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quinta-feira, 21 de agosto de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Polvo nos últimos 5 anos!



Cá estou eu para mais um TOP 10 com a melhor banda desenhada editada nos últimos 5 anos em Portugal! Hoje é dia de ficarmos a conhecer quais os melhores livros de BD que a editora Polvo lançou nos últimos 5 anos.

A Polvo é uma das editoras de banda desenhada mais antigas em Portugal, tendo já editado perto de 200 livros, desde o seu início de atividade há quase 30 anos. Sendo uma editora de cariz independente, não tem uma assiduidade muito constante no lançamento de novos livros, ao longo dos meses, embora, todos os anos, seja quase garantido que haverá novos livros desta editora a serem lançados por alturas do Amadora BD

Com um catálogo que se concentra numa clara aposta em obras de origem brasileira, a editora tem também editado muitas obras de referência de autores nacionais, bem como de outros autores europeus.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a "crème de la crème" de cada editora.

Deixo-vos então, as 10 melhores BDs editadas pela Polvo nos últimos 5 anos.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Análise: O Crime do Padre Amaro

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP
O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo

Devo confessar que estava particularmente curioso em ler este O Crime do Padre Amaro - que a editora Levoir editou há umas semanas na sua coleção Clássicos da Literatura Portuguesa em BD - não por uma, não por duas, mas por três razões. E essas três razões são exatamente os nomes dos três autores por detrás desta obra: Eça de Queirós, André Oliveira e Ricardo Santo. 

Eça de Queirós, o autor do romance original O Crime do Padre Amaro, e nome maior da literatura, é um dos meus escritores favoritos! Não só da literatura portuguesa, como da literatura mundial. É um autor com um humor latente, irónico e subtil, carregado de uma crítica social indireta que adoro e que considero completamente atual. Quanto a André Oliveira, este é, quanto a mim, um dos melhores argumentistas da banda desenhada nacional, sendo as suas premissas originais e o seu texto especialmente inspirado e bem tecido. Finalmente, Ricardo Santo - que até lançou recentemente o também muito recomendável Boarding Pass - é um dos ilustradores de banda desenhada que mais aprecio.

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP
Portanto, tudo somado, estava desejoso de ler este O Crime do Padre Amaro e confirmar se as minhas altas expetativas para este livro eram positivamente correspondidas ou não. E foram, posso dizer-vos! Ainda não li todos os livros lançados nesta coleção da Levoir (mas faltam-me poucos) e ainda serão lançadas algumas novas obras no futuro, mas, pelo menos até agora, e considerando até os livros Auto da Barca do Inferno, Os Maias ou Amor de Perdição - lançados na coleção Clássicos da Literatura em BD - este O Crime do Padre Amaro é o meu favorito!

Mas voltemos um pouco atrás.

O Crime do Padre Amaro é um dos romances mais conhecidos de Eça de Queirós e representa uma das primeiras incursões do autor no realismo literário. Publicada pela primeira vez em 1875, a obra é uma crítica feroz à hipocrisia e corrupção moral da Igreja Católica e da sociedade portuguesa da época. Através de uma narrativa que combina elementos de crítica social, análise psicológica e denúncia moral, Eça constrói uma história poderosa e polémica. Se continua a ser polémica nos dias de hoje, imagino o quão mais chocante terá sido aquando da sua publicação original! Obrigado por abalares o sistema, Eça!

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP
A história gira em torno do Padre Amaro, um jovem que, devido à sua origem humilde e a uma série de influências externas, entra para o sacerdócio, mesmo sem que se lhe note uma verdadeira vocação religiosa. Após concluir os estudos no seminário, Amaro é enviado para a cidade de Leiria, onde é acolhido na casa de S. Joaneira, uma devota senhora que frequentemente abriga padres na sua casa.

E é nessa casa que Amaro conhece Amélia, uma bela e inocente jovem, filha da anfitriã. Rapidamente, Amaro é atraído por Amélia, e os dois iniciam um relacionamento secreto e ilícito, motivado tanto pelo desejo físico, quanto pela falta de escrúpulos morais de Amaro. A relação deles é complicada pelo contexto religioso e pelas pressões sociais da época e, claro, tudo se complica ainda mais quando Amélia engravida, o que leva a uma série de ações desesperadas. Para evitar o escândalo, Amaro convence Amélia a fazer tudo para assegurar que a sua reputação permanece intacta. Eventualmente, o desfecho acaba por ser trágico não para todas, mas para várias das personagens.

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP
Com toda a inteligência e humor irónico pelo qual é (re)conhecido, Eça de Queirós utiliza a figura do Padre Amaro para criticar a corrupção, a hipocrisia e a falta de verdadeira espiritualidade dentro da Igreja Católica. A obra mostra padres que, em vez de serem guias morais e espirituais, estão envolvidos em escândalos, pecados e abusos de poder. A crítica não é apenas ao comportamento individual de Amaro, mas ao sistema que permite e, em certa medida, encoraja esses comportamentos.

A própria sociedade portuguesa também é alvo de crítica, sendo retratada como hipócrita. As aparências são mantidas a qualquer custo, enquanto a moralidade verdadeira é frequentemente negligenciada. Personagens como S. Joaneira, que promove encontros entre padres e mulheres, e outros membros da comunidade de Leiria, que fofocam e julgam, exemplificam essa duplicidade.

