quarta-feira, 31 de julho de 2024

Esta sexta-feira chega-nos mais uma novela gráfica!



É já na próxima sexta-feira que nos chega a terceira Novela Gráfica da Levoir e do jornal Público!

Desta feita, estamos perante uma adaptação para banda desenhada da obra da literatura clássica, intitulada O Homem que Corrompeu Hadleyburg.

O autor da obra original é o célebre Mark Twain, enquanto que o autor da adaptação para banda desenhada é o brasileiro Wander Antunes.

Nota para o facto de este livro ter duas contracapas de cor diferente: azul e preto. Caberá ao leitor escolher aquela de que gosta mais.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora e com algumas imagens promocionais da obra.

O Homem que Corrompeu Hadleyburg, de Wander Antunes

O terceiro volume da colecção Novela Gráfica chega aos quiosques na próxima sexta-feira 2 de Agosto. A Levoir e o Público editam a adaptação a banda de desenhada da obra de Mark Twain O Homem que Corrompeu Hadleyburg, um conto sobre a moralidade e a arrogância dos indivíduos, um tema tão actual ontem como hoje.

Este livro tem duas contracapas de cor diferente, cabendo ao leitor decidir se prefere comprar o livro com contracapa preta ou se gosta mais da contracapa azul.

Wander Antunes, o autor deste volume, nasceu no Brasil em 1966.

Depois de trabalhar em publicidade e cinema, dedicou-se à banda desenhada, a sua verdadeira paixão. Artista premiado, ganhou o prémio Marlysa no Festival Internacional de Banda Desenhada de Chambéry e o prémio de melhor álbum de romance no Festi BD de Moulins.

A sua última publicação, O Homem que Corrompeu Hadleyburg, baseia-se no conto homónimo de Mark Twain, publicado em 1899. 

Na carta aberta a Mark Twain que inicia o livro, Wander Antunes explica que o que o levou a decidir adaptar este texto de Twain, em vez de outras obras bem mais populares e juvenis, como As Aventuras de Tom Sawyer, foi a dimensão de crítica social e análise comportamental, que se mantém completamente actual, bem patente nos trabalhos finais de Twain.
Hadleyburg é uma cidade com reputação de ser a mais honesta da América. Esta cidade orgulha-se tanto da sua reputação, que essa afirmação está escrita numa placa à entrada da cidade. Mas a cidade mais honesta da América é tentada por um misterioso desconhecido que vem corrigir um erro que foi cometido pelos seus habitantes: demasiado egoístas, esqueceram as regras básicas da hospitalidade. A sua estratégia é, portanto, atacar onde mais lhes custa: destruir a sua reputação de probidade...

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Ficha técnica
O Homem que Corrompeu Hadleyburg
Autor: Wander Antunes
Adaptado a partir da obra original de: Mark Twain
Editora: Levoir
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270 mm
PVP: 13,90€

Análise: Dias de Areia

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa
Dias de Areia, de Aimée de Jongh

Dias de Areia era um livro que há muito eu queria ler. Sendo finalista para variados prémios aquando o seu lançamento, em 2021, e tendo um aspeto que, julgando pelas imagens promocionais que pude ver na web ou pelas vezes em que folheei a edição estrangeira em livrarias, era muito do meu agrado, posso dizer que estava ansioso para o ler na edição portuguesa.

Ora, isto de ter fortes expectativas perante uma obra pode ser problemático, pois não são raras as vezes em que tanto esperamos por algo, tendo forte expectativa, que, quando esse algo nos chega às mãos, fica aquém daquilo que esperávamos. 

Porém, Dias de Areia, da autora holandesa Aimée de Jongh, lançado há umas semanas pela editora ASA, não será disso exemplo. Dias de Areia mais que corresponde às minhas (altas) expectativas e é mais um dos livros de 2024 que, já agora, se apresenta como um dos anos mais profícuos de sempre, no que ao lançamento de banda desenhada de qualidade superior diz respeito.

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa
Esta é uma obra muito forte a todos os níveis, pois combina uma narrativa histórica interessante - sobre um tema de que não se fala muito - com uma forte componente visual, enquanto nos dá conteúdo para reflexão. Não é apenas um livro histórico bem desenhado, é (bastante) mais do que isso!

A história passa-se durante a Grande Depressão nos Estados Unidos, mais especificamente durante o "Dust Bowl", um período de tempestades de areia devastadoras que atingiram o centro-sul dos EUA na década de 1930. Este cenário histórico é crucial para entender o ambiente e as dificuldades enfrentadas pelas personagens.

O protagonista, John Clark, é um jovem fotógrafo contratado pela Farm Security Administration para documentar as condições de vida dos agricultores afetados pelo Dust Bowl. A missão de John é capturar imagens que possam sensibilizar o público e o governo sobre a gravidade da situação. De resto, convém dizer, o ato de fazer reportagens fotográficas para demonstrar uma realidade vivida no resto do país, era prática comum durante este período da história dos Estados Unidos da América.

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa
E quando chega ao Oklahoma, Clark depara-se com uma região em que a terra, de tanto explorada pela agricultura, encontra-se insípida e morta, dando lugar a pó. Pó esse que, sempre que há rajadas de vento mais fortes, se transforma em tempestade de areia. Ou, melhor dizendo, em tempestades de pó. Este, impregna-se na roupa, nas casas e até nos pulmões das gentes locais que vão sucumbido a este desastre ambiental onde a miséria impera por tudo o que é lado.

À medida que o protagonista avança na sua demanda, começa a sentir que as fotografias que tira, por melhores que sejam os seus enquadramentos ou o seu jogo de luz e sombra, talvez não consigam captar a real essência do que ali se vive. E conforme vai tomando contacto com as gentes locais do Oklahoma, de quem fica amigo, John Clark acaba por confrontar as suas próprias percepções e preconceitos, e o seu papel enquanto observador e narrador da realidade.

