmo sem palavras. Os momentos de sensualidade - sempre presentes na obra de Marini - são desenhados com elegância e erotismo, sem nunca resvalarem para o vulgar. Da mesma forma, as cenas de batalha ou de tensão militar são intensas, cinematográficas e visualmente arrebatadoras. Também as cores são verdadeiramente bonitas, encaixando que nem uma luva nos desenhos que nos são oferecidos.

Há uma maturidade artística clara no traço de Marini, que alia a precisão histórica a um estilo pessoal muito característico. O resultado é uma obra que mantém a beleza gráfica como um dos seus trunfos mais fortes. É um daqueles livros que nos obriga a voltar páginas atrás, só para rever um enquadramento ou uma expressão desenhada com mestria.

Em termos de edição, o livro está em harmonia com os restantes álbuns da série, envergando capa dura brilhante e bom papel brilhante no interior. O trabalho de impressão e encadernação também é bom, fazendo jus à obra.

As Águias de Roma - Livro VII não é o volume mais explosivo da série, mas é uma peça importante no crescendo narrativo que Marini parece ter vindo a construir desde o início. É uma obra de transição, sim, mas também de refinamento - tanto emocional como gráfico - que prepara o palco para o desfecho inevitável do confronto entre irmãos e que confirma Marini como um dos grandes nomes da BD contemporânea. Se é que essa confirmação ainda é necessária.


NOTA FINAL (1/10):
8.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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As Águias de Roma - Livro VII, de Enrico Marini - ASA - LeYa

Ficha técnica
As Águias de Roma - Livro VII
Autor: Enrico Marini
Editora: ASA
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 317 x 239 mm
Lançamento: Abril de 2025