E, claro, também bem presente, como um dos temas centrais, está a tensão entre o desejo carnal e as exigências do dever religioso. A obra questiona a repressão do desejo natural imposta pela Igreja, sugerindo que tal repressão leva à hipocrisia e à corrupção. 

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP
André Oliveira consegue agarrar bem na história originalmente tecida por Eça de Queirós, honrando a relevância da mesma e, ao mesmo tempo, adaptando-a de forma convincente para banda desenhada, utilizando as valências e possibilidades narrativas próprias da 9ª arte. Quem não conhece a história original poderá ficar com uma ideia muito clara da mesma, e quem já a conhece tem aqui mais uma oportunidade para um refrescante e novo mergulho nesta obra de valor incomensurável.

Nota ainda para o texto utilizado por André Oliveira que consegue manter o bom ritmo e dialética da escrita de Eça de Queirós sem o recurso a uma transcrição pura. E isto revela, lá está, a capacidade de André Oliveira para as palavras, por um lado, mas também para a narrativa em banda desenhada, por outro.

Mas se a adaptação do argumento por André Oliveira resulta, as ilustrações de Ricardo Santo também funcionam na perfeição para este O Crime do Padre Amaro

Tratando-se de uma história que vive muito do enredo que envolve as personagens, levando a muitos diálogos e intriga junto das mesmas, os desenhos de Ricardo Santo, com a sua característica expressividade caricatural revelam-se a cereja no topo do bolo para que o livro funcione da melhor forma possível. Nesse ponto - e embora eu seja sempre um apreciador dos desenhos do autor - até tenho que dizer que Ricardo Santo se revelou ainda melhor do que em anteriores trabalhos. É que os olhares que as personagens trocam entre si, bem como os gestos e as reações faciais das mesmas, muito contribuem para que o leitor mergulhe profundamente no enredo e na suas mensagens subliminares.

O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP
Há uma ou outra expressão facial do Padre Amaro que me parece algo menos natural, talvez devido à tentativa de colocar a personagem com uma aparência mais andrógena do que o habitual, mas não é nada que seja demasiado grave. A "regra" é que funcione muito bem.

E onde Ricardo Santo também se revela especialmente inspirado nesta obra, é na forma dinâmica como planifica os seus quadros, com várias ilustrações maiores a serem divididas por vinhetas mais pequenas, e com os desenhos a transporem os limites das próprias vinhetas. Todas estas opções tornam a narrativa visual moderna, airosa e apelativa.

Em termos de edição, este livro apresenta as habituais características dos outros livros da coleção: capa dura baça, bom papel brilhante no miolo, boa encadernação e boa impressão. Destaque para o dossier de conteúdo adicional com 6 páginas, um pouco menos páginas do que o habitual para, presumivelmente, compensar o facto de também a história em BD ter mais duas páginas do que a regra nesta coleção. Uma nota ainda, positiva, para a capa, também um das mais apelativas de toda a coleção.

Em suma, esta adaptação de O Crime do Padre Amaro, uma das mais emblemáticas obras da literatura portuguesa, conquistou-me nos seus diversos níveis: a adaptação do argumento para banda desenhada por André Oliveira está bem conseguida, as ilustrações de Ricardo Santo fazem jus a este universo Queirosiano e, bem, a história, já amplamente conhecida pelos portugueses, continua apetitosa e totalmente atual, como se a obra original tivesse sido escrita há duas semanas e não há mais de 100 anos. Quer estejam a acompanhar ou não esta coleção da Levoir, este é mesmo um livro obrigatório!

NOTA FINAL (1/10):
9.1


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo - Levoir - RTP

Ficha técnica
O Crime do Padre Amaro
Autores: André Oliveira e Ricardo Santo
Adaptação a partir da obra original de: Eça de Queirós
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Julho de 2024

segunda-feira, 15 de julho de 2024

"O Crime do Padre Amaro" recebe adaptação em Banda Desenhada!



Uma das mais célebres obras de Eça de Queirós e, por conseguinte, da literatura portuguesa, recebe adaptação para banda desenhada! 

Falo de O Crime do Padro Amaro, primeiro romance de Eça de Queirós a ser publicado. A edição da adaptação para banda desenhada de tal obra é da editora Levoir e os responsáveis pela adaptação são André Oliveira, no argumento, e Ricardo Santo, nas ilustrações.

Estou super curioso com esta obra por vários motivos: em primeiro lugar, porque sou um grande admirador da obra de Eça de Queiroz e este O Crime do Padre Amaro, a par de obras como Os Maias ou O Primo Basílio, estão entre os meus livros favoritos da literatura nacional.

Além disso, também sou um fã do trabalho dos dois autores desta adaptação. André Oliveira tem demonstrado, a meu ver, ser dos melhores argumentistas de banda desenhada em Portugal, e Ricardo Santo como, aliás, até escrevi há uns dias, é dono de um estilo de ilustração por quem nutro grande admiração!

A expetativa está, portanto, alta e estou com muita vontade de ler este livro que deverá chegar às livrarias a partir de amanhã.

Por agora, deixo-vos com a nota de imprensa da editora e com algumas imagens promocionais.


