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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Análise: Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad

José Mujica, mais conhecido como Pepe Mujica, é uma das figuras políticas mais singulares da América Latina contemporânea. E, diria até, de toda a política internacional contemporânea. E há muito tempo eu nutria verdadeira admiração por este homem. Recordo que estávamos ainda em 2012 quando lancei, juntamente com os meus colegas da banda Alves Baby, a música Uruguai, que conta com um discurso de Pepe Mujica. Para os interessados, poderão ouvir esta música aqui

Foi, portanto, com muita satisfação que tive conhecimento desta obra, bem como que a Levoir a iria lançar. Com a morte de Mujica em Maio deste ano, a editora não esperou muito tempo até nos disponibilizar a obra, com o lançamento conjunto com o jornal Público.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
A história e, acima de tudo, o exemplo de Pepe Mujica é algo verdadeiramente incrível. Ex-guerrilheiro tupamaro, preso durante anos em condições duríssimas, tornou-se, em 2010, o presidente do Uruguai, ganhando projeção internacional pelo seu estilo de vida simples, desprovido de riquezas e mordomias, e pela defesa da democracia, da justiça social e da simplicidade. A sua trajetória, marcada por momentos de resistência armada, cárcere solitário e liderança política, (ainda) faz dele um símbolo de perseverança e de autenticidade.

E este Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, da autoria de Matías Castro e Leo Trinidad, parte dessa vida complexa e fascinante para construir uma narrativa gráfica que é, ao mesmo tempo, biográfica e um reflexo direto da história recente do Uruguai que, durante a vida de Mujica, atravessou épocas de grande tensão.

Uma coisa que apreciei especialmente neste livro é que, desde o início, a obra surpreenda pela maneira como quebra a chamada "quarta parede". Os autores inserem-se na própria narrativa, comentando o processo de pesquisa e escrita, e mostrando as dificuldades em condensar uma vida tão cheia em páginas de BD. Este recurso funciona muito bem, porque humaniza também os narradores e cria cumplicidade com o leitor. É uma obra sobre Mujica, claro, mas também é uma BD sobre a feitura deste livro sobre Mujica.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Todavia, a experiência de leitura nem sempre é equilibrada. Ao longo da obra, os autores parecem sentir a necessidade de inserir uma quantidade maior do que desejável de acontecimentos políticos, muitos deles secundários na dimensão global da vida de Mujica. Essa sobrecarga acaba por tornar a leitura densa e, por vezes, confusa. Embora seja compreensível a tentativa de contextualizar Mujica no panorama histórico e político uruguaio, essa insistência em acumular factos e datas fragmenta a narrativa. E, consequentemente, o leitor pode perder o fio à meada, sobretudo quando os cruzamentos temporais não são suficientemente claros ou coesos.

Essa densidade documental contrasta, porém, com algumas soluções narrativas mais dinâmicas, que tornam a leitura menos monótona. A inserção dos autores como personagens, já mencionada, bem como alguns diálogos em tom mais leve, ajudam a equilibrar o peso factual. Ainda assim, a sensação de excesso de factos mantém-se.

O final do livro é um dos pontos altos. Quando Castro e Trinidad finalmente têm a oportunidade de conversar com Mujica, a narrativa atinge um patamar mais íntimo e autêntico. O encontro funciona quase como uma recompensa, quer para os autores, quer para os leitores, ao longo do caminho percorrido e dá uma dimensão emocional mais forte ao conjunto. Vivi três momentos enquanto lia este livro: o início foi positivo, pela dinâmica narrativa; o meio foi um pouco difícil de acompanhar e começou a cansar-me, mas o final do livro, com este encontro dos autores com Mujica, acabou por "salvar" a obra. Termina muito bem.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
E mesmo que a história seja contada de forma fragmentada, mantém interesse. A vida de Mujica é tão rica em episódios significativos que, apesar dos problemas mencionados, o livro acaba por transmitir a essência de uma figura rara na política mundial: um líder marcado pela coerência entre discurso e prática, pelo desapego material e pela devoção às causas coletivas.

Já do ponto de vista visual, os desenhos de Leo Trinidad também se apresentam como uma faca de dois gumes. O estilo "cartoonesco" das figuras, sobretudo nos rostos das personagens, funciona bem, transmitindo expressividade e aproximando o leitor da figura de Mujica. É um recurso estilístico que acrescenta simpatia à narrativa, podendo fazer lembrar, com as devidas diferenaças, o trabalho de Paco Roca ou Fabien Tolmé.

Contudo, a execução gráfica sofre bastante quando se trata dos cenários e de outros elementos de fundo. A ausência de detalhes em ambientes, edifícios ou veículos cria uma sensação de vazio visual e, em alguns casos, dificulta a compreensão espacial e temporal da narrativa.