A resiliência humana é, pois, um tema chave da obra, que explora como as pessoas enfrentam adversidades extremas e a força do espírito humano em tempos de crise. Mas como esta é uma obra profunda, não ficamos por aí: a autora Aimée de Jongh vai mais longe e, numa segunda linha, também explora o poder que a fotografia pode ter para a sensibilização e mudança social, enquanto aborda igualmente a ética no trabalho de um fotógrafo. Será justo que, para sensibilizar os outros, o fotógrafo interaja com a realidade para sublinhar más condições de vida? Numa altura em que vemos os media a explorar cada vez mais cada uma das "notícias" que nos chegam diariamente, importa saber: qual o limite entre a importância social do jornalismo para informar e educar as pessoas e, ao mesmo tempo, permanecer fiel aos factos recolhidos de forma neutra? É, sequer, possível que tenhamos jornalismo verdadeiramente neutro e imparcial?

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa
Com o desenvolvimento da trama, John Clark começa a entender a profundidade do sofrimento humano, enquanto cria empatia com as personagens que habitam à sua volta. Isto também lhe permite encontrar respostas para aquilo que ele mesmo quer ser, já que é mais uma daquelas pessoas que, como tantas outras, seguiu os passos profissionais do seu pai sem perceber se era mesmo essa a caminhada que queria percorrer.

Para além de tudo o que já referi, ainda há um outro nível subentendido - mas não "escarrapachado" na cara do leitor - que é a dimensão de preocupação ambiental. O que o livro demonstra é que o Dust Bowl só existiu por uma total libertinagem na forma como a agricultura explorou, sem rei nem roque, as terras do centro dos Estados Unidos. Se as mesmas tivessem sido exploradas com conta e medida, provavelmente o Dust Bowl nunca teria acontecido. E isso dá-nos, lá está, (mais) uma reflexão sobre a forma como é importante tomar decisões de forma consciente e responsável sempre que a humanidade explora os recursos naturais do planeta.

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa
Se a história é bela, bem documentada e bem construída, os desenhos de Aimée de Jongh também são verdadeiramente bonitos! O seu estilo de ilustração é moderno e acessível para muitos gostos, apresentando um traço semi-caricatural, de aspeto muito franco-belga. As personagens exibem um código de expressividade muito bem desenvolvido. A própria conceção dos cenários também é verdadeiramente bela.

Sobre esse ponto, e tendo em conta que estamos a falar de uma obra que retrata as tempestades de areia, era mandatório que a ilustração desse fenómeno fosse bem conseguida. E, também aí, Jongh revela-se exímia, fazendo com que o leitor se sinta mesmo dentro das tempestades de areia, experienciando todo o sufoco, medo e apreensão que este tipo de fenómeno certamente gera a quem se vê afetado por ele.

As cores também contribuem para que as ilustrações de Jongh ganhem um aspeto verossímil que nos parece transportar para aquela região central e árida dos Estados Unidos. A autora faz-se ainda valer de uma planificação airosa e dinâmica, que torna a narrativa fluída e não repetitiva e onde as imagens têm espaço para respirar devido ao uso de vinhetas grandes e belos planos cinematográficos.

Também será importante referir que este não é um livro com muito texto, sendo várias as páginas onde não existe sequer um balão de fala. Ora, isso acentua o registo de solidão, de desolação, de aridez do local onde se passa a ação, conferindo à obra um quase cariz de "road movie" e dando espaço ao leitor para refletir e para estreitar o seu relacionamento com o protagonista.

Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa
Se para mim este livro não é perfeito, é apenas e só por uma razão: porque o final me pareceu algo apressado. Não é que não tenha gostado do final. Gostei. E da reflexão que o mesmo nos oferece. Mas se tivermos em linha de conta que durante toda a restante obra a trama é lenta (e ainda bem que assim o é, pois permite um maior envolvimento do leitor com a história) o final não é congruente com essa ideia, ficando resolvido num ritmo muito mais rápido e linear.

A edição da ASA está bastante bem conseguida. O livro possui capa mole baça, com badanas. No miolo, o livro apresenta um bom papel brilhante e um bom trabalho em termos de impressão e encadernação. No final, há ainda um dossier de extras com 8 páginas, onde nos é explicado com mais detalhe o Dust Bowl, o funcionamento da Farm Security Administration e temas subjacentes à leitura da obra. Trata-se de um extra relevante.

Devo dizer que, dada a qualidade e relevância da obra, teria preferido que a mesma tivesse sido editada em capa dura. Acho que isso atribui sempre - ou quase sempre - mais classe e seriedade às edições. Não obstante, também não tenho nenhum problema com capas moles. E convém não esquecer: é preferível que as editoras portuguesas editem muitas e boas bandas desenhadas em edições em capa mole, do que não as editem de todo. Mais do que tudo, e quer seja em capa dura ou mole, a ASA revela com a publicação de este Dias de Areia que o seu comprometimento com a edição de banda desenhada é sério e deve ser tido em conta. Há anos e anos que não via a editora tão apostada no lançamento de tanta banda desenhada de qualidade!

Em jeito de conclusão, posso dizer-vos que Dias de Areia é uma obra comovente que combina história, arte e narrativa de forma magistral. Aimée de Jongh cria uma experiência imersiva que não só informa, mas também toca o coração do leitor. É uma leitura recomendada para todos e que é uma forte candidata a melhor BD do ano. 