O Crime do Padre Amaro, de André Oliveira e Ricardo Santo

José Maria Eça de Queirós nasceu a 25 de novembro de 1845, na Póvoa de Varzim, filho de um magistrado, também ele escritor, e morreu a 16 de agosto de 1900, em Paris.

É considerado um dos maiores romancistas de toda a literatura portuguesa, o primeiro e principal escritor realista português, renovador profundo e perspicaz da nossa prosa literária. O Crime do Padre Amaro, é o primeiro livro publicado de Eça de Queirós em 1875.

O Crime do Padre Amaro denuncia a corrupção dos padres, que manipulam a população em favor da elite, e a questão do celibato clerical. A sua publicação marca o início do Realismo português e é considerado por muitos a melhor obra do movimento.

André Oliveira, argumentista multipremiado com mais de uma vintena de obras publicadas em nome próprio, entre livros e minicomics, em diversas editoras nacionais, é também o autor da adaptação deste romance.

O ilustrador Ricardo Santo vive actualmente em Barcelona, onde exerce a atividade de designer industrial e é ilustrador, animador e autor de BD no tempo que lhe sobra. 

Em BD recebeu vários prémios em festivais e certames. O primeiro no Amora BD em 1991. E o último no Festival de BD da Amadora, em 2021.


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Ficha técnica
O Crime do Padre Amaro
Autores: André Oliveira e Ricardo Santo
Adaptação a partir da obra original de: Eça de Queirós
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
PVP: 15,90€

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Análise: Volta – Volumes 1 e 2

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano

A Polvo lançou recentemente, no Amadora BD, o livro Volta – O Despertar dos Gigantes de Gelo que assinala o regresso da dupla nacional constituída por André Oliveira e André Caetano a esta saga que está pensada para ser uma trilogia.

Oito anos separam o lançamento do primeiro e segundo álbuns. Lembro-me que já tinha lido, por alturas do seu lançamento, o primeiro álbum intitulado Volta – O Segredo do Vale das Sombras. Mas como já não me lembrava muito bem da sua história e para poder mergulhar melhor no universo deste segundo Volta, que tem o título de O Despertar dos Gigantes de Gelo, decidi voltar a ler, de uma só vez, os dois volumes e analisá-los conjuntamente. O que acabou por ser um exercício pertinente e interessante.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
É que, apesar de ser uma história em continuação, há, por ventura, uma certa quebra entre um volume e o outro. A vários níveis. Mas já lá irei.

Em primeiro lugar, e começando por abordar o trabalho de André Caetano ao nível das ilustrações, houve uma clara evolução e melhoria do Volta #1 para o Volta #2. Este segundo álbum é muito mais bonito e bem executado do que o primeiro ao nível do desenho. E não me entendam mal relativamente ao que acabei de escrever. Volta #1 já era um álbum bastante bonito, sim, onde ficava claro o potencial e skill de Caetano nas ilustrações e na capacidade de construir toda uma tónica visual única e especial.

