O ano 2025 tem sido dos melhores anos da editora ASA no que à publicação de banda desenhada de qualidade superior diz respeito. São vários os bons exemplos que podemos encontrar no catálogo recente da editora portuguesa. Este Slava, da autoria de Pierre-Henry Gomont, é apenas mais um desses bons exemplos.
Slava é uma mini-série com três volumes, lançados no seu mercado nativo entre 2022 e 2024, que nos transporta para a Rússia da década de 1990, num período turbulento logo após o colapso da URSS. Foi uma época em que a utopia comunista, antes dominante, tinha-se então tornado mais num conceito teórico, alimentado por um canto débil propagandista, do que em algo que pudesse ter um real reflexo palpável na sociedade de então.
E é com esta moldura histórico-política, que Pierre-Henry Gomont - de quem a G. Floy Studio já por cá havia editado o muito bom Afirma Pereira - nos apresenta personagens envoltas por um cenário de decadência e desilusão. O país encontra-se à deriva, tal como muitos dos seus cidadãos que não passam de sobreviventes de um império desfeito.
A história acompanha Slava, um jovem carismático, artista plástico por vocação, que tenta encontrar o seu lugar neste novo mundo que ainda não sabe como ressurgir. Ao seu lado está Dimitri Lavrine, um velho amigo com ambições duvidosas, traficante sem escrúpulos e oportunista nato. Juntos, envolvem-se numa atividade obscura: resgatar e vender velharias soviéticas a colecionadores ocidentais que veem na antiga URSS um exótico souvenir de um regime derrotado.
O contraste entre Slava e Dimitri é uma das forças do livro. Slava ainda acredita em algum tipo de idealismo perdido, enquanto Dimitri abraça o cinismo da nova ordem. Essa tensão entre passado e presente, utopia e capitalismo, nostalgia e sobrevivência, está no cerne da narrativa. E é precisamente essa dualidade que dá espessura ao enredo. Além destas duas personagens, junta-se ao enredo a personagem de Nina, uma bela mulher por quem Slava não consegue esconder uma forte atração. É, aliás, Nina quem salva Slava e Lavrine de uma morte certa, quando um dos seus negócios não corre da maneira desejada. E são esses negócios - ou a ideia de uma boa negociata - que fará com que a trama se vá adensando.
Tenho que dizer que, por vezes, o enredo me pareceu um pouco reticente, sem saber bem para onde ir, onde nos são dados alguns eventos avulsos, aparentemente pouco relevantes para a construção da narrativa principal ou das personagens. Ao contrário de certos livros que me fazem mergulhar neles até que termine a sua leitura, este Slava fez o oposto: por vezes vi-me forçado a fazer algumas pausas. Não pelo facto de o tema ser demasiadamente complexo ou desinteressante, mas porque a narrativa é algo caótica, com um ritmo um pouco ao sabor da corrente, que ora prende o leitor, ora o distrai.
Já o desenho de Gomont é um espetáculo à parte. Com um traço nervoso e rápido, mas incrivelmente elegante, remete, com as devidas distâncias, para o estilo de Christophe Blain, sobretudo na expressividade gestual e nas composições ligeiramente deformadas, que servem para acentuar o tom emocional das cenas. É um traço - nunca estático, sempre em movimento - que vibra com a energia das personagens e dos lugares.
Além disso, as cores representam aqui um papel fundamental, para que os desenhos da obra, incluindo os das suas belas capas, seja tão apelativo. É sobretudo o uso da cor que torna esta obra visualmente marcante. As tonalidades carregadas, os vermelhos ferrugem, os azuis baços e os amarelos secos conferem à narrativa uma densidade simbólica muito eficaz. As cores ajudam a situar-nos na decadência, na poeira dos tempos e no clima severo da gélida paisagem russa. Não são, por isso, cores meramente decorativas, acabando por ter uma função narrativa e reforçando emoções, atmosferas e contrastes ideológicos.
Apesar da qualidade geral da obra, mantenho alguma reserva em relação ao entusiasmo generalizado que tenho visto à sua volta. Sem dúvida, Slava #1 - Depois da Queda é bom e tem grande potencial, mas não creio que, por agora, se justifique qualquer histeria. Esta é apenas a primeira entrada de uma série de três volumes e, como tal, joga ainda com muitas cartas escondidas. Introduz personagens interessantes, sim, mas nem todas são bem desenvolvidas neste primeiro tomo. Surgem-nos várias pontas soltas que, bem tratadas, poderão fazer-nos estar diante de uma belíssima série. Mas, mal tratadas, poderão enfraquecer a obra.
Há, inclusive, certas cenas que parecem "fillers", isto é, momentos inseridos mais para dar cor ou densidade ao mundo do que para fazer a narrativa avançar de forma significativa. Isso não é necessariamente um problema, mas cria um ligeiro desequilíbrio estrutural, especialmente quando se nota que há muitos elementos deixados em suspenso.
Ainda assim, os temas lançados são promissores: o peso do passado, a crise identitária de uma geração que cresceu sob o comunismo e acordou num capitalismo selvagem, e a procura de algum sentido num mundo em ruínas. Slava é um protagonista suficientemente forte para conduzir estas questões, que podem ser muito bem exploradas nos próximos volumes.
A ambientação que nos é dada por Gomont, em que as cidades são cinzentas e plenas de ruínas monumentais e paisagens amplas, mas desoladas, reforça o sentimento constante de uma sociedade suspensa entre dois tempos. A Rússia retratada por Gomont surge-nos, pois, como um quase estado de espírito coletivo de luto, de adaptação forçada, de esperanças partidas. Nesse sentido, a obra é - ou poderá vir a ser, aguardemos pelo fim da mesma - mais do que uma simples narrativa pós-soviética, uma autêntica meditação sobre o fim de ciclos.
A edição da ASA é bem conseguida. O livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior - que casa perfeitamente com o tipo de desenho de Pierre-Henry Gomont - e boa encadernação e impressão. No início do livro, há um texto introdutório, muito interessante, do próprio autor.
Em suma, este primeiro volume do tríptico Slava é uma obra bastante apelativa em termos visuais, com uma história que começa bem, mas que ainda caminha sobre terreno instável. Pode tornar-se uma série memorável, caso os volumes seguintes desenvolvam o que aqui foi apenas sugerido. Por enquanto, é uma leitura forte e envolvente, com um pé no passado, outro no futuro e muitos dilemas no presente. Estou atento, e espero que Gomont cumpra os bons indícios que este primeiro volume acalenta.
NOTA FINAL (1/10):
8.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Slava #1 - Depois da Queda
Autor: Pierre-Henry Gomont
Editora: ASA
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 297 x 244 mm
Lançamento: Maio de 2025
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