Essa fragilidade gráfica torna-se mais evidente pela própria densidade factual do texto. Com tantos dados, referências históricas e cruzamentos temporais, a ilustração deveria desempenhar um papel mais forte na clarificação e organização visual. Como isso não acontece, por vezes a obra perde foco e clareza.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Não há como dizer de outra forma: em muitos momentos parecem desenhos feitos "à pressa", sem o primor e nível de detalhe que mereciam, dando a ideia de que estamos a ler um storyboard. E há que saber diferenciar uma coisa da outra. Há quem diga que storyboards e bandas desenhadas são a mesma coisa. É uma opinião muito redutora e que revela, acima de tudo, desconhecimento sobre os dois meios.

Ainda assim, uma nota positiva tem que ser dada à forma como Leo Trinidade optou por ilustrar a parte da história em que Pepe Mujica está preso. Os desenhos ganham uma nova vida nessa parte, sendo impactantes.

A edição da Levoir, contrariamente às outras edições estrangeiras do mesmo trabalho, dividiu a obra em dois volumes. Ora, se já defendi a editora quando, por exemplo, no caso de Moby Dick, de Chabouté, optou por editar a obra em dois volumes, tal como a mesma havia sido originalmente editada - mesmo que, depois, houvesse várias edições estrangeiras integrais e mais bem conseguidas - neste caso, tenho que afirmar que esta opção neste Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha foi um desserviço à obra. Talvez a "culpa" desta opção não deva recair na própria editora, pois, segundo a informação que a mesma me deu, esta opção de dividir a obra em dois, foi do próprio jornal Público que preferiu o lançamento desta forma. Fica a nota.

De resto, os dois livros apresentam capa dura baça, bom papel baço no miolo e uma boa encadernação e impressão. O esquema de cores que diferencia os dois livros - sendo um a vermelho e outro a azul - até acabou por funcionar bem em termos visuais.

Em síntese, Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha deixa sentimentos mistos. É positivo que exista uma BD que traga Mujica a novos públicos, valorizando uma vida que merece ser conhecida. A originalidade da narrativa e a força do final equilibram parte das fragilidades. Porém, o excesso de factos, a fragmentação do enredo e a pobreza de detalhes nos desenhos impedem que o livro atinja todo o seu potencial. Fica, no entanto, como uma obra válida, sobretudo pelo testemunho de um homem que desafia os modelos tradicionais de poder. Fossem todos os políticos como Mujica e talvez as opiniões ultra polarizadas que os regimes democráticos do mundo ocidental enfrentam não tivessem tanta expressão.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Fichas técnicas
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha - Volume 1 (de 2)
Autores: Matías Castro e Leo Trinidad
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha - Volume 2 (de 2)
Autores: Matías Castro e Leo Trinidad
Editora: Levoir
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Coleção 25 Imagens da Levoir e do Público chegou ao fim!




Foi no passado dia 29 de Agosto que chegou ao fim a coleção 25 Imagens, editada pela Levoir com o jornal Público. Cada um dos 7 livros tinha a particularidade de ter apenas 25 ilustrações mudas que contavam uma história sem o recurso de palavras.

Para fecho desta coleção que reunia nomes célebres da banda desenhada internacional, a Levoir teve a bela iniciativa de lançar um trabalho inédito, do autor português Vasco Colombo.

Mais abaixo, deixo-vos com a sinopse da obra e com algumas imagens promocionais.


O Cabo de 2.102.400 km, de Vasco Colombo

A 29 de Agosto chega ao fim a colecção 25 Imagens, editada pela Levoir e o Público. Este projecto composto por 7 volumes, 6 títulos internacionais e este sétimo, O Cabo de 2.102.400 km da autoria de Vasco Colombo, inédito. Marcando assim o regresso do artista à BD.

Vasco Colombo nasceu em Lisboa, onde vive. Iniciou a sua actividade como ilustrador e autor de banda desenhada. As suas ilustrações foram publicadas em inúmeros jornais e revistas, tanto nacionais como internacionais, assim como em projectos de diversa natureza. Os seus trabalhos de banda desenhada surgiram em publicações periódicas, embora de forma espaçada e ocasional. É director de arte e designer no atelier +2 designers, do qual é um dos sócios fundadores, e onde desenvolve projectos editoriais e gráficos para grupos de media, editoras, instituições culturais e empresas. Apesar de nunca ter deixado de criar BD optou nos últimos anos por não os divulgar.

Neste livro, um homem descobre um cabo oculto. Procurando a sua origem, lança-se numa aventura, tão linear quanto enrolada em níveis distintos da sua existência. 

Uma viagem até ao fim do cabo, que não é senão uma metáfora das muitas relações que o ser humano estabelece na Terra e até mesmo com ela. 

Há uma razão matemática para o título, cuja pertença múltipla a várias equações revelaria propósitos diversos, mas, para os saber, também o leitor terá de puxar o fio à meada. 

Uma história sem palavras, a não perder.

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Ficha técnica
O Cabo de 2.102.400 km
Autor: Vasco Colombo
Editora: Levoir
Páginas: 32, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 265mm
PVP: 15,90€

terça-feira, 12 de agosto de 2025

TOP 10 - A Melhor BD lançada pela Levoir nos últimos 5 anos!



Hoje trago-vos a melhor banda desenhada que, nos últimos 5 anos, foi lançada em Portugal pela Levoir!

