Se há livros que marcaram, marcam e continuarão a marcar a minha vida, os livros 1984 e A Quinta dos Animais (AKA O Triunfo dos Porcos), de George Orwell, são bons exemplos disso. Toda a maneira, absolutamente inteligente e audaz, como o autor desconstrói as questões sociais, com todas as ramificações político-económicas adjacentes das sociedades modernas, conseguindo antever até certas coisas que acabariam por existir vários anos mais tarde em relação à vida do autor é, quanto a mim, resultado da obra de um verdadeiro visionário. Mesmo assim, e condeno-me por isso, nunca li outra obra do autor sem que fosse 1984 ou A Quinta dos Animais.
E agora, que a chancela Cavalo de Ferro, do grupo Penguin Random House, editou a adaptação para banda desenhada de Tamanhas Eram as Alegrias, fiquei com uma imensa vontade de ir descobrir o texto original de George Orwell. Ora, só por isso, diria que esta adaptação da autoria do escocês Sean Michael Wilson e do galês Jaime Huxtable já é um caso de sucesso. Sempre que uma qualquer adaptação, seja ela uma banda desenhada, um filme ou um livro ilustrado, nos deixam com a vontade de ir conhecer o trabalho original que inspirou a adaptação, essa mesma adaptação já é um caso de sucesso.
Inspirado num ensaio escrito em 1947 – que só haveria de ser publicado já depois da morte de George Orwell – Tamanhas Eram as Alegrias remete-nos para os anos de escola do autor, entre os seus oito e os seus treze anos. Sendo aluno do colégio interno de St Cyprian’s, Orwell revela-nos as suas memórias mais negras do tempo passado nesta austera instituição de ensino que, certamente, lhe deixou traumas recalcados.
Nesta escola de elite, Orwell foi - juntamente com vários outros colegas - vítima de uma enorme prepotência, materializada em violência física e psicológica, por parte dos dirigentes da instituição e de alguns colegas. Chega a ser chocante – pelo menos à luz dos dias atuais – as privações, discriminações e injustiças que o autor nos relata. Desde a ser espancado pelo diretor da escola por urinar na cama, até ver os seus colegas a serem castigados por terem uma simples ereção, qualquer comportamento considerado desviante em relação ao quadro de valores preconizado pela escola, era severamente reprimido.
E, claro, havia também um forte preconceito em relação à origem social dos alunos, fazendo com que aqueles que eram oriundos de nobres famílias beneficiassem de privilégios que eram dramaticamente vedados aos de origens mais humildes. E quando falo em origens mais humildes, nem me refiro a classes sociais pobres, mas sim a classes mais trabalhadoras que, ainda assim, não viviam propriamente mal. Portanto, o preconceito era, parece-me, ainda mais cirúrgico e castrador de qualquer pretensão de subida de classe social. Orwell conseguiu entrar na escola através de bolsa de estudos, o que, por ventura, aumentava ainda mais raivas alheias. Quer dos alunos mais ricos, que ostracizavam George, quer dos próprios professores e diretores.
O relato conta-nos situações cruéis que, lamentavelmente, têm o poder de condicionar toda a vida de uma criança. É que, sendo as crianças completamente permeáveis àquilo que lhes é dito pelos mais velhos, com poder de autoridade, as mesmas acabavam por sentir-se inferiores às outras crianças mais nobres e ricas. Ora, num mundo que, entretanto, deu os seus passos a favor da cada vez mais presente inclusão social, a leitura deste livro consegue deixar-nos com um amargo sabor na boca e torna-se ainda mais relevante para podermos ver o que já evoluímos. De resto, lembro-me que já em Orwell, publicado por cá pela Ala dos Livros, tinha ficado com a ideia do desagrado de George Orwell perante o sistema de educação inglês. Porém, é com este Tamanhas Eram as Alegrias que é mais clara essa posição anti-establishment do autor.
O relato vai-nos sendo dado na primeira pessoa, preferindo o argumentista Sean Michael Wilson utilizar legendas em voz off do que, propriamente, balões de diálogo que, aqui, não são tão frequentes. O autor faz um bom trabalho na maneira como nos veicula, de forma escorreita, os pensamentos e sensações experienciados por George Orwell.
Já quanto às ilustrações, que são asseguradas por Jaime Huxtable, devo dizer que também fiquei bastante agradado. Com um traço a preto e branco, que aparenta ser rápido, o autor oferece-nos o ambiente taciturno que o relato pedia. Apreciei bastante que, no meio de um livro sério como este, Huxtable tenha dotado as suas ilustrações com alguns momentos mais caricaturais na conceção das personagens que servem para incrementar determinadas situações vividas por Orwell. Este tipo de ilustrações funciona muito bem pois, além de reiterar os sentimentos que importam destacar, também dá alguma frescura e dinâmica à parte gráfica da obra.
Admito que, por vezes, teria apreciado um maior nível de detalhe nas ilustrações ou uma maior definição em certas expressões faciais das personagens, mas tenho que ressalvar que, no seu todo, o trabalho de Huxtable é bastante eficiente e meritório. A própria caracterização de George Orwell na idade adulta, também está bem conseguida.
Quanto à edição da obra, o livro apresenta capa dura baça, com detalhes a verniz que fazem com que a apresentação seja bastante bem conseguida. No miolo, o livro tem bom papel baço e a encadernação e impressão são boas. No início do livro, há ainda uma introdução à obra que é feita pelo próprio autor Sean Michael Wilson.
Em suma, Tamanhas Eram as Alegrias é um livro que, mesmo resultando da adaptação para BD de um texto escrito por George Orwell em 1947, continua a apresentar uma mensagem e uma reflexão completamente atuais. Ou não fosse George Orwell um dos mais geniais escritores (pensadores?) de sempre! E esta adaptação de Sean Michael Wilson e Jaime Huxtable é bastante eficiente em tornar acessível e disponível uma obra menos conhecida de Orwell. Mais uma agradável surpresa por parte do grupo Penguin.
NOTA FINAL (1/10):
8.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Tamanhas Eram as Alegrias
Autores: Sean Michael Wilson e Jaime Huxtable
Editora: Cavalo de Ferro (Penguin Random House)
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 23 x 16 cm
Lançamento: Novembro de 2023