No entanto, aquilo que o autor faz neste O Despertar dos Gigantes de Gelo é manifestamente (ainda) mais especial! Desde logo, o traço a preto e branco de André Caetano, onde as camadas a cinza aumentam a textura visual das ilustrações, parece mais confiante, limpo e dinâmico a todos os níveis. A utilização do preto e branco, onde o traço por vezes é mais grosso e seguro de si mesmo, apresenta-se-nos, pois, com mais beleza. E até mesmo a própria utilização do formato italiano (horizontal) parece ser mais bem aproveitada pelo autor para nos passar uma experiência mais imersiva e cinematográfica. E isto já para não falar nos maravilhosos cenários - onde as tempestades de neve parecem congelar-nos - nas belas cenas de ação e nos variados monstros que André Caetano tão bem (re)cria.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
E, depois, sucede algo bastante interessante neste Volta #2: é que parece que a história é talhada para ir ao encontro das competências, estilo e gosto de André Caetano. O autor, que domina muito bem o desenho dos ambientes paisagísticos, das florestas, das tempestades de neve, da natureza e até das figuras mitológicas do foro (mais) fantástico, tem neste Volta #2 um autêntico playground para se recriar. Em Volta #1 não houve tanto espaço para isso. Dito de outra forma, em Volta #1 parece que foi mais André Caetano que encaixou no estilo e forma de André Oliveira e, em Volta #2, parece ter ocorrido o oposto, isto é, que foi André Oliveira que melhor soube moldar a sua história para um mais bem conseguido aproveitamento do talento de André Caetano. Se se ganhou na parte das ilustrações, a parte do argumento deste Volta #2 ficou uns furos abaixo em relação ao primeiro volume.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Mas recuemos então à proposta de história que André Oliveira nos traz nesta saga. Tudo começa quando um ciclista chega - sem saber muito bem como - a uma pequena aldeia, denominada Reste du Monde, que parece parada no tempo. Embora este ciclista, que fica apelidado como Campeão, pareça vagamente contemporâneo, a verdade é que as gentes da aldeia parecem de um tempo mais longínquo ainda. O que causa uma interessante dúvida e insegurança na população local. E embora Campeão esteja de passagem, acaba por permanecer em Reste du Monde, encontrando o amor e debatendo-se com alguns dos monstros que parecem atormentar a aldeia. Ou serão os monstros que o atormentam a ele mesmo? Há, portanto, um cariz de conto fantástico ou de terror nesta história, embora a mesma assuma com mais inclinação um tom de mistério que, quanto a mim, envolve melhor o leitor, fazendo-o cismar sobre o que pode ou não vir a acontecer às personagens. Por outro lado, Campeão também parece ter sido vítima de uma experiência traumática no seu passado que o inviabiliza de continuar o seu percurso pessoal sem que enfrente certos esqueletos do seu armário. Acaba por acontecer uma revelação, já no final desse primeiro volume, que responde a algumas das questões levantadas.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Em Volta #2, onde a escrita de André Oliveira, expetavelmente, se mantém profunda e bem explanada – embora, por vezes, algo vaga -, acompanhamos a caminhada de Campeão e Violeta por montanhas geladas, atravessando inóspitas tempestades de neve. Desta vez, após ficar soterrado por uma avalanche, o casal acaba por ser resgatado por criaturas fantásticas. Os sonhos de Campeão continuam a atormentá-lo – enquanto nos dão algumas luzes sobre o seu passado – mas, tirando isso, e a companhia de Violeta, não há muitas coisas que unam este segundo volume ao primeiro volume da saga. Não diria que exista um fio condutor. Pelo menos, de forma direta e/ou coerente. A menos, claro, que no terceiro e último volume, André Oliveira venha a cozer todas estas linhas soltas. Mas se, por um lado, este corte com o enredo do primeiro para o segundo tomo, parece algo abrupto e até mesmo aleatório, este O Despertar dos Gigantes de Gelo acaba por ter a vantagem de também poder ser lido de forma isolada. Sem que se tenha lido ou se conheça, sequer, o álbum anterior.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Mesmo assim, é verdade que a figura de Campeão surge novamente carregada de alegorias e metáforas que, embora nunca sejam realmente resolvidas ou reveladas pelo argumentista, servem como ponte de ligação para a intrincada conceção do protagonista da história. Campeão volta a ser reconhecido pelos demais como um predestinado para algo maior. Ao contrário do primeiro volume de Volta onde parecíamos estar perante um episódio de Twin Peaks, neste segundo tomo parece que aterrámos dentro de um dos filmes da saga de O Senhor dos Anéis. Há muitas criaturas fantásticas e falantes (algumas com um tamanho semelhante a um colosso) que encetam um conflito entre dois grupos/espécies diferentes que parecem reclamar a presença de Campeão junto de si. No final, André Oliveira dá-nos mais umas pistas sobre o passado do protagonista.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
É sempre um pouco lato – e por vezes injusto – tecer uma opinião sobre uma história que ainda não está fechada. Ainda assim, quer Volta #1, quer Volta #2, procuram através do mistério – no primeiro volume – e da fantasia – no segundo volume – oferecer-nos uma personagem com um passado sombrio que merece ser resolvido. O argumento acaba por ser bastante abstrato e por vezes confuso, mas também é verdade que nos faz pensar e indagar para onde nos quererá levar o autor. Não sendo, para já, a obra de André Oliveira que mais me agrada, creio que se o autor conseguir fechar com chave de ouro as inúmeras portas que foi abrindo ao longo destes dois volumes, bem como as pontas soltas que deixou pendentes, pode vir a ser uma trilogia brilhante. Mas veremos o que acontece.

Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Em termos de edição, os livros apresentam capa dura com bom papel brilhante, boa encadernação e boa impressão. Isto não esquecendo que o grafismo dos livros – para o qual contarão, certamente, as (boas) opções estéticas de ambos os autores – é muito bonito. Uma nota mais que positiva tem que ser dada à ilustração da capa deste Volta #2. Não é segredo para ninguém que André Caetano é um excelente capista e também é verdade que qualquer uma das duas capas de Volta #1 – especialmente a primeira – é muito bela. Porém, neste Volta #2 o autor foi especialmente feliz. Muitas vezes digo que uma boa capa pode vender um livro. É o caso. Só de olhar para a belíssima ilustração desta capa, já apetece comprar e mergulhar neste ambiente gelado, tão bem reproduzido por André Caetano.

Em suma, ainda que sejam a primeira e segunda parte de uma trilogia, Volta #1 e Volta #2 são bastante diferentes entre si. Do ambiente taciturno e misterioso do primeiro volume, passamos para um registo do fantástico, com inúmeros monstros e criaturas mitológicas que, mesmo criando uma certa rutura algo brusca com o volume anterior e tendo algumas pontas soltas ao nível do argumento, são o engodo para a confirmação do enorme talento desta dupla criativa em termos de banda desenha nacional. Se é que tal “confirmação” ainda é necessária.


NOTA FINAL (1/10):
8.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Fichas técnicas
Volta #1 – O Segredo do Vale das Sombras
Autores: André Oliveira e André Caetano
Editora: Polvo
Páginas: 96, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 168 mm
Lançamento: Dezembro de 2015


Volta – Volumes 1 e 2, O Segredo do Vale das Sombras e O Despertar dos Gigantes de Gelo, de André Oliveira e André Caetano - Polvo
Volta #2 – O Despertar dos Gigantes do Gelo
Autores: André Oliveira e André Caetano
Editora: Polvo
Páginas: 96, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 240 x 168 mm
Lançamento: Outubro de 2023

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Kingpin lança livro de André Oliveira na língua inglesa!