Porquê cinco anos? Bem, porque não só é um número redondo, como é o tempo de existência do Vinheta 2020. E isso tem sido estímulo para que nos últimos dias eu tenha feito um TOP 10 por editora. Afinal de contas, foram muitas e muitas as obras de BD com grande qualidade que, durante 5 anos, foram editadas em Portugal!

Mas centremo-nos na Levoir.

Depois de uma entrada em peso no lançamento de banda desenhada em Portugal, com a edição de inúmeras séries de comics americanos ou das icónicas coleções de Novelas Gráficas, entre outros lançamentos relevantes, a Levoir registou um período mais calmo por volta de 2020. Essa calma deu depois lugar a uma gradual retoma da atividade editorial por parte da editora.

Convém relembrar que este conceito de "melhor" é meramente pessoal e diz respeito aos livros que, quanto a mim, obviamente, são mais especiais ou me marcaram mais. Ou, naquela metáfora que já referi várias vezes, "se a minha estante de BD estivesse em chamas e eu só pudesse salvar 10 obras, seriam estas as que eu salvava".

Faço aqui uma pequena nota sobre o procedimento: considerei séries como um todo e obras one-shot. Tudo junto. Pode ser um bocado injusto para as obras autocontidas, reconheço, e até ponderei fazer um TOP exclusivamente para séries e outro para livros one-shot, mas depois achei que isso seria escolher demasiadas obras. Deixaria de ser um TOP 10 para ser um TOP 20. Até me facilitaria o processo, honestamente, mas acabaria por retirar destaque a este meu trabalho que procura ser de curadoria. Acabou por ser um exercício mais difícil, pois tive que deixar de fora obras que também adoro, mas acho que quem beneficia são os meus leitores que, deste modo, ficam com a BD que considero ser a "crème de la crème" de cada editora.

Sem mais demora, deixo-vos então com as minhas 10 obras preferidas que a Levoir editou entre o período de 2020 a 2025:

Já saiu o 5º volume da coleção 25 Imagens!


Saiu na passada sexta-feira, com o jornal Público, o mais recentre livro da coleção 25 Imagens, que a Levoir tem vindo a lançar em parceria com o mencionado jornal.

Desta feita, a obra em questão é A Reparação, da autora Nina Bunjevac.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora sobre a obra e com algumas imagens promocionais da mesma.


A Reparação, de Nina Bunjevac

Nina Bunjevac aceitou o desafio de criar uma narrativa em imagens sem palavras e o resultado é A Reparação, quinto volume da colecção 25 Imagens, editado pela Levoir e o Público, saiu em banca a 8 de Agosto.

Nina Bunjevac nasceu no Canadá, mas cresceu na antiga Jugoslávia onde iniciou a sua formação artística. Quando eclodiram os primeiros conflitos, no início dos anos 90, regressou ao Canadá e prosseguiu os seus estudos: primeiro no conceituado Art Centre of Central Technical School de Toronto, depois na OCAD, a instituição de ensino superior mais antiga do Canadá na área da arte e do design.

Em França, Nina Bunjevac está em exposição na Galerie Martel, em Paris. Mas os seus trabalhos foram publicados em todo o mundo. Em 2013, foi publicado o seu primeiro livro, Heartless, que reúne sete contos sombrios e mordazes. Em 2015, o seu segundo livro, Fatherland, recebeu elogios da crítica internacional – o New York Times colocou-o na sua lista dos melhores títulos. Em 2018, com Bezimena, recebeu em França o prémio Artemísia e, no Canadá, foi premiada com os prestigiosos prémios Doug-Wright e Joe-Shuster.

Nina Bunjevac apresenta-nos um álbum muito pessoal sobre uma ferida da infância. Mergulhando nas suas memórias, relata com os seus desenhos a violência vinda da sua mãe.

«Mergulhei o meu coração e a minha alma neste projeto, que é a história mais pessoal que já contei.»

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Ficha técnica
A Reparação
Autora: Nina Bunjevac
Editora: Levoir
Páginas: 32, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 X 265mm
PVP: 13,90€

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Análise: Fouché - O Génio Tenebroso

Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim - Levoir

Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim - Levoir
Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim

Entre as obras de banda desenhada mais recentes editadas pela Levoir, figura este Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim, o autor espanhol com quem pude conversar recentemente, também responsável por obras muito relevantes lançadas pela mesma editora na sua Coleção de Novelas Gráficas, como A Arte de Voar, A Asa Quebrada ou Neve nos Bolsos. Todos estes livros, sem exceção, foram muito do meu agrado e, portanto, estava muito desejoso em mergulhar nesta nova leitura.

Fouché - O Génio Tenebroso é uma adaptação para banda desenhada da célebre biografia escrita por Stefan Zweig sobre Joseph Fouché, uma figura obscura, mas fascinante da história política francesa. Volta a ser um trabalho histórico de Kim mas, contrariamente aos outros três livros já supramencionados, é a primeira vez em que o autor espanhol adapta para banda desenhada uma obra já existente - relembro que no caso dos livros A Arte de Voar e A Asa Quebrada (com argumento da autoria de Antonio Altarriba) e em Neve nos Bolsos (com argumento de Kim) os respetivos argumentos foram diretamente pensados para o formato da banda desenhada.

Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim - Levoir
Neste caso, recuamos cronologicamente para o período vivido entre a Revolução Francesa e o Império Napoleónico, em que Fouché teve um papel preponderante, estando sempre na sombra do poder, mas nunca longe dele.

A obra mergulha no percurso de Fouché, desde o seu início como um pacato e tímido professor de física e matemática no seminário, até à sua ascensão a mestre da intriga e da manipulação política, enquanto uma das mais influentes e ricas pessoas de França e do mundo. O próprio autor da obra original, Stefan Zweig, apelidou-o de “Maquiavel da era moderna”, e Kim não foge a essa caracterização, traçando um retrato sombrio mas fascinante de um homem cuja lealdade oscilava com as marés do poder. Fouché sobreviveu à guilhotina, a Robespierre, a Napoleão e à Restauração, sempre adaptando-se e posicionando-se de forma cirúrgica. E é esse instinto de sobrevivência e sede de influência que está no centro desta narrativa gráfica.

E não há dúvidas de que Kim consegue captar bem a natureza calculista e amorfa de Fouché, mostrando-o como um verdadeiro camaleão político, sempre do lado dos vencedores, embora mostrando-se igualmente como alguém detestável, cínico, pragmático e desprovido de ideologia. Sem caráter, portanto. E isso será o ponto forte da obra, pois torna-se claro que Kim não tenta redimir Fouché - embora também não tente pintá-lo como vilão absoluto. Antes, apresenta-o como o que foi: um animal político, especialista em sobreviver e prosperar num tempo de caos e violência. É esta abordagem direta, quase clínica, que confere densidade ao retrato psicológico do protagonista.

Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim - Levoir
No entanto, essa riqueza de conteúdo transforma-se também no principal problema da obra, com a mesma a estar sobrecarregada de informação, com legendas extensas e balões densos, que tornam a leitura pesada e algo arrastada. São vários os casos em que o texto é tanto que a legenda textual ocupa praticamente o mesmo espaço na página do que o próprio desenho. Kim opta por uma fidelidade quase absoluta ao texto de Zweig, o que se revela contraproducente. Até porque, convém relembrar, muitos dos acontecimentos na vida de Fouché foram cíclicos e repetitivos, o que, numa adaptação para banda desenhada, poderia ter sido explorado de uma forma mais sintetizada. Não havia necessidade de ser tão fiel e de ter tanta informação, diria, pois essa sobrecarga textual acaba por tornar a leitura por vezes cansativa, aproximando-se mais de um ensaio ilustrado do que de uma banda desenhada fluida. Acredito que uma maior liberdade na adaptação poderia ter gerado uma narrativa mais dinâmica, sem necessariamente perder a profundidade ou o rigor histórico.

Reconheço que para o leitor interessado em política, história ou psicologia do poder, este Fouché – O Génio Tenebroso é um prato cheio. Mas para quem procura uma leitura leve, envolvente e visualmente variada, esta obra pode parecer mais um esforço do que um prazer. É, sem dúvida, um trabalho sério e bem-intencionado, mas que peca por excesso de zelo na adaptação do texto original, comprometendo o equilíbrio entre narrativa e imagem, essencial na linguagem da banda desenhada.

Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim - Levoir
A nível gráfico, o estilo é clássico, com um traço limpo e bem documentado. Bem em linha com aquilo que o autor já nos habituou, mas com a diferença de, neste caso, se tratar de uma obra a cores. As indumentárias, penteados, ambientes políticos e meios de transporte são cuidadosamente reproduzidos, revelando o trabalho de investigação de Kim. Gostei especialmente de algumas ilustrações do ambiente de rua ou cenas bélicas. 

No entanto, visualmente, a banda desenhada sofre do mesmo problema que o texto: uma certa repetição. Muitas cenas decorrem em assembleias, salas de reuniões e espaços institucionais, o que, aliado à densidade textual, cria uma sensação de monotonia visual. Como, exceptuando algumas cenas de guerra mais genéricas, não há propriamente muita "ação" ou eventos diferentes, acaba por haver esta redundância visual.

Seja como for, e olhando para a "full picture", é importante reconhecer o mérito informativo do livro. Fouché é uma figura pouco abordada no ensino formal e até na cultura popular, e Kim presta um serviço relevante ao dar-lhe protagonismo. O próprio Kim revelou-me em conversa que, embora Fouché seja uma personalidade que todos os franceses conhecem, o mesmo não se passa com os espanhóis que pouco ou nada sabiam sobre o político francês. E acredito - ou melhor, tenho a certeza - que a grande maioria dos portugueses, amantes ou não de banda desenhada, também não conhecem Fouché. E, por esse motivo, a publicação desta obra ganha força, com a mesma a poder funcionar quase como uma aula de história detalhada, permitindo ao leitor conhecer os meandros de uma personagem decisiva nos bastidores de uma das épocas mais turbulentas da história europeia.

