O único lançamento que este ano a Kingpin Books fez no Amadora BD foi este O Punhal, um álbum que marca o regresso de Nuno Duarte ao lançamento de banda desenhada. E, desta feita, o reverenciado autor faz-se acompanhar por um pequeno "exército" de confirmados talentos nacionais nas ilustrações: João Lemos, Osvaldo Medina, Rita Alfaiate e André Caetano.
Na prática, o livro é dividido por quatro histórias, cada uma delas ilustrada pelos autores supramencionados, que têm em comum o facto de orbitarem em torno de um objeto físico: o punhal que dá nome à obra.
Cada uma das histórias ocorre em tempos diferentes: em 1916, período em que o mundo estava (mais uma vez) dividido ao meio devido à Primeira Guerra Mundial; em 1974, em vésperas do 25 de Abril num Portugal ainda controlado pela PIDE; em 2001, no exato momento em que as Torres Gémeas, em Manhattan, foram alvo de um ataque terrorista; e em 2222, num futuro relativamente longínquo onde as (des)humanas relações entre os intervenientes são assunto principal.
Em cada uma destas histórias, constituídas escrupulosamente por 14 pranchas, o mesmo punhal marca presença. Gosto desta ideia de unir várias histórias, no tempo e no espaço, através de um artefacto e lembro-me de ter sido algo que, recentemente, pude especialmente apreciar no livro Go West - Young Man, de Tiburce Oger e vários outros autores, que a Gradiva publicou por cá há pouco mais de um ano, e que também tinha em comum a todas as suas histórias o facto de todas elas serem atravessadas por um objeto físico. Nesse caso, era um relógio de bolso.
Neste O Punhal, devo dizer que, infelizmente, não me parece que Nuno Duarte tenha conseguido explanar todo o potencial que este interessante conector narrativo tinha à partida. Na verdade, a presença do artefacto punhal acaba por parecer mais um engodo, uma interligação forçada entre histórias, do que um real elemento fulcral para o desenvolvimento da obra no seu todo. E é apenas por isso que, de algum modo, este livro fica um pouco aquém de outros trabalhos de Nuno Duarte, como O Baile e, especialmente, A Fórmula da Felicidade, dos quais sou confesso admirador.
Mas não me entendam mal. As histórias e temas trazidos por Nuno Duarte parecem-me interessantes e dignos de nota. A "cola" que os une é que me parece menos espessa, menos credível. E se o livro fosse apresentado como uma simples antologia, um livro de contos de Nuno Duarte, provavelmente não só eu não apontaria esta fraqueza à obra, como ainda enalteceria o facto da quarta história fazer uma ponte direta aos eventos vividos na primeira história. Sim, aí sim, há uma ligação direta entre histórias. Na primeira e na quarta.
Lá pelo meio, há duas histórias que me parecem avulsas e desconectadas do suposto tema central mas que, ainda assim, são as mais interessantes do álbum. Falo da história ilustrada por Osvaldo Medina, que nos remete para o ambiente pesado e assustador de uma sala de interrogatório da PIDE, tema sempre atual e que Nuno Duarte resgata muito bem; e da história ilustrada por Rita Alfaiate - de longe, a melhor das quatro - onde, através de um estilo slice of life, o argumentista nos pinta um belo retrato de uma época mais contemporânea - embora ocorrida há mais de 20 anos(!) - quando, em 2001, o mundo se chocou perante o ataque ao centro nevrálgico financeiro dos Estados Unidos - e do mundo ocidental - que levou à queda das Torres Gémeas de Nova Iorque e à morte de alguns milhares de pessoas. E tal como as torres foram abaixo, também a relação das duas protagonistas desta história parece estar a sucumbir. O paralelismo encetado por Nuno Duarte é muito bem conseguido.
A primeira história assume uma aura mais fantástica e a última, a que é ambientada no futuro, é de ficção científica que, à boa maneira do género, levanta boas questões sob a forma de uma distopia. A escrita de Nuno Duarte é, como habitual, bastante boa e inspirada.
Em termos de ilustração, cada um dos autores nos oferece um bom trabalho. Osvaldo Medina dificilmente entrega um trabalho mal concebido em termos de desenho; João Lemos dá-nos belas e familiares personagens, cuja expressividade cria empatia com o leitor; e André Caetano, num registo de traço "mais cartoonesco" premeia-nos com pranchas muito dinâmicas na planificação e com um desenho que muito me agrada.
Se os três autores que refiro são bons e competentes, é Rita Alfaiate, com o seu traço fino e inspirado, que utiliza muitas e belas tramas, quem, na minha opinião, mais brilha neste O Punhal. Acho que o leitor português de banda desenhada já não tem dúvidas quanto a isto mas, de facto, Rita Alfaiate é um autêntico tesouro da 9ª Arte em Portugal. Quando penso que a autora já não me pode impressionar mais pela positiva, sou confrontado com algo novo que me surpreende e me faz ser um verdadeiro fã do seu trabalho. E acho até que, depois de outras duas curtas feitas por Nuno Duarte e Rita Alfaiate, igualmente muito boas, a pergunta sacramental que se impõe é apenas esta: quando é que teremos uma história longa da autoria de Nuno Duarte e Rita Alfaiate cuja criação conjunta em banda desenhada é tão boa e tem tanto potencial?
Todas as histórias são a preto e branco, com os autores a explanarem as potencialidades que essa opção dá. Neste tema, considero que a primeira história, aquela que é ilustrada por João Lemos, não funciona tão bem como as demais, já que a sensação que dá é que a mesma foi feita a cores e depois impressa a preto e branco, com demasiados tons a cinza que retiram algumas potencialidades dos bons desenhos do autor, tornando-os escuros em demasia. Tirando isso, Osvaldo Medina, André Caetano e Rita Alfaiate revelam-se muito à vontade com o preto e branco.
A edição da Kingpin é bastante boa, com o livro a apresentar capa dura baça e bom papel baço no miolo. A impressão, encadernação e design do livro também são igualmente bons, bem ao jeito das edições de Mário Freitas que, para além do design, também assegura a boa legendagem da obra.
Em suma, O Punhal prima especialmente por marcar o regresso de Nuno Duarte ao lançamento de nova banda desenhada e por este trazer consigo uma quase mão cheia de ilustradores. Fica um pouco aquém do enorme potencial que a premissa de usar um punhal como elemento agregador das quatro histórias teria, mas é, ainda assim, um interessante livro de BD que vale a pena conhecer.
NOTA FINAL (1/10):
7.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Punhal
Autores: Nuno Duarte, João Lemos, Osvaldo Medina, Rita Alfaiate e André Caetano
Legendagem e design: Mário Freitas
Editora: Kingpin Books
Páginas: 64, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 19,5 x 27 cm
Lançamento: Outubro de 2024
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