A Kingpin Books está de volta ao lançamento de banda desenhada com a reedição da obra Milagreiro, de André Oliveira e vários ilustradores nacionais de referência!

Esta nova versão da obra originalmente publicada pela editora Polvo, tem a particularidade de ser na língua inglesa - daí chamar-se Miracle Worker - e apresentar-se num formato maior, com uma belíssima nova capa da autoria de Jorge Coelho, e com nova legendagem e cores melhoradas.

O livro estará já disponível a partir deste fim de semana, no Maia BD, sendo apresentado no próprio certame com a presença dos autores André Oliveira e Filipe Andrade.

Mais abaixo, deixo-vos com algumas imagens promocionais do livro e com a nota de imprensa da editora.

Miracle Worker, de André Oliveira, Jorge Coelho, André Caetano, Filipe Andrade, Nuno Plati, Ricardo Cabral, Ricardo Tércio e Ricardo Drumond

Oito anos depois da edição original da Polvo, “Milagreiro” ganha um novo fôlego, agora numa versão em Inglês, num formato maior, com nova capa de Jorge Coelho, nova legendagem e cores melhoradas. 

Esta edição inclui ainda um novo epílogo, publicado antes apenas na antologia TLS vol.2: Silêncio, e um prefácio original do argumentista polaco Bartosz Sztybor.
Na sequência da misteriosa morte do seu irmão Cyril, Aya desafia a mais poderosa e obscura organização do mundo, para descobrir o que realmente aconteceu. Com a ajuda de Heron, um assassino profissional à beira da reforma, e movida pela força da sua própria coragem, Aya vai descer ao inferno…para perceber se afinal há ou não milagres.

Ficha técnica
Miracle Worker
Autores: André Oliveira, Jorge Coelho, André Caetano, Filipe Andrade, Nuno Plati, Ricardo Cabral, Ricardo Tércio e Ricardo Drumond
Editora: Kingpin Books
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 19,50 x 27,50 cm
Língua: Inglês
PVP: 12,99€


segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Antologia Umbra está de volta!


Boas notícias para os seguidores deste belo projeto! A Antologia Umbra está de volta! Depois de mais uma campanha de crowdfunding bem sucedida, o 4º número desta antologia deverá chegar-nos nas próximas semanas!

Há um lançamento previsto para ocorrer no dia 27 de Maio, na Kingpin Books. De resto, o livro deverá ser apresentado nos vários eventos que se aproximam, nomeadamente na Feira do Livro de Lisboa, no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja e no Maia BD.

Para já, estão confirmadas as participações dos autores Filipe Abranches (mentor do projeto), Simon Roy, André Oliveira, Rita Alfaiate, Pedro Moura, Marco Gomes, Réza Benhadj e James Romberger.

Mais abaixo, deixo-vos com as sinopses de cada uma das histórias que compõem esta antologia, bem como com algumas imagens promocionais.


Umbra #4, de Vários Autores

Torre, de Filipe Abranches
Numa narrativa de historiografia alternativa, um elemento das forças de segurança perde-se nas tramas conspirativas que se urdem perto de uma imensa e misteriosa Torre, erguida numa Lisboa dos anos 80 fustigada por uma pandemia e cataclismos climáticos. Sob a vigilância da Torre, o suspense...


A Jóia da República Central, de Simon Roy
Já se passaram décadas desde as batalhas de Altamira, mas um jovem investigador quer descobrir os últimos traços dos pilotos de amplificadores. Um passeio pelas montanhas pode desvendar memórias, destroços e até rivalidades. O tempo sara as feridas?

Nic, de André Oliveira e Rita Alfaiate
Cuidado ao fugir das responsabilidades da vida, e não olhar para os dois lados ao atravessar a estrada, pois o perigo que nos aguarda pode ser o perigo que instigamos.


As brasas e a lenha, de Pedro Moura e Marco Gomes
A guerra é um tempestade que morde tudo em redor. 

Uma casa é um pequeno bote que singra nas tumultuosas águas, e em perigo protege uma família isolada. 

Que pode um pai fazer quando os monstros se aproximam?

Caranguejo Real – O Detective Paranormal Francês, de Réza Benhadj
Imaginemos um mundo em que um argumento de William Peter Blatty acabaria realizado por Jean-Pierre Melville e estamos próximos da chave desta história de um detective muito particular cujos casos não são resolvidos com a ponta de um revólver, mas sim com rituais e associações livres. Mas todos os ingredientes constituem um puzzle dramático.


Lazarus, de James Romberger
Para Hobbes, o estado pré-social da humanidade era o da bellum omnium contra omnes, “a guerra de todos contra todos”. A tecnologia salva ou fecha o ciclo? Joe sabe a resposta, o outro Joe ainda não. Se calhar não convém olhar o inimigo muito de perto, não nos assustemos com o reflexo.


terça-feira, 2 de novembro de 2021

Lançamento: Quarentugas




Uma das várias (boas) propostas que a editora Polvo nos trouxe neste Amadora BD foi o lançamento de Quarentugas, com argumento de André Oliveira e ilustrações de Pedro Carvalho.