Quanto à edição, o livro apresenta as características comuns aos livros que a Levoir tem lançado na sua Coleção de Novelas Gráficas, mesmo sendo este um livro lançado de forma isolada. Ou seja, mantém a lombada a preto e a designação de "novela gráfica" numa tira a preto, na capa e apresenta capa dura baça, bom papel baço e um bom trabalho a nível de impressão e encadernação.

Em resumo, Fouché – O Génio Tenebroso é uma obra que se destaca pelo seu conteúdo informativo e pelo seu rigor histórico, mas que tropeça no excesso de texto e na falta de dinamismo visual. Tendo em conta a natureza cínica e maquiavélica da personagem real que aqui é retratada, esta obra poderia ter sido um marco no género da banda desenhada histórica se tivesse ousado mais na adaptação. Mesmo assim, também deve ser reconhecido que é um contributo válido, e, para muitos, a primeira (e talvez única) oportunidade de conhecer o “génio tenebroso” que foi Joseph Fouché.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Fouché - O Génio Tenebroso, de Kim - Levoir

Ficha técnica
Fouché, o Génio Tenebroso
Autor: Kim
Editora: Levoir
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 200 x 290 mm
Lançamento: Abril de 2025

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Análise: Marguerite

Marguerite, de Joe Pinelli - Levoir

Marguerite, de Joe Pinelli - Levoir
Marguerite, de Joe Pinelli

O livro Marguerite, de Joe Pinelli, é mais um dos álbuns que se insere na coleção 25 Imagens, editada pela Levoir em parceria com o jornal Público, que chegou recentemente às bancas portuguesas.

Relembro que esta coleção é especialmente original por apostar em narrativas visuais desprovidas de texto - histórias mudas, portanto - explorando apenas o potencial da linguagem gráfica para contar histórias. 

Neste segundo livro da coleção, temos a obra Marguerite, em que Joe Pinelli nos transporta para a Paris dos anos 1930, época marcada por tensão política e agitação social, mas também por uma efervescência cultural inegável. Através de ilustrações evocativas e atmosferas carregadas de poesia, o autor propõe-nos um percurso tanto geográfico quanto emocional, guiado pelo olhar de um pintor que se encanta por uma mulher misteriosa.

Marguerite, de Joe Pinelli - Levoir
As ilustrações apresentadas são inegavelmente belas, reminiscentes da escola de Will Eisner, com um domínio atmosférico que captura muito bem a melancolia, o romantismo e a vida quotidiana da Paris entre as duas Grandes Guerras. Há uma elegância silenciosa em cada página, como se a cidade respirasse através das sombras e do movimento sugerido.

Contudo, se a arte num preto e branco puro é impactante e memorável, a articulação narrativa entre as imagens por vezes parece vacilar. Há momentos em que a sequência parece menos movida pela progressão emocional da história e mais por um desejo de retratar a cidade em toda a sua diversidade humana e arquitetónica. Isso não é, por si só, um "defeito", pois até é justo considerar que é a cidade de Paris, em muitos aspetos, a verdadeira protagonista da obra, mas enfraquece, quanto a mim, o desenvolvimento do fio condutor representado pela ligação entre o pintor e Marguerite.

Dito por outras palavras, o que poderia ser um crescendo emocional entre este homem e esta mulher parece diluir-se em composições urbanas que, embora belíssimas, nem sempre servem a progressão do enredo. Por vezes, fica-se com a sensação de se estar a ver uma série de postais artísticos, mais do que uma sequência fluida de acontecimentos que culminam em algo mais palpável.

Marguerite, de Joe Pinelli - Levoir
Por outro lado, há que reconhecer o mérito de Pinelli na construção de uma atmosfera. O autor capta com precisão o espírito do tempo: os cafés, os operários, as fachadas e as manifestações políticas que pontuam o início da Frente Popular. Este pano de fundo histórico é subtil, mas presente, e confere uma densidade interessante à narrativa. 

Talvez por isso possamos dizer que Marguerite funcione melhor como um álbum de sensações visuais do que como uma narrativa com início, meio e fim definidos. Nesse sentido, pode frustrar quem procura uma história mais linear ou um arco emocional mais definido, mas não deixa de ter o seu encanto para quem aprecia uma poesia visual que evoca o sentimento que queiramos evocar, num exercício que terá que ser, pois está claro, forçosamente pessoal.

A edição da Levoir mantém-se bela, como aliás já tinha referido no álbum anterior, A Floresta, de Thomas Ott. "O livro apresenta capa dura baça, com textura em tecido. No interior o papel utilizado é baço e de boa qualidade. Possivelmente, o melhor papel já utilizado numa coleção da Levoir. Numa coleção como estas, torna-se claro que a qualidade da impressão, o papel espesso, a encadernação... tudo contribui para a experiência sensorial, pelo que me agrada especialmente que a Levoir tenha tido este tipo de cuidado e aprumo editorial."

Em suma, Marguerite é um objeto estético de rara sensibilidade, que merece ser apreciado com tempo e atenção ao detalhe. Se falha por vezes em oferecer uma narrativa (mais) coesa entre os protagonistas, compensa com a riqueza do seu universo visual e com o convite que faz ao leitor para preencher, com a sua própria imaginação, os silêncios entre as imagens.