NOTA FINAL (1/10)
9.9


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Dias de Areia, de Aimée de Jongh - ASA - LeYa

Ficha técnica
Dias de Areia
Autora: Aimée de Jongh
Editora: ASA
Páginas: 288, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 269 x 204 mm
Lançamento: Julho de 2024

Levoir publica mais dois volumes de Adèle Blanc-Sec!



Mal passou um mês desde que a Levoir se lançou na empreitada de editar toda a série de Adèle Blanc-Sec em Portugal, com o lançamento dos volumes 1 e 5 da série, e já somos presenteados com o lançamento de mais dois volumes desta obra célebre de Jacques Tardi!

Desta feita, a editora traz-nos os volumes 2 e 6 de Adèle Blanc-Sec que se intitulam, respetivamente, O Demónio da Torre Eiffel e O Afogado com Duas Cabeças.

Os livros começaram a chegar às livrarias a partir de ontem.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora e com algumas imagens promocionais destes dois livros.
As Extraordinárias Aventuras de Adèle Blanc-Sec, de Jacques Tardi

A Levoir vai editar toda a colecção As Extraordinárias Aventuras de Adèle Blanc-Sec, já saíram os volumes 1 e 5 e agora a 30 de Julho edita mais dois volumes, O Demónio da Torre Eiffel, volume 2 e O Afogado com Duas Cabeças, volume 6. Jacques Tardi, nasceu em França, Valence, em 1946, passa os primeiros anos na Alemanha do pós-guerra, onde o seu pai era militar de carreira. Mais tarde, serão as atrocidades da guerra de 1914-18, a do seu avô, de origem Corsa, que assombrarão os seus sonhos de criança antes de se tornar um dos temas principais que inspiraram a sua obra. Estudante da Escola de Belas Artes de Lyon, depois das Artes Decorativas de Paris, Tardi estreia-se na BD em 1969 na revista Pilote. Obcecado pela Primeira Guerra Mundial escreve Foi Assim a guerra das Trincheiras (editado pela Levoir). Em 1976 dá início a As Extraordinárias Aventuras de Adèle Blanc-Sec.


Adèle Blanc-Sec #2 - O Demónio da Torre Eiffel

O Demónio da Torre Eiffel, narra a história de uma Paris abalada pelo súbito reaparecimento da peste e por uma misteriosa vaga de desaparecimentos na Pont-Neuf. 

Adèle, determinada a vingar a morte do seu amigo Lucien Ripol, lidera a investigação, convencida de que existe uma ligação entre estes três casos. 

Enfrenta Albert, o seu antigo cúmplice, e uma temível seita de adoradores do demónio Pazuzu.


Ficha técnica
Adèle Blanc-Sec #2 - O Demónio da Torre Eiffel
Autor: Jacques Tardi
Editora: Levoir
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 220 x 288 mm
PVP: 16,95€



Adèle Blanc-Sec #6 - O Afogado com Duas Cabeças

Em O Afogado com Duas Cabeças, Adèle é despertada por Lucien Brindavoine após seis anos de criogenia, regressando a um mundo ainda a recuperar de quatro anos de guerra mundial. 

Mas assim que regressa a casa, tem de enfrentar novos mistérios: quem pagou a renda? quem manteve o apartamento? quem continua atrás da sua vida? 

Enquanto uma nova e estranha criatura ronda Paris, Adèle tenta responder a estas questões, ajudada nas suas investigações pelos membros de um estranho grupo de circo.

Ficha Técnica
Adèle Blanc-Sec #6 - O Afogado com Duas Cabeças
Autor: Jacques Tardi
Editora: Levoir
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 220 x 288 mm
PVP: 16,95€

terça-feira, 30 de julho de 2024

Análise: A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores
A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores

Hoje falo-vos de dois livros da mesma série: o segundo livro de A Velha Guarda, denominado Força Multiplicada, e que tem argumento de Greg Rucka e ilustrações de Leandro Fernández, autores responsáveis pela série, e a antologia Histórias Através do Tempo, que reúne um vasto e alargado conjunto de autores que concebeu histórias curtas para a franquia A Velha Guarda, com o propósito de homenageá-la, por um lado, e acrescentar-lhe algo, por outro. Ambos os livros foram lançados pela G. Floy Studio com um espaço de um ano, sensivelmente, tendo-se seguido à publicação do primeiro volume de A Velha Guarda, do qual já aqui falei.

Comecemos por A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada.

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores
Neste segundo volume da série principal - que, espera-se, venha a receber um terceiro e último volume - continuamos a história do primeiro volume que orbita à volta de Andy, Nicky, Joe, Booker e Nile que, aparentemente, não podem ser assassinados. São imortais. Ou quase.

Este volume mergulha mais fundo nos dilemas éticos e nas complexidades emocionais das personagens, ao mesmo tempo em que intensifica a ação e expande a mitologia da série. Desta vez, o grupo de imortais lida com um inimigo mais pessoal e insidioso. 

Noriko, uma imortal do passado de Andy que se acreditava estar morta, retorna e revela-se como uma interessante antagonista que acrescenta vida à série, pois trata-se de uma personagem enriquecida com um histórico de crueldade e manipulação, assente na busca incessante pela vingança e poder, o que vai ameaçar a coesão do grupo de imortais e expor algumas das suas vulnerabilidades.

Será a imortalidade um dom ou uma maldição? E até que ponto estas personagens são verdadeiramente imortais?

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores
Voltamos a ter neste volume uma boa combinação de ação, drama e profundidade emocional, através de uma narrativa que é, ao mesmo tempo, emocionante e faz pensar. Os dilemas das personagens são universais, mesmo dentro do contexto extraordinário de sua imortalidade, fazendo com que a história ressoe a um nível pessoal com os leitores. 