O projeto Quarentugas surgiu nas redes sociais, com várias publicações que procuraram refletir de forma humorística sobre as consequências da pandemia covid-19 e o confinamento a que este vírus nos obrigou. Agora, essas publicações são todas reunidas num livro: este Quarentugas.

Abaixo, fiquem com a sinopse da obra e algumas imagens.


Quarentugas, de André Oliveira e Pedro Carvalho
Um dia, estávamos a fintar pessoas no shopping, a pedir mais um copo na esplanada ou a desesperar na fila da bilheteira do cinema.

No dia seguinte, ficámos fechados em casa, a tentar que o vírus não deslizasse por debaixo da porta. 

As opiniões dividiam-se (ainda se dividem) e não houve meio termo: ou vinha o apocalipse ou era tudo uma fantochada. E se há coisa que o “tuga” faz bem, é borrifar-se no meio termo.

Para afastar a angústia e o desgosto, só resta uma alternativa ao ser humano: rir a bom rir. Dançar o samba mesmo na cara daquilo que nos mete medo. 

E depois juntar tudo num livro.


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Ficha técnica
Quarentugas
Autores: André Oliveira e Pedro Carvalho
Editora: Polvo
Páginas: 80, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
PVP: 9,90€


quinta-feira, 20 de maio de 2021

Análise: Living Will (Série Completa)

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara


Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa

Living Will é um caso único na banda desenhada portuguesa. E por vários motivos. 

Desde já, porque esta série, com argumento de André Oliveira e ilustrações de Joana Afonso e de Pedro Serpa, foi publicada de uma forma bastante diferente daquilo a que estamos acostumados. Ao invés de ser publicada enquanto livro, num só volume, foi sendo publicada entre 2013 e 2018, em 7 pequenas revistas de 16 páginas.

Mas André Oliveira não ficou por aqui. Embora toda a equipa seja portuguesa, esta é uma banda desenhada lançada em inglês. Desconheço os propósitos do autor perante esta opção. Possivelmente, esta foi uma iniciativa que procurou exportar para mais mercados estrangeiros a série Living Will. Ou, pelo menos, uma forma de testar o conceito.

Mas pondo de parte aquilo que é diferente e inconvencional em Living Will, importa dizer que esta é uma obra maravilhosa e que, além de testar coisas novas, também é ímpar na banda desenhada nacional devido à qualidade que dela advém.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
A história passa-se em Inglaterra e começa quando, no dia em que perde o seu animal de estimação, Will se apercebe que já não lhe restam razões para viver. Já tendo ultrapassando a barreira dos 80 anos, é, hoje em dia, um homem amargurado que nunca conseguiu superar a morte do amor da sua vida, Judith. O cão era, pois, o engodo que o prendia à vida. Mas, agora que o seu amigo de quatro patas morreu, parece que não há mais razões para que Will possa viver. No entanto, depois de encontrar uma velha mala de recordações de outrora, uma nova luz nasce dentro de si, que incita Will a querer resolver as coisas que ficaram pendentes na sua vida. Os unfinished businesses, vá, como os ingleses lhes chamam. 

E só neste ponto, André Oliveira já consegue construir uma sólida ponte para com os leitores. É que todos nós, de uma forma ou de outra, temos assuntos mal resolvidos. Gestos, atitudes, palavras que dissemos ao longo da nossa vida e que magoaram outras pessoas. Ou que, mesmo que não tenham magoado, nos fizeram tomar outro caminho e afastarmo-nos de pessoas que, certo dia, já foram nossas próximas. É por isso que Will começa a refletir naquilo que foi a sua vida, naqueles que deixou ficar mal, nas ações que poderiam ter sido melhores e decide tentar emendar o mal que já estava feito.

Infelizmente, as coisas não lhe saem exatamente como ele desejaria e acaba por ficar até mais deprimido à medida que vai levando a cabo a sua demanda. Agora que está velho, morrer em paz é tudo o que já só ambiciona, mas o mundo não parece estar do seu lado nesta sua última missão. Todavia, a paz sempre parece chegar para quem a procura incessantemente e, no final, depois de nós, leitores, levarmos socos atrás de socos na nossa sensibilidade, André Oliveira permite-nos sossegar um pouco com o silver lining possível que podemos retirar de um tema tão irrevogável como a morte.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Pelo meio, aparecem algumas personagens cujas atitudes, mesmo sendo aparentemente independentes da vida de Will, acabam por, cada uma à sua maneira, contribuir para uma certa sensação de efeito borboleta, com todas as coisas a encaminharem-se para um desenlace global numa teia imprecisa de comportamentos que, de um modo ou de outro, podem influenciar ou ser influenciados por outros tantos. São subnarrativas, como as da apresentadora de televisão, Betty Bristow, ou as do médico, Terry, que até podem parecer algo desfasadas ou desnecessárias, mas que, a meu ver, contribuem para a construção de teias de relacionamentos à volta da personagem principal, Will.