NOTA FINAL (1/10):
7.4



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Marguerite, de Joe Pinelli - Levoir

Ficha técnica
Marguerite
Autor: Joe Pinelli
Editora: Levoir
Páginas: 32, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 265 mm
Lançamento: Maio de 2025

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Análise: A Floresta

A Floresta, de Thomas Ott - Levoir

A Floresta, de Thomas Ott - Levoir
A Floresta, de Thomas Ott

Aplaudo com especial carinho a última coleção editada pela Levoir em conjunto com o jornal Público. Chama-se 25 Imagens e congrega 7 volumes (incluindo autores de renome internacional e ainda uma obra inédita do português Vasco Colombo) que têm a particularidade de nos contarem uma história, recorrendo apenas a 25 pranchas mudas. É algo diferente daquilo a que estamos habituados em Portugal e que, só por isso, é refrescante e bem-vindo. Faço votos para que seja uma série com sucesso comercial.

O primeiro volume que abriu esta coleção foi este A Floresta, de Thomas Ott, que é um autor que já havia sido publicado pela mesma editora Levoir aquando de uma das suas coleções de Novelas Gráficas com a obra O Número 73304-23-4153-6-96-8. Obra essa que me agradou bastante.

Thomas Ott é conhecido pelo seu estilo sombrio e pela sua técnica meticulosa de scratchboard (raspagem) que nos apresenta desenhos brancos em fundo preto que nascem através desse mesmo processo de raspagem da superfície escura de uma prancha para revelar linhas brancas. O livro é curto - como, aliás, são todos os livros desta coleção -,  mas denso em simbolismo e atmosfera, funcionando como um pesadelo envolvente.. ou um conto de fadas invertido. Como queiram.

A Floresta, de Thomas Ott - Levoir
A história acompanha um jovem rapaz que, depois de uma tragédia familiar, toma a iniciativa de fazer uma viagem pela floresta. Esta, apresenta-se-lhe misteriosa e sombria, remetendo o leitor para um espaço simbólico de perda, medo e transformação. A floresta, no contexto da obra, não é apenas um lugar físico, mas uma metáfora profunda para o inconsciente e para o trauma.

O contraste entre luz e sombra é intenso e cuidadosamente trabalhado, criando uma atmosfera opressiva, quase claustrofóbica. Cada painel parece uma gravura, cheia de detalhes e textura, o que o torna verdadeiramente impressionante. Esta técnica, associada ao silêncio da narrativa, contribui para a sensação de inquietação constante, funcionando como uma parábola sobre o luto infantil, em que o protagonista precisa enfrentar os seus medos mais profundos para encontrar algum tipo de reconciliação interior.

O exercício visual torna-se especialmente relevante, pois não havendo balões de fala, narração ou legendas, tudo nos é comunicado pelo enquadramento, pelos gestos, pelas expressões e pelo ritmo. Isso exige uma leitura atenta e sensível por parte do leitor, que precisa preencher lacunas e interpretar símbolos para melhor compreender a jornada emocional do protagonista.

A Floresta, de Thomas Ott - Levoir
A edição da Levoir merece destaque. O livro apresenta capa dura baça, com textura em tecido. No interior o papel utilizado é baço e de boa qualidade. Possivelmente, o melhor papel já utilizado numa coleção da Levoir. Numa coleção como estas, torna-se claro que a qualidade da impressão, o papel espesso, a encadernação... tudo contribui para a experiência sensorial, pelo que me agrada especialmente que a Levoir tenha tido este tipo de cuidado e aprumo editorial.

Tenho lido alguns leitores a dizerem que 13,90€ por um livro de 32 páginas a preto e branco é caro. Bem sei que a noção de "caro" e de "barato" nem sempre é tão linear assim mas - e também por isso - focando-me em algo mais concreto e menos subjetivo, posso dizer-vos que na sua edição original francesa, o preço destes mesmos livros começa nos 19,90€ e acaba nos 22,00€. Portanto, a meu ver, o preço da edição portuguesa até é bastante simpático.

Em suma, A Floresta é uma narrativa gráfica poética, sombria e profundamente humana. Thomas Ott prova mais uma vez que é um autor singular, capaz de transformar o horror em arte e o silêncio em linguagem. Apesar da ausência de palavras, este é um livro profundamente emocional. Até porque essa referida ausência de palavras não é uma limitação, mas uma libertação: cada leitor encontrará ecos diferentes nas imagens, de acordo com sua própria bagagem emocional. Uma história que é simples e curta, mas que nos marca e que abre muito bem esta coleção 25 Imagens!


NOTA FINAL (1/10):
8.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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A Floresta, de Thomas Ott - Levoir

Ficha técnica
A Floresta
Autor: Thomas Ott
Editora: Levoir
Páginas: 32, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 265 mm
Lançamento: Maio de 2025

Amanhã sai com o jornal Público livro de Landis Blair!



É já amanhã que chega às bancas o novo livro da coleção 25 Imagens que a Levoir tem vindo a editar com o jornal Público.