Os desenhos de Leandro Fernández conseguem ser verdadeiramente vistosos e impactantes. Especialmente nas ilustrações de página dupla que nos atiram para o coração de uma batalha onde há espadas, machados, estacas e guerreiros famintos e insaciáveis a lutar pela própria sobrevivência. Neste segundo volume, Leandro Fernández parece sentir-se mais confiante quanto às suas ilustrações, onde a planificação é dinâmica e cinematográfica e a utilização de extensas camadas de sombras pretas, nos remete para o trabalho de Frank Miller em Sin City. Mesmo assim, as influências do argentino Eduardo Risso continuam especialmente bem presentes no trabalho de Fernández embora este, claro, tenha a sua própria identidade visual.

Sendo as personagens imortais, é normal que tenham muita idade e que o seu percurso tenha atravessado longos períodos da história. Ora, isso faz com que a trama se passe não só no período presente, como no período passado. Por vezes, até bastante longínquo. E esta valência acaba por ser uma boa "muleta narrativa" para a história, claro, mas também para a componente visual, pois são vários os cenários, trajes e ambientes que o autor se permite criar devido a esta característica da série. Em termos visuais, a obra torna-se, pois, bastante rica. Tão depressa vemos desenhos de cidades atuais, como vemos desenhos de grandes embarcações à vela que percorriam os oceanos, ou desenhos do tempo dos cavaleiros. Tudo é possível com uma premissa tão abrangente!

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores
Falando agora um pouco sobre o segundo livro que hoje vos trago, Histórias Através do Tempo, devo dizer que a iniciativa me parece muito bem pensada, tendo em conta a riqueza de possibilidades que um conceito tão livre como a imortalidade permite. Portanto, foram criadas doze histórias que reúnem autores de renome mundial, como Brian Michael Bendis, Jason Aaron, Rafael Albuquerque, Matt Fraction e vários outros. Os próprios criadores originais da série, Greg Rucka e Leandro Fernández também assinam duas histórias curtas deste livro, a primeira a e a última.

Este exercício pareceu-me muito agradável e interessante, pois permitiu uma boa heterogeneidade, quer visual, quer de enredo, ao conjunto, tornando o universo de A Velha Guarda bastante mais rico. Naturalmente, há histórias mais bem conseguidas do que outras, mas isso é algo frequente neste tipo de antologias. Alguns temas pareceram-me introduzidos de forma algo forçada mas, ainda assim, gostei da liberdade em termos de output criativo que uma premissa tão abrangente como a da imortalidade pode criar. Acho que acaba por ser um exercício muito rico para o estudo dessa mesma característica.

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores
Os ilustradores apresentam-nos trabalhos de topo e é-me difícil dizer quais as histórias que mais me agradaram. Acho que, sinceramente, pelo menos tendo em conta a componente do desenho, me agradaram todas. 

Olhando para a globalidade de cada história (argumento e desenho) talvez as minhas preferidas tenham sido: Remédio Forte, de Eric Trautmann e Mike Henderson, Lacus Solitudinis, de Robert Mackenzie, Dave Walker e Justin Greenwood, Como Criar Uma Vila-Fantasma, de Matt Fraction e Steve Lieber, Uma Alma Velha, de Jason Aaron e Rafael Albuquerque e a peculiar história Nunca é Demais, de Alejandro Arbona e Kano.

Ambas as edições destes livros são em capa dura baça, com bom papel brilhante no miolo e uma boa impressão e encadernação. O livro Histórias Através do Tempo traz ainda uma bela galeria com as belíssimas capas de cada um dos números, capas alternativas e uma breve biografia de cada um dos autores que participou na antologia.

Em suma, A Velha Guarda é uma daquelas séries de banda desenhada que tem uma premissa tão boa - mesmo que não seja especialmente original - que é sempre interessante ver até onde a mesma pode ser explorada. E quer o segundo volume da série, quer Histórias Através do Tempo, revelam bem isso em dois livros cuja leitura se aconselha.


NOTA FINAL (1/10):
8.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores

Fichas técnicas
A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada
Autores:  Greg Rucka e Leandro Fernández
Editora: G. Floy Studio
Páginas: 168, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Novembro de 2022

A Velha Guarda - Livro Dois: Força Multiplicada e Histórias Através do Tempo, de Greg Rucka, Leandro Fernández e Outros Autores

A Velha Guarda: Histórias Através do Tempo
Autores: Greg Rucka, Leandro Fernández e vários autores convidados
Editora: G. Floy Studio
Páginas: 184, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Setembro de 2023

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Análise: Os Pássaros de Papel

Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani - Levoir


Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani - Levoir

Os Pássaros de Papel, de Mana Neyestani

Foi durante o Maia BD e também devido à vinda do autor Mana Neyestani ao evento, que a editora Levoir lançou este Os Pássaros de Papel, que já é a segunda obra do autor publicada pela editora, depois do muito bem conseguido Uma Metamorfose Iraniana.

Além disso, o trabalho de Neyestani também já foi publicado em Portugal pela editora Iguana, com a edição do livro Mulher Vida Liberdade, no qual o autor iraniano, juntamente com vários outros autores, também participa.

Com este Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani regressa à BD com uma bela obra que nos relata uma realidade que eu ignorava totalmente até ler este livro. Essa é, também, uma das funções das criações artísticas e, neste caso, da banda desenhada. A de educar, a de dar a conhecer. 

Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani - Levoir
A obra aqui em análise elucida-nos sobre a situação que se vive nas montanhas do Curdistão iraniano, na fronteira com o Iraque, em que são efetuadas perigosas expedições de transporte por pessoas extremadamente pobres que se veem forçadas, para obter algum dinheiro, a transportar às costas, em "mochilas" verdadeiramente gigantes, muitos materiais contrabandeados. Estas expedições são efetuadas a pé, em percursos perigosos, por montanhas sinuosas onde as condições atmosféricas são de infinito perigo para a existência humana, havendo numerosas tempestades de neve e, ao mesmo tempo, certas partes do trajeto são tão apertadas que um passo em falso poderá levar esses transportadores - a que se dá o nome de Kolbars - ao fundo de uma ravina. Como se isto já não fosse suficientemente mau, ainda há numerosas patrulhas efetuadas pelas autoridades locais que atiram a matar, caso encontrem um destes transportadores ilegais. 

A história acompanha a personagem de Jalal que se junta a um grupo de homens - cada um com as suas vicissitudes e dramas pessoais - que com ele embarcam na já referida viagem carregada de privações para conseguirem uma remuneração que, de tão pequena, é ridícula - pelo menos para aqueles que vivem "no primeiro mundo" - mas que, ao mesmo tempo, é crucial para a subsistência destas pessoas. Sendo uma história ficcionada, é baseada em algo que acontece na realidade e que, portanto, atribui à obra essa valência de dar enfoque a um tema que, pelo menos na sociedade ocidental, é de pouco ou nenhum conhecimento.

Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani - Levoir
À medida que vamos acompanhando a viagem destes kolbars, vamos tomando contacto com Rojan, a mulher com quem Jalal espera casar, que é a filha de um dos homens que embarca na mesma expedição de Kolbars. Cada um dos capítulos do livro é começado com Rojan a fazer tapetes que vão crescendo gradualmente entre capítulos, permitindo que o leitor se aperceba do tempo que demoram estas expedições. E Rojan fabrica estes tapetes para, com o dinheiro obtido através dos mesmos, conseguir uma hipótese de fuga com o seu amado Jalal. A introdução destes breves momentos de Rojan é, sem dúvida, uma boa forma de tornar a história mais dinâmica e menos repetitiva, acrescentando-lhe uma pitada de poesia e de reflexão.

O desenho de Neyestani, com um traço bastante rabiscado e caricatural a preto e branco - onde só raramente aparecem alguns detalhes a cores - agrada-me especialmente, pois traz consigo um certo dramatismo ao relato, com as caras e expressões das personagens a apresentarem os sinais de uma vida carregada de peso e dificuldades. Também na caracterização da montanha e das tempestades de neve, o desenho de Neyestani é, quanto a mim, muito belo. Utilizando os delírios dos Kolbars depois de tantas privações, o autor ainda nos oferece alguns desenhos mais caricaturais ainda, onde há oportunidade para um pouco de fantasia que funciona bastante bem. De resto, reitero o que já havia escrito sobre os desenhos de Neyestani em Uma Metamorfose Irariana: "apreciei bastante o estilo de tramas que acrescentam profundidade e detalhe aos desenhos. Mesmo sendo um estilo caricatural, é aquilo a que chamo um estilo “caricatural rico”".

Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani - Levoir
Reconheço que, por vezes, algumas personagens podem ser algo confundíveis entre si e este seria, quanto a mim, o ponto mais negativo que se pode apontar à parte visual da obra que, sendo simples, é bastante bela.

Quanto à edição da Levoir, estamos perante um bom trabalho. Mesmo não tendo sido lançado em nenhuma coleção de Novelas Gráficas da editora, o livro apresenta o mesmo tipo de aspeto: capa dura baça com a lombada a preto e a inscrição "Novelas Gráfica". No miolo, o papel é baço e de boa qualidade e o trabalho de encadernação e impressão é bom. Nota positiva para o acrescento de um prólogo e de um epílogo, com imagens, onde são dadas ao leitor mais informações sobre a existência dos kolbars. Uma boa edição, portanto.

Em suma, mesmo que Os Pássaros de Papel não chegue a ser tão impactante como Uma Metamorfose Iranina - em que o autor nos contou a sua história pessoal em que esteve preso apenas e só por ter feito um cartoon que não caiu nas boas graças do regime iraniano - estamos perante mais uma bela aposta da Levoir, que vale a pena conhecer e que consolida o bom trabalho do autor iraniano como um autor de causas sociais e registo gráfico diferenciado.


NOTA FINAL (1/10):
8.6

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Os Pássaros de Papel, Mana Neyestani - Levoir

Ficha técnica
Os Pássaros de Papel
Autor: Mana Neyestani
Editora: Levoir
Páginas: 216, a preto, branco e vermelho
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240mm
Lançamento: Maio de 2024


quinta-feira, 25 de julho de 2024

Análise: Sol

Sol, de Diogo Carvalho - A Seita e Comic Heart

Sol, de Diogo Carvalho - A Seita e Comic Heart
Sol, de Diogo Carvalho

Embora de espírito e trato jovial - e até de idade - Diogo Carvalho é um autor de banda desenhada que eu já considero "veterano". Pelo menos, a julgar pelo simples facto de o autor já se ter iniciado na publicação de banda desenhada há bastantes anos. Especialmente, no lançamento de histórias curtas em várias antologias, mas também nas obras a solo Cabo Connection e em Obscurum Nocturnus.

Há umas semanas, ainda durante o Maia BD, foi lançada aquela que é, até à data, a obra de maior fôlego de Diogo Carvalho e que dá pelo nome de Sol. E posso dizer-vos que este livro me conquistou a vários níveis!