O texto de André Oliveira – mesmo sendo em inglês – é soberbo, tocante, pleno de significados e comovente até. Cada diálogo, cada palavra, parece ser meticulosamente introduzida na série, pelo autor. Como é bem sabido por aqueles que me seguem, fico sempre rendido a todo e qualquer texto que consegue ser quotable. E porquê? Porque essa característica permite-nos extrair de uma história significados adicionais que podemos, depois, aplicar num outro contexto nas nossas vidas. E se há obra que é quotable é este Living Will. Do princípio ao fim da obra somos brindados com frases e pensamentos que nos fazem parar um pouco para refletir. E não são só as frases ou as ideias transpostas para as mesmas que são inspiradas/inspiradoras. A própria utilização das palavras certas no momento certo, é outro dos trunfos do autor. O próprio título, aliás, é de uma inspiração e jogo de palavras muito felizes. André Oliveira é um verdadeiro pintor das palavras, que sabe dotar as suas histórias de uma generosa paleta de cores que nos canta melodias arrebatadoras. A qualidade do texto de André Oliveira é tão boa que quase me chega a irritar, vejam lá! Até mesmo os dois breves parágrafos em prosa com que, na última página, o autor sintetiza cada um dos livros, são de uma qualidade e de uma inspiração incríveis.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Mas Living Will não é apenas uma interessante e bem escrita história.

Também existe a arte fenomenal de Joana Afonso. Esta jovem autora está num pequeno – pequeníssimo! – rol de autores portugueses que têm o seu estilo de ilustração tão claramente demarcado. Com tanta personalidade. O chamado signature style, como dizem os ingleses. Mais do que dizer que Joana Afonso é uma excelente ilustradora – e é! – o que me parece mais louvável é o universo próprio, o tal signature style, que a sua criação tem. Poderão existir muitos ilustradores mais tecnicamente evoluídos do que Joana Afonso sem alguma vez conseguirem criar a sua própria imagem de marca. Mas a autora portuguesa já o conseguiu. E isso é digno de todos os louvores.

Dito por outras palavras, da mesma forma que, quando ouvimos rádio, nos basta escutar duas ou três notas para que facilmente saibamos de que se tratam das guitarras de Brian May, de Santana ou de Slash, que têm um som tão característico, acho que, paralelamente, se passa o mesmo com os autores de banda desenhada que, à semelhança de Joana Afonso, têm um estilo tão próprio. Basta um breve vislumbre a um canto apenas de uma ilustração, para que saibamos que se trata de um trabalho de Joana Afonso. E sendo isso tão especial e saboroso, também acaba por ter o seu peso negativo neste Living Will. Mas já lá irei.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Quero ainda sublinhar o fantástico estilo de traço da autora que é caricatural, com personagens a exibir grandes cabeças, sobrancelhas muito grossas e olhos muito pequenos. São personagens que trazem consigo uma grande panóplia de emoções. Ora, estando nós perante uma história de estilo slice of life, que assenta toda a sua moral nas emoções que a vida coloca no nosso âmago, dificilmente haveria alguém melhor para ilustrar esta história do que Joana Afonso. O seu trabalho é magnífico e encaixa que nem uma luva no texto de André Oliveira.

Porém, também devo ser justo e sublinhar que ao longo dos 7 livros – dos quais Joana Afonso ilustra cinco – pareceu-me que a autora foi perdendo algum fulgor na sua criação. Ao nível dos cenários, que passaram a ser mais simplistas; da planificação, que passou a arriscar menos e ser menos dinâmica; e, de uma forma geral, ao nível de todos os outros pequenos detalhes que vão parecendo menos inspirados nos últimos números, deixando no ar a suspeição de que foram feitos um pouco mais "à pressa". Não é nada de gritante ou que faça a qualidade da arte ilustrativa baixar tão substancialmente assim, mas é algo a que deve ser dado nota, ainda assim.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Algo mais gritante, em termos de fazer o meu nariz ficar torcido, são as ilustrações do autor Pedro Serpa. O autor que não me leve a mal por esta afirmação, mas, se há um elo fraco nesta banda desenhada, são os desenhos de Pedro Serpa. Sendo justo, também devo dizer que o autor não tinha a vida minimamente facilitada. Como já disse, se estamos perante uma autora com um estilo de ilustração tão vincado, Pedro Serpa só tinha duas hipóteses: ou tentar copiar à descarada o estilo de Joana Afonso ou desprezar o estilo da autora e fazer a sua própria interpretação. E, lá está, acredito que qualquer que fosse a opção do autor, ficaria sempre aquém da qualidade pretendida. Pedro Serpa não fez necessariamente nenhuma das duas opções que assinalo. Desenhou com o seu estilo, é certo, mas tentando, da melhor forma que as suas capacidades ilustrativas assim o permitiam, prestar tributo ao estilo de Joana Afonso. O resultado ficou a meio da ponte. 

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Não é que os desenhos de Pedro Serpa sejam feios ou mal conseguidos, mas diria que ficam muito aquém dos desenhos de Joana Afonso. E quando digo “aquém” não estou tanto a dizer se são “melhores” ou “piores” – até porque isso será sempre subjetivo - mas mais que são desenhos demasiadamente diferentes. Imaginem o que é estarem a ver um filme de Tim Burton, que tem o seu estilo tão característico e, a meio desse filme, uma ou duas cenas do mesmo, serem realizadas por Martin Scorsese? Não teria nada que ver uma coisa com a outra, certo? E faria com que a continuidade e fluidez da obra fossem postas em causa, correto? Pois bem, aqui isso também acontece. O texto de André Oliveira, sempre muito inspirado, ainda consegue unir as pontes entre os volumes que Pedro Serpa assina (os volumes 4 e 6) e os de Joana Afonso mas, ainda assim, quanto a mim, é este o calcanhar de Aquiles desta obra. Pelo menos, em termos visuais.

Calculo que esta opção tenha sido tomada devido à incompatibilidade de agenda criativa entre André Oliveira e Joana Afonso. E isto sem desprimor para o Pedro Serpa, que acabou por fazer as vezes de bombeiro para apagar um fogo. Como crítica construtiva, acho que se por acaso a história tivesse mudado de tempo ou de ambiente nos tomos que Pedro Serpa ilustra – por exemplo, se fosse um flashback, um pensamento ou um sonho das personagens – talvez esta diferença de estilos ilustrativos não fosse tão difícil de “engolir”. Mas dá-me claramente a ideia que André Oliveira já tinha a história delineada – nem que fosse na sua cabeça – e que, portanto, nem deve ter equacionado este truque narrativo para fazer face à mudança de desenhadores.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Destaque ainda para o facto de cada um dos 7 capítulos ter sempre uma cor que prevalece em termos de paletas de cores: no primeiro volume os tons são em vermelho acastanhado, no segundo são em azul, no terceiro são em roxo, no quarto são em laranja, no quinto são em verde, no sexto são em cinza e preto e no sétimo são em castanho. Um pequeno detalhe que funciona muito bem e que dá harmonia e diversidade, ao mesmo tempo, à obra.

Olhando para o todo, esta é uma banda desenhada que adoro. O argumento e qualidade do texto de André Oliveira são do melhor que já foi feito em termos de banda desenhada em Portugal. A arte de Joana Afonso é magnífica - mesmo que mais para o final me pareça um pouco mais preguiçosa. A arte de Pedro Serpa fica, infelizmente, demasiado off em Living Will. E depois temos a edição, tão diferente, que já referi no início deste texto.

Sob a chancela da Ave Rara, lá foi sendo publicada, durante 5 anos, esta história que, no total, contabiliza 118 páginas. Tratando-se, certamente, de um exercício, de uma aposta bastante indie, parece-me algo digno de respeito. No entanto, também acho que este tipo de aposta em fascículos talvez tenha impossibilitado que uma grande parte do público, dito mais clássico, pudesse conhecer a obra. Foi o meu caso até. Na altura do lançamento do primeiro fascículo, li-o e fiquei bastante agradado. Mas depois, devido a tantos livros que se vão sobrepondo, acabei por perder ligação à série. E é por isso que defendo que, estando nós perante uma banda desenhada tão boa, Living Will merece ser reeditado num só volume. Passar a ser um único livro facilmente acessível a todos os leitores. Livro esse que deverá ser lançado em português. Nada contra a iniciativa de ter lançado a obra em inglês – e o inglês de André Oliveira é extremamente bom, diga-se – mas esta banda desenhada tem que ser lançada em português.

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara
Concluindo a análise a Living Will, faço aqui uma pequena ponte com a música e cinema, como já vai sendo um hábito meu, dado o meu background artístico. O realizador Quentin Tarantino disse há uns anos que o compositor Ennio Morricone era um dos seus compositores favoritos, mas não apenas dentro da composição de música para cinema. Tarantino comparou-o a Mozart ou a Beethoven. (E já agora, faço das suas as minhas próprias palavras). Para mim, André Oliveira não é apenas um dos melhores escritores de banda desenhada em Portugal. É um dos melhores escritores portugueses. Sim, leram bem.

E deixo ainda um apelo: Living Will é uma autêntica pérola da banda desenhada portuguesa, mesmo com os seus tiques de originalidade, consumados na edição por pequenos fascículos e na língua inglesa. Os leitores de bd, os autores envolvidos nesta obra e a própria obra merecem uma edição de qualidade em português que compile estes 7 números num só volume. E, se não for pedir demasiado, que seja uma edição em capa dura, com bom papel e que quer as 7 capas dos fascículos (que são lindas!) quer os textos em prosa que terminam os pequenos livros (que são profundos!) sejam preservados nessa nova edição. E, já agora, venham de lá extras e estudos de personagens. Se algum dia tivermos esse livro, estará entre os mais obrigatórios livros de banda desenhada portuguesa – e em português.


NOTA FINAL (1/10):
9.2


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Fichas técnicas
Living Will – Vol. 1
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: 2013

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 2
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: 2014

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 3
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Novembro de 2014

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 4
Autores: André Oliveira e Pedro Serpa
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Junho de 2015

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 5
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Novembro de 2015

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 6
Autores: André Oliveira e Pedro Serpa
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Junho de 2017

Living Will (Série Completa), de André Oliveira, Joana Afonso e Pedro Serpa - Ave Rara

Living Will – Vol. 7
Autores: André Oliveira e Joana Afonso
Editora: Ave Rara
Páginas: 16, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafo
Lançamento: Outubro de 2018