Desta vez, trata-se de Rumo ao Sul, de Landis Blair, que à semelhança dos restantes títulos da coleção, é composto por 25 pranchas mudas.

Tem estado a ser uma coleção interessante e estou especialmente interessado neste livro em concreto, pois aprecio bastante os desenhos do autor.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora e com algumas imagens promocionais.
Rumo ao Sul, de Landis Blair

Landis Blair é um autor e ilustrador americano, influenciado pelo grande mestre americano do absurdo, do enigmático e do sórdido, Edward Gorey.

Vencedor do Fauve d'or no Festival de Angoulême 2021 com a obra The Hunting Accident, prossegue o seu trabalho de experimentação gráfica e narrativa com Rumo ao Sul, quarto volume da colecção 25 Imagens, que a Levoir e o Público editam a 18 de Julho.

O estilo de Landis Blair é uma maravilha, com a sua multiplicidade de linhas cruzadas a tinta. O resultado são alguns desenhos muito bonitos, que são uma mais-valia para a colecção.

Há um mundo onde as árvores são altas e numerosas, onde a neve é bela e densa, onde o vento sopra forte e longo e onde os pássaros falam de viagens e da vida depois da morte. Rumo ao Sul é a história da última viagem de um homem que escolhe e organiza cuidadosamente as condições da sua partida. Uma partida espetacular e gloriosa, em plena comunhão com o mundo e a natureza, com a cumplicidade dos pássaros, aqueles que conhecem melhor do que qualquer um de nós a arte de voar e os caminhos do céu.

No final deste conto curto e sem palavras, ouvimos dizer que “está tudo bem”. E há esperança.

Já editados: A Floresta de Thomas Ott Margueritte de Joe Pinelli e Ter 20 Anos em 1871 de Jacques Tardi.

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Ficha técnica
Rumo ao Sul
Autor: Landis Blair
Editora: Levoir
Páginas: 32, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 265 mm
PVP: 13,90€

terça-feira, 15 de julho de 2025

Análise: O Desassossegado Senhor Pessoa

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral

A editora Levoir lançou recentemente um dos seus livros agendados para este ano que eu mais queria ler! Falo-vos de O Desassossegado Senhor Pessoa, do francês Nicolas Barral, do qual a mesma editora já havia publicado, em 2020, o belíssimo Ao Som do Fado. Talvez por ter gostado tanto desse livro, talvez por gostar tanto de Fernando Pessoa ou talvez por este O Desassossegado Senhor Pessoa ter sido um livro bastante aclamado pela crítica internacional, estava, pois, muito curioso e empolgado para mergulhar nesta leitura.

E posso dizer-vos que Nicolas Barral não desilude e volta a dar-nos um belo e profundo livro de banda desenhada que, sinceramente, tomo como um privilégio e uma honra para os portugueses. O Desassossegado Senhor Pessoa é uma obra carregada de lirismo, imaginação e profunda portugalidade. Trata-se de um retrato comovente dos últimos dias de Fernando Pessoa, figura mais que central da literatura portuguesa, cuja complexidade interior é aqui explorada de forma credível, delicada e respeitosa. Barral volta a mergulhar na história e cultura da alma portuguesa, compondo uma verdadeira eulogia gráfica ao maior poeta do nosso país.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
A narrativa, bem construída, acontece em 1935 e centra-se em Simão Cerdeira, um jovem jornalista do Diário de Lisboa, incumbido de escrever o obituário de Fernando Pessoa quando surgem rumores a ameaçar que a morte do poeta está iminente. Este ponto de partida permite ao autor guiar-nos por uma Lisboa dos anos 30, ao mesmo tempo que nos oferece uma investigação jornalística sobre Pessoa que não é mais do que uma (bem-vinda) forma de nos apresentar, de um modo leve, o mistério e a aura quase metafísica de Fernando Pessoa. O dispositivo narrativo - a busca de Cerdeira pelo homem por detrás do mito - acaba por ser uma metáfora para a própria leitura da obra de Pessoa: um labirinto de vozes, vidas e máscaras que, sendo díspares, têm enquanto denominador comum a mente genial de Fernando Pessoa.

Um dos méritos desta abordagem adotada por Barral é que a mesma não se torna demasiado explicativa ou académica. Ao invés, o autor francês opta por uma construção mais sensorial e poética, que respeita a ambiguidade do poeta e não tenta aprisioná-lo numa explicação racional. Os heterónimos, em particular Bernardo Soares ou Álvaro de Campos, aparecem de forma orgânica, pontuando a história sem a dominarem, como se continuassem a visitar o mundo através do corpo do seu criador.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
A história, embora situada num momento terminal da vida de Pessoa, não se afunda em tristeza. Há nela um tom contemplativo, por vezes melancólico, mas nunca pesado. Barral escreve (e desenha) com reverência, mas também com liberdade, fazendo da obra quase uma extensão gráfica do Livro do Desassossego. É uma homenagem viva, por vezes poética, ao espírito inquieto de Pessoa e à pluralidade que o define.