Se as ilustrações de Sol são belas, isso já não seria uma grande surpresa para aqueles que acompanham o trabalho de Diogo Carvalho. O que foi uma surpresa para mim neste Sol, foi a qualidade do argumento do livro que se assume, desde já, como um sério candidato a melhor argumento nacional de 2024. E quando falo na "qualidade do argumento" - e convém refrescar a memória de todos aqueles que se esquecem disto - não me refiro a uma “história bonita” ou “história filosófica” ou “história intelectual”… Refiro-me, isso sim, a uma história bem arquitetada, bem montada, bem pensada. E Sol é isso tudo. Simples e até expetável, concedo, mas muito bem construída.

Mesmo sendo uma história (aparentemente) pensada para o grande público, que parece remeter-nos para filmes blockbusters - assim, de memória, enquanto lia este livro, vieram à minha memória filmes como Star Wars, Mad Max, Avatar ou Blade Runner - e que, por esse motivo, pode dar a falsa ideia de que se trata de uma "mera historiazinha comercial", Sol é uma história comercial, ou com appeal comercial, sim, mas sem o "mera" e sem o sufixo "zinha", pois está carregada de pormenores deliciosos e numerosas camadas que a tornam "complexamente simples" - ou "simplesmente complexa", como preferirem. E isso é algo típico nos filmes de culto que marcaram eras. Nos quatro que já mencionei e em muitos outros! Como tal, considero que Sol conquistará, com a passagem dos anos, a etiqueta de “BD de culto” nacional. No momento presente, esta afirmação pode soar a exagero, mas daqui a uns 10 anos, veremos se não tenho razão.

Sol, de Diogo Carvalho - A Seita e Comic Heart
Para este construto de diversas camadas contou, imagino, o longo período que o autor tomou para construir este épico. É que, como Diogo Carvalho teve longos anos a trabalhar neste livro, vê-se que houve tempo e oportunidade para repensar e incluir novos detalhes que contribuíram para a riqueza narrativa da obra. Dito por outras palavras, houve tempo para amadurecer a história, as personagens, os diálogos e o ritmo narrativo. Exemplifico esta ideia recorrendo à música. Tal como na música existem canções em que, independentemente de serem boas ou más, fica perceptível que o processo de construção foi simples e linear, quase em torno de uma inspiração genuína do momento, como Yesterday, dos Beatles, por exemplo, também outras músicas há, onde fica visível que o processo de escrita musical foi complexo, amadurecido, planeado e refletido como Bohemian Rhapsody, dos Queen, God Only Knows, dos Beach Boys ou, para voltar a citar Beatles, Strawberry Fields Forever. Sol não é uma Yesterday, mas sim uma Strawberry Fields Forever. E, repito, trata-se de uma história para o grande público e que não tem medo de ser comercial.

Sol é, aliás, a prova sumária do que para se ser comercial, não é necessário ser-se simplório ou básico. Ao invés, importa, a partir de uma génese simples, unir bem as pontas entre si e ter uma história e um conjunto de personagens suficientemente apelativos para um grande número de pessoas. Se conseguirmos isto, talvez possamos almejar ser comerciais. Não é para todos, é para quem pode. E Sol tem essa valência de conseguir ser adequado para os miúdos de 13 anos que desejam algo que os remeta para um mundo longínquo de aventuras, e ser igualmente adequado para os os graúdos de 53 anos, que têm aqui uma homenagem aos melhores livros e filmes de aventuras que marcaram várias gerações. Se pusermos a soberba e o pseudoelitismo de fora, Sol não só é um dos livros do ano, como é um dos livros dos últimos anos na produção de banda desenhada nacional. Não há como evitá-lo: é obrigatória a sua leitura.

Mesmo assim, nem tudo são rosas. O livro não é perfeito, embora esteja muito bem feito. Mas já lá irei.

Voltemos um pouco atrás. 

Sol, de Diogo Carvalho - A Seita e Comic Heart
Já me estou a alongar muito e ainda nem sequer falei da história de Sol, que decorre num futuro longínquo, em planetas distantes. À boa maneira de um western clássico, a história arranca quando uma jovem misteriosa de nome Sol chega ao planeta Eve 979183, à cidade de East of Eden. A xerife Nia, que controla os desígnios dessa localidade, olha com desconfiança para Sol. E toda esta desconfiança resulta da forma como os humanos têm estado a explorar os planetas. De um modo usualmente humano, os recursos dos planetas vão sendo explorados sem eira nem beira, sendo depois, quando já não são bons assets para os humanos, votados ao esquecimento. Alguma parte da população desses planetas permanece nos mesmos, ousando resistir e encontrar uma forma de vida. Neste caso, o planeta principal, ou central, é Ithaca e é aí que residem as classes mais ricas com mais capacidade para explorar os restantes planetas.

Tentando não contar mais do que o necessário, a personagem Sol encontra-se numa luta pessoal para alcançar um recurso natural que, aparentemente, tem propriedades curativas. Toda a restante história, onde não faltam momentos de ação, anda à volta disso. 

Há espaço para vilões, para personagens que funcionam como comic relief, para uma personagem que, parecendo inicialmente antagónica, acaba por se revelar companheira de Sol... enfim... temos direito a todos os clichets, sim, mas reformulados e renovados. Diogo Carvalho não imita diretamente nenhuma obra e, ao mesmo tempo, presta homenagem a um sem número delas. 

E se, tratando-se de uma distopia, a história pode parecer complexa, devo dizer que Diogo Carvalho faz um ótimo trabalho em explicar como funciona todo este universo futurista de ficção científica. Digo-o muitas vezes - e até já o escrevi aqui no Vinheta 2020, estou certo - que uma boa ficção científica resulta muito melhor se conseguir, ela própria, explicar os seus próprios pressupostos e ideias. E, também nesse ponto, Diogo Carvalho protege bem a sua criação, dotando-a de credibilidade. Coisa que, acreditem, e mesmo em termos de autores internacionais, é muitas vezes esquecida em obras de ficção científica.

Como nota menos positiva sobre a história, não sei se seria necessário que, já depois da ação principal da história terminar, houvesse um “segundo final” em que nos é mostrado o que aconteceu à população local, passados seis meses. É algo muito advindo dos filmes e séries dos anos 80, lá está, mas que, quanto a mim, acaba por ser redundante e possivelmente desnecessário. Mas reconheço que é uma questão subjetiva e uma opção que também se aceita.

Sol, de Diogo Carvalho - A Seita e Comic Heart
O desenho do autor é fiel ao estilo a que já nos habituámos. Chega a impressionar em muitos momentos, brilhando especialmente em cenas de ação ou perseguições em alta velocidade que, felizmente, há com fartura. Em termos de concepção de personagens, de cenários, de veículos e, portanto, ao nível do world building visual, é notável o trabalho do autor. 

Mesmo assim, também é verdade que, em alguns momentos, se sente uma certa rigidez física de algumas personagens e que, aqui e ali, pode ser encontrada uma ou outra expressão visual ou construção anatómica que necessitariam, por ventura, de algum aprimoramento extra. Mas mesmo não sendo perfeito em todos os momentos, são igualmente muitos os outros em que Diogo Carvalho nos dá um trabalho verdadeiramente inspirado e em bom nível em termos de desenho.

A utilização da planos em primeira pessoa, à boa maneira de um videojogo FPS, não só está especialmente bem conseguida em termos narrativos, contribuindo para que sejam acrescentadas camadas de personalidade à protagonista, como, visualmente falando, contribui para uma boa dinâmica e diversidade, já que até a própria técnica de desenho, a lápis de carvão, em detrimento da tinta da china utilizada na restante história, permite uma certa beleza visual que é bem vinda e, mais uma vez, acrescenta algo ao todo.

A edição d’A Seita e da Comic Heart apresenta capa dura baça, bom papel baço no miolo, e um bom trabalho ao nível da encadernação e impressão. No final do livro, há uma generosa galeria de extras com 8 páginas, que é constituída por um belo e completo conjunto de esboços e estudos de personagem que, ainda por cima, são complementados com comentários do autor, o que torna os extras do livro em algo muito bem-vindo. 

Nota menos positiva, no entanto, para a opção por um formato demasiado pequeno para a edição da obra. Tendo em conta, especialmente, a diversidade e dinâmica na planificação utilizada pelo autor ao longo da obra, que chega a ter pequenas vinhetas quadradas, parece-me óbvio e inquestionável que a opção por um formato maior - e não apenas "ligeiramente maior" mas "bastante maior" - teria feito mais justiça à obra.

Concluindo, Sol é mais uma excelente notícia para a banda desenhada nacional! Podendo não ser perfeita, esta é uma obra de puro entretenimento - sem medo de o ser - e está especialmente bem construída e amadurecida pelo autor. Noutra ocasião, diria que estávamos perante a obra de afirmação de um autor. Mas como, neste caso, falamos de Diogo Carvalho, um autor veterano e bastante experiente na feitura de banda desenhada, digo até algo quiçá mais eloquente: Sol é "a obra de uma vida" de Diogo Carvalho.


NOTA FINAL (1/10):
9.1


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Sol, de Diogo Carvalho - A Seita e Comic Heart

Ficha técnica
Sol
Autor: Diogo Carvalho
Editoras: A Seita e Comic Heart
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 175 x 245 mm
Lançamento: Maio de 2024



As novidades da Ala dos Livros para o segundo semestre de 2024!



Hoje apresento-vos as novidades que a editora Ala dos Livros ainda tem guardadas para o segundo semestre de 2024, enquanto também são referidas algumas novidades para 2025!

Mais uma vez, a editora prepara várias obras que, certamente, farão muita gente feliz!

Da minha parte, posso dizer que estou curioso com todas estas novas propostas da editora!

Há também duas revelações interessantes ao nível da aposta numa autora portuguesa e no lançamento dos primeiros dois álbuns de uma série que há muito os leitores pediam!

Vejam, mais abaixo, quais as novidades da editora para os próximos meses!

Análise: Espiga

Espiga, de Bernardo Majer - Polvo

Espiga, de Bernardo Majer - Polvo
Espiga, de Bernardo Majer

Depois de Estes Dias, a primeira obra a solo de Bernardo Majer, ter conquistado amplamente a crítica nacional, bem como os leitores portugueses, ou não tivesse sido a obra vencedora dos Prémios de Banda Desenhada da Amadora, Bernardo Majer não perdeu muito tempo antes de lançar um novo livro. E felizmente que assim o foi!

A sua mais recente obra, Espiga, lançada no último Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, conta com edição da Polvo e volta a dar-nos uma narrativa em estilo slice of life, em que somos mergulhados na vida quotidiana de uma personagem - ou, neste caso, de duas - sem que haja grande base introdutória ou, sequer, conclusiva. Como se o leitor fosse uma mosca que, deambulando pelo ar, fosse pousar ao parapeito da janela da casa de uma qualquer pessoa e a observasse durante algum tempo até que, mais tarde, seguisse viagem voando para um outro sítio.

Em Espiga, não temos um conjunto de histórias independentes como tivemos em Estes Dias. Temos duas histórias aparentemente independentes, mas que acabam por se entrecruzar. Mesmo assim, acho que há semelhanças suficientes entre as duas obras, quer ao nível de argumento, quer ao nível de ilustração, para ser quase uma garantia que quem apreciou Estes Dias também vai gostar de Espiga.

Espiga, de Bernardo Majer - Polvo
Começamos por acompanhar Abel, que é um autor que, viajando para um festival literário em Bolonha, para a apresentação do seu livro, acaba por travar conhecimento com outra autora, Laura. Embora Abel tenha um relacionamento amoroso com Teresa, que não o acompanha nesta viagem, sente a sua relação a esmorecer cada vez mais. Talvez porque, como acontece com muitos casais, um e outro parecem estar em fases diferentes da vida. Com interesses, vontades e objetivos que já não são tão comuns como, no início da sua relação, ambos poderiam ter esperado que fossem. E com isso vem o impasse típico: será que devemos sucumbir aos desejos e objetivos da outra pessoa, deixando-nos levar ao sabor da (sua) corrente? Será isso o melhor comportamento para contribuirmos positivamente para uma relação amorosa?

Enquanto Teresa quer comprar uma casa e dar o "próximo passo" na relação, Abel não parece ter foco nesse objetivo. E, a par disso, também sofre de insónias. Possivelmente, por uma sensação de desconforto latente. 

O livro avança, então, até ao final da primeira parte e, a partir daí, o enfoque passa a ser na personagem de Laura. No seu percurso pessoal. Laura tem uma relação amorosa com Benjamim, mas esta não é bem um grande romance… é mais uma "amizade colorida". Não são bem namorados, mas também não são bem amigos. A sua relação mantém-se apenas à superfície, trazendo consigo, claro, uma certa felicidade, mas uma felicidade que é apenas e só isso mesmo: superficial. E será esse tipo de relação que nos deixa verdadeiramente completos e realizados?

Espiga, de Bernardo Majer - Polvo
A vida, por muito boa que seja, traz sempre consigo uma boa dose de coisas menos boas, menos agradáveis, menos positivas. Tal como um arranjo floral que, para além de ter as flores, também tem a verdura e as espigas. As flores até podem ser a coisa que no arranjo floral mais recebe destaque para cativar a atenção do cliente, mas o que é certo é que nunca teremos apenas as flores. Como canta Rui Veloso, em mais uma bela letra de Carlos Tê, “todos temos um lado lunar” e é, também, sobre isso que versa este Espiga. Todos nós somos belos arranjos florais mas que, lá mais para dentro, de forma mais oculta, também temos verdura e espiga. Coisas que não sendo forçosamente horríveis - afinal de contas, se todos as temos, devíamos saber aceitá-las melhor nos outros ou até mesmo em nós próprios, não? - tiram algum do encanto (superficial) com que observamos os outros à nossa volta e com que nos deixamos observar. 

Dito assim, Espiga pode parecer uma obra desencantada ou pessimista mas, hey!, esta foi apenas a minha interpretação. Bernardo Majer é neutro e lato o suficiente, para "passar a bola" ao leitor e dizer-lhe: “faz o que quiseres com estas fotografias de toda uma geração que não tirei com uma lente fotográfica, mas com papel e lápis, através de pranchas e vinhetas".

A pecar em alguma coisa - e se é que isto se pode considerar como "pecado" - Espiga (e também Estes Dias, já agora) só peca no facto de os relatos do autor serem sempre muito latos e neutrais. Não há uma ajuda à reflexão do leitor. Essa, a reflexão, fica ao critério de cada um. Se as histórias de Bernardo Majer nos revelam uma aptidão escondida do autor, essa não será a de filósofo, de sociólogo ou sequer de um teórico… essa aptidão é a de fotógrafo. Majer fotografa a realidade millennial através das suas breves histórias em banda desenhada. Sem julgamentos, sem conclusões, sem teorias, ficando, depois, a tarefa de interpretar esses retratos da sociedade ao critério e olhar de cada um.

Espiga, de Bernardo Majer - Polvo
Em termos de desenho, o autor mantém o mesmo registo de Estes Dias, embora o seu traço tenha um aspeto diferente, com as linhas a serem menos claras e nítidas, parecendo ter sido feitas com lápis de cera. Algo semelhante ao que o autor também nos deu recentemente no seu Sermão de Santo António aos Peixes, editado pela Levoir. Pessoalmente, prefiro o traço mais limpo e conciso que o autor utilizou em Estes Dias, mas também reconheço que esta nova opção estilística do autor lhe dá, quiçá, mais singularidade e originalidade. Trata-se, portanto, de uma questão de mero gosto pessoal, porque o que é certo é que Bernardo Majer continua a dar-nos um desenho personalizado, moderno e que se coaduna perfeitamente com o tipo de histórias aqui presentes.

A edição da Polvo é em capa dura baça, com papel brilhante de boa qualidade no miolo do livro. O trabalho é bom, se bem que me pareceu haver uma certa diferença entre os tons de amarelo apresentados nas páginas promocionais e os tons de amarelo das páginas do livro.

Concluindo, Bernardo Majer sedimenta, pois, com este Espiga, a sua "voz de autor", ficando bem patente que o seu trabalho é fruto de um tempo e de um espaço próprio e que - não só por isso, mas também por isso - se destina especialmente para essas mesmas pessoas suas contemporâneas. É "O escritor" millennial e para os millennials - mas não só, claro está - trazendo nas suas histórias as preocupações, as vivências e as dores de crescimento que todos os millennials têm - e que nos quais eu também me incluo. Talvez por isso, acredito que nem toda a gente consiga, ou saiba, apreciar convenientemente as suas histórias. Mas quem o faz, tem em Espiga um bom reflexo de toda uma geração em várias páginas de banda desenhada.


NOTA FINAL (1/10):
8.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Espiga, de Bernardo Majer - Polvo

Ficha técnica
Espiga
Autor: Bernardo Majer
Editora: Polvo
Páginas: 80, a duas cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17,3 x 24,6 cm
Lançamento: Maio de 2024