A estrutura do livro alterna habilmente entre o presente da investigação de Simão Cerdeira e os ecos da vida interior de Pessoa, fundindo biografia e ficção com um equilíbrio raro. Nicolas Barral não tenta fazer de Pessoa uma personagem "normal", mas tampouco transforma o poeta português num mito inalcançável - prefere deixá-lo viver entre sombras e interrogações, tal como ele mesmo desejava.

A inserção de frases e reflexões inspiradas no universo pessoano, muitas vezes evocando trechos do Livro do Desassossego, reforça a dimensão poética do livro. São intervenções subtis que conferem à narrativa uma espessura literária, sem jamais quebrar o ritmo da leitura ou tornar o tema "forçado". A obra, neste sentido, posiciona-se entre a banda desenhada e a literatura, sendo ao mesmo tempo acessível e profunda, o que, como bem sabemos, é um equilíbrio que nem sempre é alcançável por grande parte dos autores.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
Visualmente, O Desassossegado Senhor Pessoa é um livro belíssimo. Para além de Fernando Pessoa, também Lisboa protagoniza a história, surgindo retratada com uma paleta de cores quentes e nostálgicas, onde o azul do Tejo, os ocres das fachadas e a luz própria lisboeta ajudam a construir uma atmosfera evocativa e encantadora. As vinhetas, muitas vezes silenciosas, respiram como poesia visual, permitindo ao leitor mergulhar lentamente no mundo do poeta. O jornalista Simão Cerdeira tem uma fisionomia claramente inspirada no ator Adrien Brody que, entre outros filmes, protagonizou o célebre O Pianista. Relembro que já em Ao Som do Fado, o protagonista era inspirado no ator Benicio del Toro, o que revela uma inclinação de Barral para utilizar atores de características faciais originais, para retratar as suas personagens.

Um único e pequeno reparo que posso fazer ao desenho de Barral é que, por vezes, o autor adota uma linha demasiado grossa, destoando um pouco da delicadeza de outras sequências desenhadas com mais elegância e subtileza. Esse contraste não parece advir de uma opção narrativa ou conceptual, mas acontece várias vezes e, pelo menos a mim, provoca uma certa estranheza, ainda que nunca comprometa (muito negativamente) a qualidade geral da obra, concedo. Trata-se de um detalhe estético menor, mas ainda assim perceptível.

O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir
Em termo de edição, o livro apresenta as características naturais a que a editora Levoir já nos habituou na sua Coleção de Novelas Gráficas, embora, neste caso, a lombada seja branca e este livro tenha sido lançado, de forma independente, fora da referida coleção que, ao que tudo indica, este ano não deverá ser lançada. De resto, o livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior e uma boa encadernação e impressão. Uma ou outra página pareceu-me desfocada. Não consegui averiguar se se trata de um problema da edição portuguesa ou se tal já havia acontecido na edição original. Mas fica a nota. 

O livro inclui ainda um posfácio de Ricardo Belo de Morais, escritor e investigador da Casa Fernando Pessoa, que também traduziu o livro que lhe deu um título que, a meu ver, consegue ser melhor do que o original. Nota ainda para o facto desta obra ter uma capa alternativa, limitada às lojas FNAC, em que o fundo é amarelo, em vez de ser azul.

Em suma, O Desassossegado Senhor Pessoa é mais do que uma simples biografia ilustrada. É uma meditação que respeita a memória de Pessoa sem a enclausurar. Nicolas Barral, com sensibilidade e mestria, oferece-nos uma história que não pretende decifrar o poeta, mas acompanhá-lo nos seus últimos passos, através de uma carta de amor à Lisboa dos anos 30, ao mistério da criação artística, e ao homem que, do seu baú, deu voz a muitos outros homens e que continua, desassossegadamente, a falar connosco. Saibamos nós ouvi-lo.


NOTA FINAL (1/10):
9.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Desassossegado Senhor Pessoa, de Nicolas Barral - Levoir

Ficha técnica
O Desassossegado Senhor Pessoa
Autor: Nicolas Barral
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Qual o melhor Livro do Mês de Janeiro de 2025 para o Vinheta 2020?


Tendo andado em falta, eu sei.

De há uns meses para cá, tem-me sido difícil manter a rubrica "BD do Mês" atualizada. Simplesmente porque não tenho tido tanto tempo. 

Mas o meu compromisso para com os meus leitores e para com os editores é sério e, portanto, tentarei repor nos próximos dias esta ausência, anunciando quais os livros que considero ser a Melhor BD de cada mês de 2025.

Deixem-me relembrar que esta rubrica - que tem muito sucesso em termos de visitas aqui no blog, já agora - procura anunciar a BD que, quanto a mim, é mais "obrigatória".

Tento trazer-vos também a obra nacional cuja compra considero mais adequada em cada mês.

É claro que isto do "melhor" e do "pior" é sempre algo subjetivo, concedo, mas o objetivo aqui é muito simples: caso não haja dinheiro para comprar todas as boas bandas desenhadas lançadas por cá, qual a compra mensal mais obrigatória a fazer?

É, na minha opinião, a obra que vos apresento mais abaixo.

Sem mais demoras, eis o Livro do Mês de Janeiro: